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domingo - 28/04/2024 - 06:20h

Onde você estiver

Por Marcos Ferreira

"Preciosa" em pose para foto do autor da crônica

“Preciosa” em pose para foto do autor da crônica

Penso em quanta vida você tinha pela frente. Uma mocinha cheia de saúde e vigor, uma bichana sapeca, irresistível. Assim era você. Poderíamos chegar à velhice juntos. Isto supondo que eu alcance uma idade avançada. Porém o acaso, um destino injusto e tão perverso, tirou você de mim. Estamos irremediavelmente separados. Onde você estiver, Preciosa, saiba que você nunca será esquecida.

Restaram sobre os móveis as marcas dos seus pesinhos. Todas as suas coisinhas continuam aqui: a caixa com a areia que você nem pôde usar; a ração também posta recentemente; a vasilha com a água que eu trocava com frequência por outra geladinha. Sim. Daqui por diante, neste nosso diálogo (na verdade um monólogo proferido em silêncio), empregarei uma porção de diminutivos repletos de amor e brandura. Durante esses dias fui dormir (ao menos tentei) com a janela e a porta da cozinha abertas, na esperança de você voltar a qualquer hora da noite.

Você não calcula o quanto é difícil enxergar o que escrevo neste momento tendo nos olhos um oceano de tristeza e saudade. É complicado, Preciosa. Talvez alguém me diga: “Adote outra gatinha”. Não quero! Não tenho mais lugar, não tenho mais espaço no meu coração onde se possa inserir outra cicatriz gerada pela morte de uma ternurinha como você. Você se foi para sempre, querida Preciosa, e me deixou todo esse vazio impossível de ser preenchido por nenhuma outra.

Lembra de quando a gente se encontrou, da primeira vez que nos vimos? Naquele instante (com um ou dois meses de vida, abandonada no mundo, indefesa, passando fome e sede, doente e invisível perante a maior parte das pessoas) senti que as nossas almas tinham tudo a ver. Você foi um arrimo, uma companheirinha, o meu facho de luz, um farol nesta minha existência por vezes obscura.

Ah, Preciosa! Você fazia a Solidão de gato e sapato. A sua presença, além de uma dádiva para este meu espírito de pescador de encantamentos, era um dia a dia de afagos, mimos, cumplicidade. Seus pelinhos permanecem, sobretudo, nas roupas de dormir. Tínhamos, você sabe, uma sintonia, uma praxe toda especial quando se aproximava a vez de sossegarmos, após eu tomar os meus remédios e ver um pouco de televisão.

A rede armada na sala, duas cadeiras perto de mim. Você ocupava uma e na outra ficavam meus óculos, o telefone e o controle remoto da tevê.

Depois de passar um tempinho comigo na rede, de afagar o meu peito com as suas patinhas acolchoadas e conferir o meu cheiro, como se assim estivesse me dando um beijinho de boa noite, você ia para a sua cadeirinha. Daí a pouco você já estava dormindo. O efeito dos meus remédios também chegava, eu desligava tudo e a gente dormia dessa maneira. Até que na manhã seguinte você me acordava logo que os passarinhos começavam a pipilar nos verdes condomínios das arvores.

Agora não há mais nada disso, Preciosa; apenas esta dor, a ausência, a salina que se formou nos meus olhos e vai riscando o meu rosto. Procurei você em tantos lugares. Perguntei a um monte de moradores deste bairro, contudo nenhum deles me deu notícias de você, Preciosa. Nem o apoio das redes sociais foi poderoso o bastante para informar o seu paradeiro. Achei que estivesse muito distante, porém você estava quase debaixo do meu nariz. Isto é, em cima do telhado de uma casa vizinha. Somente o mau cheiro, após esses dias de buscas, denunciou a sua localização.

Você desapareceu naquele começo de noite. Até agora não sei o que aconteceu. O que eu sei é que nunca mais terei as suas pequenas travessuras, as suas brincadeiras repentinas, os zapetrapes vez por outra nos meus calcanhares, a sua meiguice à noite, no horário em que a gente se preparava para dormir.

Dava um trabalhinho, mas eu adorava fotografar você. O seu olhar me transmitia muita coisa boa. Sentia-me tão querido por você. Guardarei as suas fotos, os vídeos e as boas e tantas recordações.

Adeus, minha Preciosa!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Meu querido amigo, sem dúvida, é uma dor imensurável quando perdemos um animal de estimação, que é um membro da família.
    Deus conforte o seu coração. Que fiquem na memória os bons momentos de afeto e alegria que juntos passaram.
    Um forte abraço.

  2. Ayala Gurgel diz:

    Sei o que é isso e compartilho dos seus sentimentos. Uma bela homenagem e uma paulada no quengo de quem não tem sentimentos com essas criaturas. Dirão que é exagero e que passa. Digo que é mentira: não é exagero nem passa, é a justa medida de um sentimento com o qual aprenderemos a alto custo conviver. Meus pêsames

  3. Amorim diz:

    Comovente este amor verdadeiro pela Preciosa.
    Mas ainda tenho esperança que voltará pois acredito na reciprocidade.
    Um abraçaço

  4. Bernadete Lino diz:

    Amigo Marcos! Senti muito o desfecho da procura por Preciosa! Mas acredito que você, com o “espírito de pescador de encantamentos “, vai conseguir superar essa tristeza; a salina dos seus olhos ainda dará lugar ao olhar de brilho que você tinha quando olhava Preciosa. Difícil aceitar; a vida tem dessas coisas; você hoje está sem chão. Mas não está sozinho! Você tem poucos e bons amigos! A vida vai seguir sem Preciosa! Não adianta colocar “se”… o fato é que Preciosa cumpriu o destino dela! Viva o seu luto mas não more nele! Seja grato por ter tido Preciosa! Nós somos gratos por tê-lo em nossas vidas! Uma semana de renascimento! Abraço!

  5. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Olá, Marcos!
    Conheço essa dor. Mas não lamente a perda, apenas agradeça o tempo em que ela esteve contigo, retribuindo o carinho dispensado. A vida continua e outras preciosidades surgirão nos seus caminhos. Não somos os únicos carentes de companhia.

    Abraços

  6. Marcos Araujo diz:

    Marcos, meu xará dileto!
    Todos sentimos sua perda. Preciosa estava no nosso coração, pelo zelo que ela tinha por você. Suas histórias e relatos de convivência nos aproximaram também dela. Sabemos que os cuidados eram recíprocos.
    Os animais são parte da criação de Deus. Aliás, o cristianismo antropocêntrico do século XIII foi remodelado pela pregação de São Francisco quando relembrou os animais também como frutos da criação divina. Por isso, o bom Francisco tratava a eles como irmãos. A lição de São Francisco foi revisitada pelo seu exemplo com Preciosa.
    Se o egocentrismo humano nos isola até dos próprios semelhantes, inspiremo-nos no afeto e afago gratuito que Preciosa sempre te ofereceu.
    Que você fique em Paz! E bem!

  7. Fátima Feitosa diz:

    Meu amigo, imagino a sua dor, pois os criamos como filhos. São alegria e encantamento. Enchem as nossas vidas de felicidade.
    Meus sentimentos!
    Um abraço!

  8. Israel de Carvalho diz:

    Caro Carlos! Sei muito bem dos seus sentimentos de perda. Só quem ama os animais sabe e compreende sua dor. Eu tenho 8 gatinhos resgatados, um deles cego. Já perdi duas gatinhas que me marcaram muito. A Pretinha que teve um câncer no olho e a Bruguelinha, que teve leucemia. Vez por outra choro aqui lembrando delas. Foi muita luta pra que tivessem qualidade de vida. E outros envenenados aqui na rua. Ai digo que não vou adotar outro. Mas, resgato ma ufrn doente e trago pra cuidar e termino não devolvendo qdo bons. É um amor incondicional. Só querem um lugar pra viver, comida, água e carinho. E retribuem em dobro. A saudade não vai passar, ameniza. Mas, ela sabia do seu amor por ela. Pode ter certeza, pq os gatos são sensitivos. Deus acalme seu coração e fica os bons momentos.

  9. ROZILENE FERREIRA DA COSTA diz:

    Eu perdi Melzinha. Não sei. Ou alguém a levou. Um dia ela ouviu muito barulho de outros gatos (deduzimos que foi isso) e não mais voltou. Todos os dias, impreterivelmente, penso nela. Todas as manhãs, incansavelmente, eu a procurei. Não a esquecerei. Sei da dor que você sente, nobre escritor. Que Deus ajude a todos. Quaisquer partidas deixam marcas excruciantes. Bom dia, povo. Beijo em Nat. Abraço.

  10. Mario Gaudêncio diz:

    Querido amigo,
    Fico aqui na torcida para que o seu luto te fortaleça e te permita superar estes momentos de dor e angústia. Abraço fraterno.

  11. Airton Cilon diz:

    Me solidarizo com sua dor, pois já perdi muitos desses seres mágicos. Eles são a melhor companhia os solitário os introspectivos. E invariavelmente eles nos escolhem, como missão! Cabe a nós darmos amor e atenção, e isso você fez muito bem, e Preciosa sabe do tanto desse amor. Perdi uma gatinha de nome Pepê, envenenada poucos dias de ter dado cria a 4 gatinhos. Dois foram adotados e fiquei com dois, que no fundo vai suprindo a ausência, a saudade. Força meu amigo, vocês viveram dias preciosos. Preciosa presente! Abraços

  12. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Caro Marcos Ferreira, tal e qual vossa senhoria, já passei por situação semelhante…

    Há cerca de 05 anos criava um gatinho preto que eu chamava Botafogo…

    Lá pelas tantas em saídas noturnas para farrear…

    Não mais voltou…

    Não sei exatamente, mas, talvez tenha sido atropelado…

    A realidade triste realidade é que, nesse violento, imobilista e conturbado mundo dito urbano, cada dia mais e mais está inviável criarmos animais de estimação…!!!

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