Por Marcos Araújo
Início da década de 70, no século passado, Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho compuseram a música “o dono das calçadas”. A letra, segundo os autores, destinava-se a emoldurar a vida de Nelson Gonçalves, à época o mais célebre intérprete da boemia. O desejo dos autores era retratar a ocupação e a reinação dos boêmios nas calçadas dos bares, um espaço singular dos botequins cariocas.
Fora da simbologia poética, para que servem as nossas calçadas? No plano urbanístico, qual utilização tem sido dada a este importante espaço em nossas cidades? Qualquer ser vivo responderia de pronto: servem para abrigo de lanchonetes improvisadas, quiosques fixos para venda de materiais importados e falsificações chinesas, lixões de entulhos, estacionamentos privados para automóveis, pontos de camelô, trailer com ótica ambulante, e até oficinas de carros. Em diversos setores da nossa cidade, as calçadas funcionam para tudo, menos para a mobilidade dos pedestres.
A precariedade da infraestrutura urbana conta com a adversidade da apropriação ilegal do espaço público, tomada por esses clandestinos “donos das calçadas”. Sem boemia. Acho extremamente grave a omissão dos gestores públicos com a privatização dos passeios públicos (as calçadas). Em Mossoró, suprimiram do pedestre o direito de andar nas ruas do centro. Mesmo em avenidas mais amplas, como a Rio Branco e João da Escóssia, placas de “estacionamento privativo” são apostas nas vias públicas. E ainda com a ameaça do veículo ser “guinchado”, caso seja estacionado em frente a uma dessas lojas. O uso é “exclusivo para clientes em compra”.
Isto me faz lembrar um episódio pessoal com um juiz do trabalho já falecido, conhecido pela sua intolerância e grosseria. A Justiça do Trabalho em Natal funcionava na Av. Hermes da Fonseca. Em plena via pública, havia uma pintura no asfalto com a inscrição “estacionamento privativo para os Juízes”. Eu, um jovem advogado à procura de confusão, estacionei no local. Fui advertido por um dos servidores para que retirasse o veículo, senão seria rebocado.
Achei um desaforo e estabeleci uma longa discussão, com o servidor e depois com o magistrado, sobre a indevida apropriação do espaço público. Adverti-os de uma possível prática de improbidade, de uma representação ao Ministério Público e da convocação da imprensa, apenas para ser deixado em paz. Meu carro ficou por lá, sob impropérios e protestos da autoridade questionada.
Por aqui e alhures, os pedestres são os maiores excluídos da mobilidade urbana. Imaginem a dificuldade dos cadeirantes e das pessoas com reduzida capacidade de locomoção. O mau estado de preservação das calçadas e obstáculos que impedem o trânsito livre e seguro dos pedestres é considerado crime. O Código de Obras do Município de Mossoró, no art. 131 diz que “Os passeios públicos (calçadas) são bens públicos de uso comum do povo, de acesso livre, não podendo ser impedidos do trânsito de pedestres.”
O artigo 68 do Código Nacional de Trânsito proíbe qualquer utilização de calçada que impeça o trânsito livre dos pedestres. Também é frisado que os equipamentos urbanos nas calçadas não podem bloquear, obstruir ou dificultar a caminhada dos pedestres. Tudo em vão! Letra morta da lei.
O problema é de “ECF”, uma sigla para resumir a falta de Educação, Conscientização e Fiscalização. Este último seria o principal mecanismo modificador da realidade das calçadas de Mossoró. Que a Prefeitura faça o seu trabalho, já que a nossa educação e a nossa consciência assim não permitem. Fiscalizar também é educar.
Enquanto as providencias não são tomadas (sem muitas esperanças!), melhor voltar a Nelson Cavaquinho, o menestrel da Mangueira. Nelson era um ser desprendido das coisas e dos anseios materiais, vivendo de forma simples e intensa. Dentre as suas mais belas composições, elejo “A flor e o espinho”, em parceria com Guilherme de Brito e Alcides Caminha.
Para o poeta Manoel Bandeira essa música tem a frase mais bonita da música popular brasileira: “tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.
Para sobreviver, Nelson compunha e depois vendia a letra da música para jovens cantores, uma prática comum nas primeiras décadas do século passado. Um dia, Cartola, seu parceiro em uma canção, estava em um bar escutando um samba de um novo compositor, quando reconheceu aquela música, e disse:
– “Ô meu amigo, esse samba é meu! Eu fiz esse samba com o Nelson”.
O sambista assustado, respondeu:
– “Eu comprei esse samba dele”.
Dias depois, ao encontrar Nelson em Mangueira, Cartola o interpelou:
– “Nunca mais serei seu parceiro, pois nós fazemos um samba juntos e você vende para os outros”.
Muito calmo e solicito, com aquela voz rouca que lhe era peculiar, Nelson respondeu:
– “Cartola, eu só vendi a minha parte da música. A outra parte é sua.”
Com base nesta historinha, aproveito para perguntar aos ocupantes das calçadas: se as calçadas são “patrimônio” dos pedestres, quem lhes vendeu a parte que me cabia?
Marcos Araújo é professor e advogado
Parabéns Marcos Araújo pelo excelente texto sobre o uso das calçadas, espero sinceramente que a atual gestão de Mossoró enfrente esse desafio intrigante e decepcionante para uma cidade que beira 300.000 habitantes e ainda não cuida do trânsito e acesso livre das calçadas para quem mais precisa: idosos, deficientes físicos e visuais etc…afinal gerir é sempre pensar no coletivo mesmo que contrarie frontalmente os interesses privados!
Excelente, sempre!
Em um país chamado Mossoró, em que infelizmente falta a maioria da população o mais básico e elementar conhecimento e educação acerca do que é público e privado.
Mais que oportuno o artigo do Causidicos Marcos Araujo, revelando com argucia, conhecimento e poesia, os sofrimentos , as agruras, as decepções e as ilegalidades impostas por aqueles que em nome da sobrevivência e do patrimonialismo, na prática revogam leis e, consequentemente o direito de ir vir, SOBRETUDO de cadeirantes e pessoas com.as mais diversas vulnerabilidades.
Que o atual Prefeito a propósito da sua razoável administração, possa dar os primeiros e objetivos passos na resolução. De tão grave problema urbano, o qual está envolto , sobretudo na questão da EDUCAÇÃO e disciplina do nosso povo.
Um baraço
FRANSUELDO V. DE ARAUJO
OAB/RN. 7318
Ah, se eu escrevesse bem assim já teria feito esse texto maravilhoso,pois há muito vejo,sofro e reclamo por essa omissão do poder público e a invasão dos inconscientes. Inclusive no início 2021 a atual gestão pediu sugestões no site da PMM para melhorar a mobilidade urbana:citei 05,inclusive essa “padronização das calçadas”.Sou de fé,mas crer em Deus, ainda não é acreditar nos homens. Valeu seu inteligente texto! Quem sabe um dia a gente chega lá.
Parabéns pelo texto.