"Os que não têm filhos são órfãos às avessas", escreveu Machado de Assis, creio que no "Memorial de Aires".
Não raro invejo os patriarcas, os que reúnem em torno da mesa familiar seres novos, misteriosamente surgidos, que ontem não estavam e, de repente, passam a opinar sobre coisas diversas, dando aos que as ouvem o som, a medida, a confirmação daquilo que o virgiliano Newman denominou a individualidadade das almas, quer dizer, a reação própria e especÃfica que cada ser empresta aos fatos e acontecimentos que a vida lhes apresenta; a reação própria de cada um.
Não ter um filho quando os cabelos se vão tornando brancos, os olhos vêem menos, a memória se põe a falhar, é realmente estar sozinho neste mundo. À medida que avançamos em direção à sombra, que começamos por apalpar, a não já distinguir, a entrar em contato mais Ãntimo com a nossa morte, vamos sentindo mais e mais a necessidade de companhia, de apoio, de alguém que nos dê a ilusão de que vamos continuar o caminho, mesmo depois de nos aquietarmos no túmulo.
A amizade é um sentimento da juventude. Os velhos amigos ou vão desaparecendo ou recolhendo-se às comodidades, à reclusão – um dos últimos refúgios do homem amadurecido, do homem que, acabada a ceifa, guardou da sua colheita as lembranças, as amarguras e a cinza do tédio.
Na maturidade não se fazem amigos novos e mal se conservam os antigos. Os filhos só eles podem consolar, iludir, alvoroçar, enganar as tristezas dos seres acabados, que viram muitas coisas, e, o que é mais pungente, já se viram a si próprios. É verdade que "a ventura dos pais é inquieta", lembra-me o nosso clássico Tristão da Cunha.
E nenhum castigo, nenhuma maldição é maior para o homem do que aquela que tem sua origem no próprio filho. A ingratidão de um amigo é sofrimento suportável. As ingratidões se esquecem, superam-se. Dos amigos logramos desprender-nos um dia. Dos filhos, porém, jamais.
Não há perigo maior para o homem do que a paternidade. Não há também mais funda alegria e glória mais alta. É uma aventura estranha, exaltante, é um risco, e, ao mesmo tempo, plenitude, angústia e repouso.
Ó "órfão às avessas", por que razão luta e corre tanto?! Por que se esforça e batalha? Por que não mordera a sua jornada, se a árvore humana que não deu fruto está condenada a fenecer porque a terra mesma lhe há de negar a sua seiva?
Mas aquele a quem Deus concedeu o poder criador – esse sobrevive nos seus descendentes, com os seus traços, as suas heranças, as suas preferências.
No dia que os filhos consagram aos pais, penso em Gustavo Schmidt – morto em Montreux-Territé, ao lado de Lausanne, em 7 de junho de 1913. É um homem gordo e me diz adeus sorrindo de longe, de muito longe.
Apesar da distância, ele não é um fantasma. Partiu antes do tempo, deixando os filhos na infância, mas continuou fonte, origem de mim mesmo. Sou hoje mais velho e tão cansado quanto ele no momento de ir-se deste mundo.
Sinto-me solidário com ele, com a sua despreocupação, com os modestos problemas que o afligiram ao fim de sua vida. Pergunto-me, no dia de hoje: mais de quarenta anos depois que eu tiver desaparecido, quem se lembrará de que passei por este mundo? Quem, abrindo os olhos da memória sobre a minha ausência, me reverá, como estou revendo meu pai tão parecido comigo?
Os "órfãos às avessas" morrem mais depressa.
Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) Foi empresário, poeta, editor de livros, prosador e autor dos discursos do presidente Juscelino Kubistcheck, ou seja, seu "ghost-writer" (escritor fantasma).
Caro Carlos, parabéns pela nova seção do blog. Divulgar artigos de pensadores como Augusto Frederico Schmidt estimula os seus leitores a conhecer as obras desses autores e desenvolve a cultura. Schmidt sofreu bastante em virtude de sua esposa, Yedda, não conseguir ter filhos. O artigo expressa bem essa face do poeta.