Por Marcelo Alves
André Gide (1869-1951) não foi bem um “escritor maldito” – para parodiar a expressão cunhada por Paul Verlaine (1844-1896), sobre os seus compatriotas Tristan Corbière (1845-1875), Arthur Rimbaud (1854-1891) e Stéphane Mallarmé (1842-1898), no ensaio “Les Poètes Maudits” (1884) –, já que fez muito sucesso em vida. Mas ele teve seus subterrâneos.Gide nasceu em Paris numa família burguesa e protestante. Perdendo o pai na infância, ele foi educado puritanamente pelas mulheres da casa. Buscou refúgio na literatura. Começou seu diário/memórias aos quatorze anos. Cresce tímido, quase aterrorizado com público. Mas tem conhecenças decisivas, em oportunidades distintas, com Paul Valéry (1871-1945) e Oscar Wilde (1854-1900).
Frequenta os círculos literários parisienses. Viaja ao estrangeiro, o que viria a ser uma constante em sua vida, objeto de aventuras e escritos. É um escritor de renome antes da virada para o século XX. Embora homossexual, casa com a prima Madeleine Rondeaux (1867-1938). Em 1909, funda e dirige a badalada Nouvelle Revue Française – NRF, que, pelas mãos de Gaston Gallimard (1881-1975), vem dar na célebre Éditions Gallimard.
Foi comunista. Rompe com o PCF após retornar da União Soviética. Seus livros, vários traduzidos para o português, são muitíssimos: “Os Frutos da Terra” (1897), “Os subterrâneos do Vaticano” (1914), “A Sinfonia Pastoral” (1919), “Corydon” (1924), “Os Moedeiros Falsos” (1925), “De Volta da URSS” (1936) e por aí vai. Os meus preferidos são “Os Moedeiros Falsos” e “Os subterrâneos do Vaticano”, que considero obras-primas. Intelectual multifacetado, ele arrebata o Nobel em 1947.
André Gide foi o guru (para usar do termo em moda) de uma nova estirpe de intelectuais e de leitores. Entretanto, para fazer “nascer” essa nova geração, ele teve de romper com um mundo de tradições já moribundas, inclusive o seu próprio mundo, cômodo e seguro na infância, mas, sendo ele cristão, casado e homossexual, preconceituoso e doloroso na vida adulta.
Na busca da própria razão de existir, Gide ousou “destruir para ser”, falando em prol dos direitos dos homossexuais e enfrentando as consequências na sociedade de então. E foi politicamente engajado. Como registra o meu “Français: littérature & méthodes” (Éditions Nathan, 1995), de Christophe Desaintghislain et al., “cada obra de André Gide se distingue da precedente por um estilo e um tom novos, e se desvia da concepção tradicional do romance. A publicação de Os Moedeiros Falsos, em 1925, marca o clímax dessa empreitada. A partir daí, o engajamento político é a principal preocupação de André Gide. Ele denuncia alternadamente o colonialismo, o fascismo e o comunismo, impondo-se pouco a pouco como o mentor de uma geração. A carreira de escritor é coroada em 1947 pelo prêmio Nobel de literatura. Gide se dedica doravante às suas memórias. Ele morre em 1951 de um edema pulmonar”.
Talvez seja no meu preferido “Os subterrâneos do Vaticano” que Gide leva essa destruição/renascimento às últimas consequências. O romance, intencionalmente caótico, possui muitas intrigas e personagens. Há discussões e tensão entre o ultracatolicismo e o pensamento liberal. Há um grupo terrorista. E se diz até que o Papa foi sequestrado e está encarcerado nos subterrâneos do Vaticano. A obra de Gide foi bater no “Index Librorum Prohibitorum” da Santa Sé. Há quem desgoste do seu gênio. “C’est une question de mentalité”, eu diria.
Já finalizando, para os interessados em direito, lembro que Lafcadio, protagonista da trama de “Os subterrâneos do Vaticano”, comete um crime sem motivo, um homicídio, para, na sua crença mística do “ato gratuito”, provar a existência dessa espécie de conduta/delito. Mas será que esse tal “crime sem motivo” existe mesmo?
Os entendidos recomendam: “Follow the money”. Os franceses diriam: “Cherchez la femme”. Talvez nenhuma dessas recomendações faça sentido para o outrora comunista e abertamente homossexual André Gide. Será que temos apenas mais uma das ironias perturbadoras do escritor?
Ao cabo, Lafcadio cai em profundo remorso. Isso não surpreende. A liberdade e a loucura – ideológicas ou não – têm consequências. Cobram preço. Seja na sátira de Gide ou na vida real.
Marcelo Alves é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Faça um Comentário