Por Luís Correia
O medo. Ah, o medo! Esse sentimento que, muitas vezes, nos oprime e nos paralisa, é comumente visto como um inimigo a ser combatido. No entanto, em certas situações, ele se revela um poderoso aliado, um verdadeiro guardião da nossa segurança. No complexo e dinâmico cenário do trânsito, o medo, em sua dose certa, não apenas nos salva, mas é fundamental para uma condução verdadeiramente segura e consciente.
O que é o medo e sua importância para a atenção
Do ponto de vista psicológico e biológico, o medo é uma emoção primária, uma resposta inata e vital para a sobrevivência da espécie humana. Ele funciona como um sistema de alarme interno, ativando nosso corpo e mente para identificar e reagir a ameaças potenciais. Quando sentimos medo, nosso cérebro libera uma cascata de hormônios que aguçam nossos sentidos, aumentam nossa frequência cardíaca e nos preparam para uma ação rápida – seja ela de fuga ou de enfrentamento. No contexto da direção, essa ativação se traduz em um estado de atenção elevada, onde cada detalhe da via, cada movimento dos outros veículos e cada sinal de trânsito são processados com maior intensidade e urgência. É essa capacidade do medo de direcionar nosso foco que o torna tão valioso. Ele nos força a estar presentes, a observar, a antecipar. Sem essa dose de apreensão, a mente divaga, a percepção diminui e a capacidade de reação é comprometida. Em essência, o medo nos mantém vigilantes, transformando a condução de um ato mecânico em uma atividade que exige constante engajamento mental.
As primeiras aulas de condução: o medo como professor
Lembre-se das suas primeiras aulas de direção. Aquele frio na barriga ao sentar no banco do motorista, as mãos suando no volante, a atenção milimétrica a cada instrução do instrutor. Esse medo inicial não era um obstáculo, mas sim um professor. Ele o impedia de acelerar demais, de fazer curvas bruscas, de ignorar os retrovisores. Era o medo que garantia que você prestasse atenção aos pedais, ao câmbio, aos espelhos, e que cada manobra fosse executada com a máxima cautela. Essa apreensão, embora desconfortável, era o que o mantinha seguro e o ajudava a internalizar as regras e as melhores práticas de direção.
O perigo da habituação: quando o medo se dissipa
Com o tempo e a prática, a familiaridade com o veículo e com as vias cresce. As manobras se tornam automáticas, a paisagem se torna rotineira. E, inevitavelmente, o medo inicial começa a se dissipar. Esse processo é conhecido como habituação – uma adaptação natural do nosso cérebro a estímulos repetitivos que não apresentam consequências negativas imediatas. O que antes era uma situação nova e potencialmente perigosa, agora é apenas mais um dia no trânsito. É nesse ponto que reside um dos maiores perigos para a segurança viária. A perda do medo protetivo pode levar a uma falsa sensação de invulnerabilidade e à subestimação dos riscos reais. A complacência se instala, e comportamentos que antes seriam impensáveis, tornamse parte da rotina. Aquele motorista que antes era cauteloso, agora pode se permitir distrações ou imprudências, acreditando que “nada vai acontecer”.
O medo e a consciência da segurança: exemplos práticos
Se o medo protetivo permanecesse ativo em nós, muitos dos comportamentos de risco que observamos diariamente no trânsito seriam evitados. Vejamos alguns exemplos:
• Uso do Cinto de Segurança: O cinto de segurança é, comprovadamente, o dispositivo mais eficaz na prevenção de lesões graves e mortes em acidentes de trânsito. No entanto, a despeito de todas as campanhas e da obrigatoriedade legal, muitos motoristas e passageiros ainda negligenciam seu uso. Se o medo das consequências de uma colisão estivesse presente de forma vívida, a simples ação de afivelar o cinto seria um reflexo automático, uma prioridade inegociável.
• Dirigir Embriagado: A combinação álcool e direção é uma das maiores causas de acidentes fatais. O álcool, além de prejudicar a coordenação motora e os reflexos, diminui drasticamente a percepção de risco e a capacidade de julgamento. A perda do medo das consequências devastadoras de dirigir sob efeito de álcool é o que leva muitos indivíduos a tomar essa decisão irresponsável, colocando em risco não apenas suas vidas, mas as de terceiros.
• Uso do Celular ao Volante: A distração causada pelo uso do celular é uma epidemia moderna no trânsito. Uma rápida olhada em uma mensagem, uma ligação desatenta, e segundos preciosos de atenção são desviados da via. A habituação a essa prática, muitas vezes justificada pela urgência de uma comunicação, anula o medo do perigo iminente. Se o medo de um acidente causado pela desatenção estivesse presente, o celular permaneceria guardado enquanto o veículo estivesse em movimento.
• Uso do Capacete (Motociclistas): Para os motociclistas, o capacete é a principal linha de defesa contra lesões cerebrais e faciais em caso de queda. A não utilização ou o uso incorreto do capacete é um comportamento de risco que expõe o condutor a consequências trágicas. A ausência do medo das lesões que podem ser evitadas pelo capacete é um fator determinante para essa imprudência.
O medo de perder: o elo familiar com a segurança
Se o medo de nos machucarmos diminui com a habituação, talvez o medo de perder aqueles que amamos seja o catalisador mais poderoso para a prudência. Pense nisso:
• O Cinto de Segurança e o Abraço da Mãe: Antes de ligar o carro, imagine que o cinto de segurança é o abraço apertado da sua mãe, que ficou em casa, ou do seu filho, que espera por você. É a promessa de que você fará tudo para voltar em segurança para eles. Afivelar o cinto não é apenas uma regra, é um ato de amor e responsabilidade para com quem se importa com a sua vida.
• O Capacete e o Sorriso do Filho: Para os motociclistas, o capacete não é apenas um equipamento de proteção. Ele é o sorriso do seu filho, a preocupação do seu pai, a alegria da sua família. É a barreira que protege a mente que pensa neles, os olhos que os veem, e a vida que é tão preciosa para eles. Usar o capacete é proteger o futuro que você constrói ao lado de quem ama.
• O Celular Guardado e a Presença da Família: Aquela mensagem ou ligação pode esperar. O tempo que você dedica à direção é um tempo de foco total, um compromisso com a sua segurança e a segurança de todos na via. Pense que, ao guardar o celular, você está garantindo que estará presente de corpo e alma para sua família quando chegar em casa, sem interrupções ou tragédias.
• A Sobriedade e a Confiança dos Seus Entes Queridos: Dirigir embriagado é uma traição à confiança de quem se importa com você. É colocar em risco não só a sua vida, mas a de inocentes. O medo de causar dor e sofrimento à sua família, de destruir sonhos e futuros, deve ser um freio muito mais potente do que qualquer fiscalização. Escolha a sobriedade, escolha a vida, escolha o respeito por aqueles que o amam.
Resgatando o medo protetivo
O medo, portanto, não é algo a ser eliminado por completo, mas sim compreendido e canalizado. Ele é um mecanismo de sobrevivência que nos alerta para o perigo e nos impulsiona à cautela. No trânsito, onde a vida e a segurança estão constantemente em jogo, resgatar e manter um nível saudável de medo protetivo é essencial. Isso não significa viver em pânico, mas sim cultivar uma consciência constante dos riscos, uma vigilância ativa e um respeito inabalável pelas regras e pela vida.
O medo de perder entes queridos é um sentimento universal e profundo. Ele nos impulsiona a proteger, a cuidar, a valorizar. Que esse medo, em vez de nos paralisar, nos mobilize para a ação mais segura e responsável no trânsito. Que cada atitude preventiva seja um testemunho do amor que sentimos por aqueles que nos esperam em casa.
Que o medo, esse sentimento que por vezes nos oprime, possa se tornar nosso aliado mais fiel na busca por um trânsito mais seguro e humano. Afinal, quando dirigimos com medo – o medo saudável de perder o que mais amamos – dirigimos com amor, responsabilidade e consciência. E é assim que salvamos vidas.
Luís Correia é agente de Trânsito, diretor de Mobilidade do Município de Mossoró, membro da Câmara Temática de Saúde para o Transito (CTST) do Contran e do Conselho Estadual de Trânsito