Por Odemirton Filho
Vem de longe a ideia de que o homem pode cometer feminicídio para lavar a sua honra com sangue. As Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil à época do Império, permitiam ao homem cometer o crime contra sua esposa, se esta fosse flagrada em adultério.
A sociedade brasileira construída sobre bases patriarcais tolerava tais atitudes, pois a mulher não tinha os seus direitos fundamentais respeitados. Muitos foram os julgamentos no Tribunal do Júri que sustentaram a tese da legítima defesa da honra, absolvendo o acusado ou aplicando penas brandas.
Um dos casos mais famosos no país foi o da socialite brasileira Ângela Diniz, morta pelo seu companheiro, Doca Street. O julgamento foi um marco, mobilizando parte da sociedade contra os crimes passionais praticados contra as mulheres.
Apesar de todo o avanço da legislação em busca de se proteger a incolumidade física, psicológica e a vida das mulheres, sobretudo, com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, há um longo caminho a ser percorrido, haja vista que a violência contra o gênero feminino ainda é uma constante em nosso país.
Cabe explicar: a legítima defesa, se configurada, exclui o crime. A honra pode ser objetiva e subjetiva. A objetiva diz respeito ao conceito que a sociedade tem em relação a determinada pessoa. A subjetiva é a consciência que a pessoa tem de seu próprio valor, ou seja, sua autoestima.
Pois bem.
Na última terça-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 779). Assim, nos julgamentos do Tribunal do Júri essa tese não pode ser sustentada, diante de sua inconstitucionalidade, pois ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e a igualdade de gênero.
Mencionada tese ofende, sem dúvida, os direitos fundamentais das mulheres. Mostra-se em total desarmonia com os valores sociais vigentes, não tendo espaço em sociedade que busca ser plural, inclusiva e democrática. A igualdade entre homens e mulheres tem sido uma bandeira levantada há anos, devendo ser constantemente empunhada.
No julgamento, a ministra Cármen Lúcia, observou que a tese da legítima defesa da honra é mais do que uma questão jurídica: é uma questão de humanidade. “A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”.
Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da USP, O Brasil registrou 1.410 feminicídios em 2022. Em média, a cada 06 horas uma mulher foi assassinada. Houve um crescimento de 5% em relação a 2021.
Percebe-se que os casos de feminicídios vêm crescendo, apesar do recrudescimento da legislação e campanhas publicitárias de combate à violência contra a mulher. Infelizmente, faz parte de nossa cultura o culto ao machismo, no qual se exalta os homens. Desde crianças ouvimos expressões como “homem não chora”, que lugar de mulher é na cozinha, além de outras de cunho eminentemente machista.
É sabido que relacionamentos começam e terminam. Falta ao homem a maturidade para entender que, apesar do fim do relacionamento, seja pelo motivo que for, deverá seguir em frente, e que a mulher não é sua propriedade.
Dessa forma, o julgamento do STF declarando a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra foi um avanço, sepultando de vez esse malfadado argumento jurídico.
Nas palavras de Roberto Lyra, “o verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário, generoso. Ele é o cliente das pretorias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios, dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins da responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é o ódio. O amor não figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e não nos túmulos”.
Esperemos que as futuras gerações possam alcançar esse grau de civilidade.
Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça