Por Bruno Ernesto
Mais que escrever, saber ler e interpretar um texto, talvez seja o elo crucial entre o escritor e o seu público. Não digo apenas leitores, mas também os ouvintes.
Sim, um belo texto, necessariamente, não precisa ser lido pelos seus destinatários.
Embora saibamos que a leitura profunda é crucial para que possamos internalizar um texto, inclusive, propiciando até mesmo uma alteração nas ligações cerebrais com o passar dos anos, há textos que só se completam com uma boa interpretação. E, para mim, Antônio Abujamra foi um desses intérpretes.
Lembro que passei a admirá-lo como intérprete do personagem Ravengar, da novela Que Rei Sou Eu?, que foi ao ar no ano de 1989.
Apesar de ser só uma criança naquela época, e não ligar muito para nada na vida, além de brincar, aquela voz firme, forte e de uma dicção peculiar, chamou muito minha atenção.
Tempos depois, fui conhecendo sua face mais interessante, como jornalista, filósofo, apresentador e, sobretudo, seu humor cítrico que, à frente do programa Provocações, se mostrou um provocador nato.
Abujamra sempre encerrava o programa interpretando um poema ou textos literários, e o fazia de uma forma inigualável.
Me desculpem os demais intérpretes. Até hoje, não vi melhor.
Tempo desses, assistindo aos vídeos do programa Provocações, me deparei com Abujamra interpretando uma crônica de autoria da escritora Martha Medeiros, que me chamou bastante a atenção. Foi como um sincretismo religioso, a união daquele belíssimo texto com a leitura feita por Abujamra.
Foi, em verdade, uma espécie de transliteração; talvez, uma transmutação; quem sabe uma apostasia, ao escutá-lo interpretando a crônica que Martha Medeiros publicou no jornal Zero Hora, na véspera do Dia de Finados do ano 2000 – dia de muita reflexão para poucos -. intitulada “A morte devagar”, na íntegra a seguir transcrita:
“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar”.
A despeito do provérbio latino “Nemine parco” (Ninguém escapa), vez ou outra, derrapamos em atitudes que aceleram o processo. Ainda que inconscientemente levadas a cabo.
Claro que não se pode viver à margem dos problemas diários, das incongruências e do ocaso dos pensamentos positivos. Infelizmente não dá.
Também não podemos, evidentemente, viver numa letargia, inação ou introspecção que beire ao conformismo. Nem tanto, nem quanto; com dizem. Mas, sempre que possível, nem sempre, diria.
Talvez, inconscientemente, caiamos no Paradoxo de Salomão, quando podemos dar bons conselhos e, nós mesmos, sermos um desastre tomando nossas próprias decisões.
Talvez devêssemos, vez ou outra, não seguir certos conselhos, fugir da congruência e ortodoxia, e mandar às favas a coerência. Quem sabe, falar dez vezes antes de pensar.
A iniciar por nós mesmos. Porque a vida está aí, devagar e sempre.
Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor