Por Marcos Ferreira
Agora bate em meu peito um coração apaziguado. Porque não me encontro refém, não ao menos hoje, de ímpetos misantrópicos ou furores políticos. Careço me livrar dessas toxinas que envenenam meu coração e minha alma. Supondo-se, claro, que possuo tal coisa. Talvez possua, pois toda noite me vejo voando fora desta carcaça que, num futuro próximo, a bicharia há de roer. Pois é, ganho os ares feito um Clark Kent sem o seu traje impecável, sem capa vermelha.
Está visto que não sou o Homem de Aço. Sou, quando muito, um minúsculo homem de letras. Digo isto sem charminho nem falsa modéstia. Repito aqui, advogando em causa própria, aquele aforismo do modernista Mário de Andrade: “Devemos chamar ao tostão pelo seu modesto nome de tostão”. Sempre me esqueço de narrar esses voos oníricos ao meu psiquiatra, o Dr. Dirceu Lopes.
Acho que 2022 começou com bons auspícios para mim. Sobretudo pelas precipitações pluviométricas (gosto desta expressão dos meteorologistas) nos últimos dias. Amo este céu plúmbeo, nublado, com chuvas volumosas e duradouras, apesar da situação periclitante do meu telhado e desta Euclides Deocleciano, que depressa se transforma numa espécie de souvenir do rio Amazonas. Aprecio tudo isso. Que me perdoe o querido poeta Aluísio Barros, fã do astro-rei.
Examino este início de ano e pressinto que vêm coisas boas por aí. Estou mais propenso às amizades e à concórdia. Até o jornalista Carlos Santos, meu editor, aceitou um convite meu para um cafezinho numa tarde-noite de prosa muito instrutiva e descontraída. Faltou, entre outros, o cronista Odemirton Filho para dividirmos um pacote de bolachas sete-capas da panificadora Meçalba.
Atendendo a uma antiga sugestão do Dr. Dirceu Lopes, enfim me matriculei numa academia de ginástica. É a busca (ou retomada) pela minha outrora admirável performance de atleta amador de voleibol, quando eu saltava mais de oitenta centímetros e pesava sessenta e oito quilos, dez a menos do que hoje. No momento, portanto, estou bem. Os novos antipsicóticos, exceto por algumas reações adversas de natureza leve, parecem atuar melhor que os anteriores.
A saudade de Gudãozinho, minha mimosa gatinha envenenada recentemente por um elemento perverso, ainda é algo com que preciso lidar melhor. Ela continua presente por meio das fotos no telefone, dos vídeos, da caixa de areia, das vasilhas de água e ração, dos brinquedos e da caminha onde dormia. Fiquei arrasado. Porém há outros bichinhos de rua por aí precisando de amparo e amor.
Este ano, como diz a letra daquela música, “quero paz no meu coração” e também no meu espírito, coisas estas que desejo a todos os meus hipotéticos e estimados leitores. Aqui, enquanto escrevo estas páginas, o clima segue ameno, sem aquele costumeiro mormaço de Mossoró. Há pouco um pardal entrou pela porta da cozinha, voou até as rótulas da porta da frente e retornou por onde viera. Não sei o que ele queria, entretanto lamentei não ter ficado um pouco mais.
Há bastantes pássaros à volta desta casa. É um luxo, uma riqueza, contar com o canto deles a todo momento do dia. Alguns agora vêm à mesa do terraço, dominam o quintal, especialmente depois que Gudãozinho morreu. Como vivo aqui sozinho há uns quinze anos, penso que eles se habituaram a mim. Julgam-me, com razão, inofensivo. Do mesmo modo as lagartixas, pombos, iguanas.
Não as hostilizo, não as apedrejo, contudo devo confessar que as lagartixas me aborrecem quando, vez por outra, alguma invade a casa. Além disso, recordam-me certos indivíduos sem opinião própria, balançando a cabeça a tudo e a todos. Mas, ao contrário daquelas figuras, as lagartixas caçam os monstros que mais me causam medo, asco, repulsa, pavor — baratas. Embora aqui em casa quase inexista lixo orgânico, coisa que atrai esses monstros de asas envernizadas.
Outra coisa que muito me agrada aqui, além da variedade de pássaros canoros, é o barulho constante do vento arengando com os ramos da grande mangueira na residência aos fundos desta. Lembra-me o som da chuva, o quebrar das ondas em uma praia tranquila, bem longe, por exemplo, daquela fuzarca de Tibau. Agora lhes peço licença. Pois desejo ir para a academia. Não a de letras.
Que este seja um ótimo ano para todos.
Marcos Ferreira é escritor