Por Marcos Ferreira
Penso em quanta vida você tinha pela frente. Uma mocinha cheia de saúde e vigor, uma bichana sapeca, irresistível. Assim era você. Poderíamos chegar à velhice juntos. Isto supondo que eu alcance uma idade avançada. Porém o acaso, um destino injusto e tão perverso, tirou você de mim. Estamos irremediavelmente separados. Onde você estiver, Preciosa, saiba que você nunca será esquecida.
Restaram sobre os móveis as marcas dos seus pesinhos. Todas as suas coisinhas continuam aqui: a caixa com a areia que você nem pôde usar; a ração também posta recentemente; a vasilha com a água que eu trocava com frequência por outra geladinha. Sim. Daqui por diante, neste nosso diálogo (na verdade um monólogo proferido em silêncio), empregarei uma porção de diminutivos repletos de amor e brandura. Durante esses dias fui dormir (ao menos tentei) com a janela e a porta da cozinha abertas, na esperança de você voltar a qualquer hora da noite.
Você não calcula o quanto é difícil enxergar o que escrevo neste momento tendo nos olhos um oceano de tristeza e saudade. É complicado, Preciosa. Talvez alguém me diga: “Adote outra gatinha”. Não quero! Não tenho mais lugar, não tenho mais espaço no meu coração onde se possa inserir outra cicatriz gerada pela morte de uma ternurinha como você. Você se foi para sempre, querida Preciosa, e me deixou todo esse vazio impossível de ser preenchido por nenhuma outra.
Lembra de quando a gente se encontrou, da primeira vez que nos vimos? Naquele instante (com um ou dois meses de vida, abandonada no mundo, indefesa, passando fome e sede, doente e invisível perante a maior parte das pessoas) senti que as nossas almas tinham tudo a ver. Você foi um arrimo, uma companheirinha, o meu facho de luz, um farol nesta minha existência por vezes obscura.
Ah, Preciosa! Você fazia a Solidão de gato e sapato. A sua presença, além de uma dádiva para este meu espírito de pescador de encantamentos, era um dia a dia de afagos, mimos, cumplicidade. Seus pelinhos permanecem, sobretudo, nas roupas de dormir. Tínhamos, você sabe, uma sintonia, uma praxe toda especial quando se aproximava a vez de sossegarmos, após eu tomar os meus remédios e ver um pouco de televisão.
A rede armada na sala, duas cadeiras perto de mim. Você ocupava uma e na outra ficavam meus óculos, o telefone e o controle remoto da tevê.
Depois de passar um tempinho comigo na rede, de afagar o meu peito com as suas patinhas acolchoadas e conferir o meu cheiro, como se assim estivesse me dando um beijinho de boa noite, você ia para a sua cadeirinha. Daí a pouco você já estava dormindo. O efeito dos meus remédios também chegava, eu desligava tudo e a gente dormia dessa maneira. Até que na manhã seguinte você me acordava logo que os passarinhos começavam a pipilar nos verdes condomínios das arvores.
Agora não há mais nada disso, Preciosa; apenas esta dor, a ausência, a salina que se formou nos meus olhos e vai riscando o meu rosto. Procurei você em tantos lugares. Perguntei a um monte de moradores deste bairro, contudo nenhum deles me deu notícias de você, Preciosa. Nem o apoio das redes sociais foi poderoso o bastante para informar o seu paradeiro. Achei que estivesse muito distante, porém você estava quase debaixo do meu nariz. Isto é, em cima do telhado de uma casa vizinha. Somente o mau cheiro, após esses dias de buscas, denunciou a sua localização.
Você desapareceu naquele começo de noite. Até agora não sei o que aconteceu. O que eu sei é que nunca mais terei as suas pequenas travessuras, as suas brincadeiras repentinas, os zapetrapes vez por outra nos meus calcanhares, a sua meiguice à noite, no horário em que a gente se preparava para dormir.
Dava um trabalhinho, mas eu adorava fotografar você. O seu olhar me transmitia muita coisa boa. Sentia-me tão querido por você. Guardarei as suas fotos, os vídeos e as boas e tantas recordações.
Adeus, minha Preciosa!
Marcos Ferreira é escritor