“Futebol não é coisa pra mulher”. Ouço há tempos essa afirmação. Nem a enxurrada delas nos estádios, sempre muito produzidas, melhorou o jeito machista com que a maioria de nós as enxerga.
A picardia masculina ainda exagera nas piadas, no desdém. E ninguém invente de perguntá-las sobre regras. Podem confundir com outra regra: a biológica, do seu ciclo mestrual. “Impedimento?” Nossa Senhora. Deixa pra lá.
Paixão do brasileiro, como não associar o futebol à mulher, outra paixão, mesmo que muitos assim não pensem? Ou gostem. Por favor, sem maldades novamente. É apenas uma observação óbvia, sem preconceito.
A “maria-chuteira” também não é um subproduto do meio. É uma versão pro meio, da profissão mais antiga do mundo, com outra roupagem. Só isso.
E a carne é fraca, reconheçamos. Com ou sem chuteiras.
A bola, rechonchuda, seduz os dois gêneros: homens e mulheres parecem tocados por sua esférica forma de se insinuar; folgosa, escapa das mãos espalmadas do goleiro, faz dançar o zagueiro cintura dura; beija a rede como se fosse a única.
Encanta.
Histórias eu tenho muitas para contar. De jogos inesquecíveis, para desabar de alegria. Tem aqueles que nem é bom falar. Não carece, por magoar muito. Reabrem feridas. Mutilam a alma.
Outras tantas são de encher os olhos de emoção; eriçam os pelos. Com direito a crônicas de Nelson Rodrigues e Armando Nogueira, além da narração de Januário de Oliveira, sempre “cruel, muito cruel!” Para ser mais enfático: “Sinistro!”
Podem ser aquelas feitas na imaginação, passada pelo rádio colado ao ouvido e que ecoava em forma de vinheta, numa apresentação dispensável: “Waldir Amaral…” E ele lá, todo prosa a matar no peito e emendar: “…Deixa comigo!” O Maracanã desabava num “aaahhh!!!” A gente, mesmo distante, sentindo-o tremer aos pés.
Tem muitas que estão gravadas à memória desse menino-velho, aboletado na cadeira do cinema para ver o “Canal 100”, com a trilha “na cadência do samba” (tan, tan, tan, tan, tan… que bonito é!!), letra de Luiz Bandeira em arranjo de Waldir Calmon. No telão, a revista da semana e o show de imagens em superclose.
Nossos ídolos enormes, quase saltando sobre nós. O “v” da vitória de Mickey; punhos cerrados de Rivelino. Eis o “Gato Félix” em mais uma bola despachada para escanteio… a galera em delírio. A narração grave e cavernosa de Luiz Jatobá reporta o que parece ser meu campo imaginário. Eu, o próprio craque. Vago sonhando.
Tricolor! Alguma dúvida?
Dona Maria José Bezerra, também. Vou contar a mais recente dela.
Ex-vereadora em Upanema, essa mulher de fibra, mãe de uma prole honrada e referência familiar em sua cidade, morde os lábios e comprime uma mão contra a outra. Ansiosa, espera o filho Anízio Júnior, o “Juninho de Mãinha”, como é carinhosamente conhecido, lhe trazer o resultado do jogo Fluminense x Atlético-GO.
– Ganhamos de 3 x 2, mãinha – desmancha-se Juninho.
Alívio. Ela pode desacelerar e respirar em paz.
O jogo seria reprisado pelo canal por assinatura do qual a família é assinante. Só aí ela, prestes a completar 73 anos, teria coragem de ver a partida épica do seu “Fluzão”, tranquilamente. Contudo não é bem assim que acontece.
Com o placar adverso até os 36 minutos do segundo tempo, os rubro-negros do Atlético impondo 0 x 2, dona Maria José vira-se, tensa, com olhar melancólico e terno para o filho e confessa-lhe seu desapontamento diante da informação passada. Sente-se lograda:
– Meu filho, você me enganou. A gente está perdendo!
– Espere, tenha paciência; eu não lhe enganei, não – defende-se.
Em oito minutos finais, o Fluminense vira para 3 x 2. Em salto da cadeira, emocionada como se assistisse o jogo ao vivo, em pleno Engenhão, ela exclama à exaltação da paixão tricolor. Humilde, ainda, no perdão por desconfiar do seu time e do rebento: “Meu filho, que coisa maravilhosa! Nós ganhamos!”
Maravilhosas histórias. Outras tantas. Dela mesma, dona Maria José. De coragem.
Coragem para desembarcar no Rio de Janeiro e aguentar 90 minutos de Fluminense 1 x 0 Guarani, em dezembro de 2010. Ao lado de um filho e sobrinho, suportou bravamente mais essa provação. O título foi uma benção.
Seu marido, Anízio, ainda bem jovem em sua Upanema, em sítio distante da área urbana, todo final de semana ia para a cidade. No retorno, os sobrinhos que o tratavam por “Didi”, lhe perguntavam o destino naqueles dias de ausência. “Fui jogar pelo Fluminense,” respondia-lhes serenamente, com pinta de um “Príncipe etíope”, elegância tricolor nos gramados.
Inocentes, crédulos, os meninos idolatravam mais ainda o tio, que eles acreditavam realmente jogar no Fluminense, pois ouviam seu nome, narrado em som estridente do rádio enorme posto à sala da casa humilde, “santuário” de uma paixão.
Talvez – lá em cima, noutra dimensão, seu Anízio já tenha se explicado ao verdadeiro Didi, criador da “folha-seca”. Tudo não passou de uma brincadeira inocente. “Indivíduo competente”, diria Waldir Amaral.
Seu Didi, o de Upanema, concordaria sem pestanejar, envolto numa camisa grená, verde e branco.
Como autêntico pó de arroz, fiquei maravilhado e emocionado com este artigo, parabéns mais uma vez pelo excelente trabalho desenvolvido em prol de um Jornalismo de qualidade.
Att,
Joselito da Silveira
Assuense radicado em Macaíba.