— Aqui está bom — disse o garçom Raimundo.
Quase cheia, a Kombi da Boate Planeta parou na esquina do ferro-velho. Madrugada de sexta-feira, mais de três horas. Geralmente ele é o último a ser deixado em casa. Dessa vez, porém, os colegas votaram por desviar da rota habitual e deixá-lo primeiro. “Queremos saber onde você se esconde, Raimundo”, dissera Augusto, o barman. Então, por gentileza e alguma curiosidade, o jovem garçom chegaria menos tarde.
Chovera. O lugar estava desértico, alagadiço.
— Tem certeza, Raimundo? — indagou o motorista Fernando, que se encontrava em sua primeira semana de trabalho, de maneira que ainda não estava muito familiarizado com a rota e os endereços de todos os empregados.
— Sim. Minha casa fica bem ali.
— Até amanhã, Raimundo!
— Até. Obrigado a todos vocês!
Abriu a porta corrediça, desceu com o paletó em cima do ombro. Só então se recordou do volume. Alguém avisou que o celular dele ficara sobre o banco. Deu meia-volta. A senhora Conceição, a boquirrota cozinheira, que estava na parte da frente, pareceu ter notado alguma coisa de suspeito. Pôs o olhar diretamente na linha de cintura do rapaz. Encabulado, Raimundo cuidou logo de cobrir a saliência com o paletó.
— Vivo esquecendo esse telefone…
O veículo foi-se embora com os demais colegas da boate. Entre estes estava Gabriela, operadora de caixa, vinte e poucos anos, responsável por aquele incidente erétil. Raimundo seguiu pela rua sem pavimento. Sua casa estava a uns duzentos metros. O músculo repetia espasmos. Naquela ocasião caía apenas umas gotículas de chuva. O inverno trouxe otimismos. Açudes encheram; a vegetação e a esperança dos agricultores reverdeceram; matou-se a fome e a sede dos bichos; salvaram-se superstições.
“Será que a fofoqueira da Conceição percebeu alguma coisa? Se sim, deve estar falando sobre isso no caminho. Não duvido nada”, pensou.
Um raio fotografou telhados, alumiou quintais. Veio a trovoada. Cães no entorno se puseram a latir, grilos emudeceram nos esconderijos. O vento agredia as árvores e os fios do posteamento, produzindo um assobio intermitente. Raimundo recordou-se da lástima em que se encontra o telhado de sua casa, a esposa a condenar-lhe a falta de ação. Desceu pela rua enlameada. Driblava poças d’água, o paletó dobrado debaixo do braço, as mangas da camisa acima dos cotovelos, a mochila pendurada ao ombro.
Naquele instante lhe sobreveio uma sensação de perigo. Virou a cabeça, olhou o caminho às suas costas, os olhos vermelhos de sono piscando por trás das lentes de grau. Encontrava-se ali um homem desarmado, desprotegido, vulnerável; a mochila podia atrair meliantes. A criminalidade neste município prossegue aterrorizando o povo, enchendo os bolsos de proprietários de casas funerárias e centros de velórios.
Na semana passada, durante um assalto a uma panificadora do bairro, o dono reagiu e foi morto pelo assaltante com dois tiros. O Jarbas leiteiro ficou sem a motocicleta e a carteira com todos os documentos no dia de Nossa Senhora Aparecida. Até o momento, pelo que se sabe, nem a moto nem os documentos apareceram.
Não está fácil para ninguém. Um sargento da Polícia Militar teve a sua jovem e bonita esposa levada por um estranho. A digníssima foi embora com o desconhecido por vontade própria. Mas não tratemos aqui sobre senhoras que se extraviaram sob o nariz dos maridos. A negligência dos homens para com as mulheres é um caso antigo. Muitos se dão conta disso só depois de abandonados. O garçom corre esse risco.
Raimundo começou a se sentir à vontade. A lembrança de Gabriela voltou a mexer com ele. A sensação de perigo se afogou nas poças d’água, as passadas caíram de ritmo. Já não tinha pressa de chegar quanto no instante em que descera da Kombi. Teve a impressão de que o vulto de Gabriela se apresentara diante dele, dissipando-se rapidamente. Buscou retê-la na memória. Recordou-lhe a covinha na ponta do queixo, os olhos verdes e os cabelos negros, a pele morena ainda exalando um perfume amadeirado, além da blusa a exibir um pouco das alças do sutiã. Não é de agora que essa moça o atrai.
Meteu a mão no bolso esquerdo a fim de melhor acomodar o volume. Aí se apercebeu da umidade viscosa que ultrapassara o tecido do forro. Sungou os testículos, passou a mochila de um ombro para o outro. Durante o trajeto, que durou pouco mais de vinte minutos, supôs que a colega lhe pressionava uma das coxas. Isto o atiçou. Aproveitou os solavancos e o balanço do carro para retribuir o hipotético estímulo.
Mas não passou disso. Manteve-se discreto, seguiu a prudência; nenhum gesto ousado. Ateve-se ao plano das hipóteses, ao vaivém das conjecturas. Imaginou-lhe a maciez da pele, o frescor dos lábios, a firmeza das coxas, seios, nádegas.
— Meu Deus! Que pedaço de mau caminho!
Aproximava-se das três e quarenta quando enfim Raimundo pisou a soleira de casa. Coçou a cabeça e olhou o céu. Deu algumas pancadinhas na porta e esperou. Algum tempo depois pôde ouvir o arrastar das sandálias vindo em sua direção. Por hábito, a mulher perguntou quem era. Ele respondeu. Francisca abriu a porta. Bêbada de sono, sem olhar no rosto do marido, deu-lhe as costas e retornou na penumbra.
Raimundo entrou calado. Pôs o paletó e a mochila sobre o sofá. Encaminhou-se para a cozinha, abriu a geladeira e destacou algumas uvas do cacho que restara em uma bandeja de isopor. A chuva recomeçou com raios e trovões. De novo a lembrança de Gabriela invadiu a sua cabeça. Ele foi ao quarto, despiu-se, pegou uma toalha e rumou para o banheiro, a força do vício solitário a lhe inflamar os pensamentos.
Marcos Ferreira é escritor
Esse conto me trouxe a memória da canção do Reginaldo Rossi: ” Você é o meu pedaço de mau caminho/ a medida certa para o meu carinho/ a coisa mais linda que eu conheci” Valeu Marcos Ferreira
Obrigado, poeta.
Excelente recordação essa sua sobre o Reginaldo.
Abraço e ótima semana para você.
Que conto gostoso de ler. Muito rico em imagens.
Parabéns!
Bravo cronista do cotidiano!
Um abraçaço
Obrigado, querido Amorim.
Forte abraço, saúde e paz.
Muito bom! Mostrando que o pensamento é mais veloz que a luz e o som e que não encontra barreiras! A imaginação é a matéria prima dos criativos! Você é muito criativo! E descreve com primazia qualquer situação! Sou sua fã! Boa semana!!!
Muito bem retratado e descrito o Raimundo personagem de sua crônica de hoje, difícil é não encontrar um cinquentão, sessentão, setentão que não tenha sido no pretérito um Raimundo da vida. Principalmente nos tempos que um Raimundo do mundo não podia ver uma mulher passar uma perna pela outra para se acomodar, usar uma saia acima do joelho, uma calça comprida apertadinha, ou mesmo dançar uma música inteira usando no máximo o espaço de quatro pedras de mosaicos de um dancing de club ou boate, abraçando sua companheira e sonhando estar no paraíso com a sua Eva.
Que tempos bom, meu estimado amigo Marcos!! Ixi, deixa pra lá… recordar é viver e vamos viver a vida que é o que nos resta.
Poucos jovens ao ler sua crônica de hoje, com certeza irão se surpreender, e muito!
Esta geração de hoje não sabe ou mesmo tem noção daquilo que nós de outras épocas tivemos de bom. E isto se dar devido as facilidades e comportamentos diferentes da cultura da atualidade mundial.
Por isso, prefiro ser o Raimundo das tértulias e vesperais dos clubes Ipiranga, ACDP e AABB, oxalá da Boite Snob que foi o grande passo na vida social de Mossoró, para se chegar ao ápice da modernidade dos dias atuais.
Sua crônica de hoje mostra mais um Raimundo do ontem, pois os de hoje não necessitam de blazer para disfarçar aquilo que se movimenta em certos momentos nas nossas partes corporais, pois os Raimundos de hoje escancaram mesmo!!!
Inté o próximo domingo Nobre Mestre das Letras.
Seu Pedaço de mau caminho de hoje estar supimpa. PARABÉNS!!!
Cronista caprichoso, Marcos Ferreira, é a soma das fertilidades mágicas do pensamento. Um verdadeiro artesão da palavra!
Um pequeno conto de grande dimensão existencial quase erótica, Como sempre Marcos Ferreira de forma elegante, discreta e objetiva nos trazendo o melhor do nosso cotidiano em verso,.prosa e por que não dizer ,.poesia do cotidiano, com traços picantes…!!!
Kkkkkkkkkkkkkk
Não sei porquê cargas d’água a exímia crônica arrastou-me para os meus primeiros arroubos libidinosos da juventude em minha pacata e provinciana Apodi do ano de 1973. Tesão à flor da pele, nos meus 14 anos de idade. Todas as noites ficava acomodado em um dos bancos do Jardim (Era esse o referencial da nossa Praça Central). O meu câmbio de tão duro ameaçava romper a calça modelo faroeste. Os férteis não sutis rasgavam as fantasias lúbricas. De repente o namoro arrochado, já ameaçando as fronteiras do incontrolável acesso orgasmo. A energia da cidade era fornecida por Usina elétrica municipal, cujo fornecimento encerrava-se às
21:30 h., ficando a cidade entregues à escuridão, atiçando ainda mais a gula alucinada do tesão. O sarro chegava às alturas. O meu Bluetooth parêava o Wi-Fi da xabocla, sem, contudo, derivar para as tentadoras conxumbrâncias carnais. Resultado: Concluído o gostoso sarraço, chegava em casa com os “possuídos” doloridos, devido o acúmulo de espema não ejetado. Só tinha uma saída para sanar a estonteante situação : por em prática a vuptuosa coreografia manual do cinco dedos contra um Bluetooth que não parêou ‘in corporis’ no Wi-Fi da namoradinha, respeitando a tradição da não consumação carnal sem o compromisso do casório. Era uma luta medonha. Rsrs.
Taí um conto arretado. A gente parece que está dentro dele! Parabéns, Marcos.