domingo - 31/05/2020 - 08:02h

Perscrutando o futuro…

Por Marcos Araújo

Uma das divagações mentais mais frequentes no momento é sobre o futuro da humanidade pós-pandemia. Quem já não se pegou conjecturando como deve ser o amanhã, quando supostamente o mundo volte ao “normal”? Em pensamento mais restrito, geograficamente, quantos não se perguntaram: Quo vadis, Brasil? Num exercício de futurologia, podemos imaginar que viveremos assim…

De fato, haverá mudança, principalmente nos hábitos. As pessoas se acostumarão com o ambiente doméstico. O tempo será valorizado, e com isso menos eventos irrelevantes, menos viagens de avião desnecessárias ou reuniões inúteis.

Escritórios com pelo menos metade do tamanho atual. Mais gente trabalhando em casa, para alegria de Slack, Zoom, Teams, Webex, Hangouts, Classroom ou outros badulaques digitais de nome em inglês. Os restaurantes terão que trabalhar mais com delivery (mais estrangeirismo!), as salas de cinema sofrerão esvaziamentos com o uso das plataformas de streaming (não teria um similar em português?), os shows serão substituídos, em parte, pelas lives (arre égua, tem umas que bem poderiam se chamar dead).Na educação, haverá uma proliferação do ensino a distância (EAD), cuja eficácia eu tenho minhas dúvidas. A mobilidade urbana também será adaptada, com uso de transportes alternativos (Uber e táxis) e valorização da condução coletiva. A tecnologia continuará dominando, sendo ponto fundamental para as diversas formas de comunicação humana. Antes a tecnodependência em redes sociais estava nos jovens, no futuro, adultos e velhos estarão viciados da mesma forma.

Quanto ao nosso comportamento no campo cultural, político e moral (a nossa organização social como um todo), acredito que uma experiência de alguns meses em nada adiantará para promover uma mudança. Não antevejo que haja um aperfeiçoamento social.

Certas condutas típicas de um povo são tão repetitivas que acabam por receber um nome e uma explicação padronizados. Conduta, nome e explicação formam assim a unidade de uma auto-imagem que, ao tornar-se um lugar-comum, um topos, um modo de agir que particulariza os seus cidadãos.

São características positivas ou negativas a partir do padrão de conduta. O povo inglês tem fama de pontual (pontualidade britânica), o alemão de ser meticuloso, o teatralismo italiano, a ranhetice francesa, o praticismo americano, o sentimentalismo russo, a modéstia japonesa, a melancolia judaica, tudo isso é reconhecido mundialmente.

Sendo o esquema de conduta um padrão de reconhecimento, como somos reconhecidos lá fora?  Qual seria a nossa auto-imagem mais comum? O que nos caracteriza como povo? Não temos uma boa imagem externa…

É inegável que a sociedade brasileira atravessa uma crise política, jurídica, moral e ética sem precedentes. Maior do que a crise da saúde e da economia. O problema não é de agora.

O mal é do amálgama moral com que foi formada a nossa nação. Temos máculas enraizadas na cultura brasileira, com registros desde o Brasil Colônia. Tem-se como exemplo a denúncia do erudito PADRE ANTÔNIO VIEIRA endereçada ao rei de Portugal, cujo conteúdo alertava sobre a “arte de furtar” e a desfaçatez dos próprios funcionários do monarca.[1]

Na obra Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda relata sobre a má formação social brasileira, dando como característica do nosso perfil psicológico e da nossa essência exaltar a ética do aventureiro, estimular a audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem. A plasticidade social do povo brasileiro advém do colonizador português, que seguiu a ética da compensação imediata e buscava a “riqueza da ousadia e não a riqueza do trabalho”, que pudesse “extrair do solo grandes benefícios, sem grandes sacrifícios” (RAÍZES DO BRASIL, 1995, pág 49).

O Brasil é um laboratório da História em matéria de instabilidade política e institucional. Na colonização, viveu os atropelos dos usurpadores. Cada um deles oferecendo prebendas e roubando riquezas. Os donos “descobridores” e seus concorrentes instalaram uma luta constante no processo de rapinagem que durou cerca de três séculos.

O “homem cordial” descrito pelo sociólogo Sérgio Buarque é exatamente o produto de um processo de socialização daquele indivíduo subjugado aos valores da família patriarcal que não tem a capacidade de mensurar com uma exatidão segura os limites entre o público e o privado. Sua ética é pautada pelo personalismo, que confronta a impessoalidade, a abstração, a racionalidade e a coletividade pela cooperação.

Na França do Século XVIII, as ideias de Rousseau e do iluminismo inspiraram profundamente a Revolução francesa. Também parte das revoluções do Século XX tinham a inspiração do existencialismo de Kierkegaard, Edmund Husserl e Martin Heidegger.  A preocupação do ser no mundo e suas variadas e possíveis relações com o outro e com tudo ao redor de si fez com que se criasse uma ordem mundial em defesa dos direitos humanos.

Como vivenciamos essa política mundial humanista aqui no Brasil? O que dizer quando o passeio dominical dos brasilienses e de elevada parte da classe média-alta que vive nas capitais brasileiras ainda é de se aboletar em seus veículos para, em carreata, propugnarem por uma intervenção militar? Lembrando o Marechal Castelo Branco, essa população andeja e desinformada são como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias ao Poder Militar”.

Tudo está irremediavelmente perdido? Será que alguma solução se nos apresenta?

Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?  É preciso saber, contudo, quais os sonhos nos orientam.

Morrem as ideologias e envelhecem as filosofias, mas os sonhos devem permanecer. Eduardo Galeano pedia, em um de seus textos célebres, que fixássemos  nosso olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível, onde o ar fosse livre de todo o veneno que vem dos medos e das paixões humanas.

Que atitudes tomaremos, para melhorar o nosso espaço público depois da pandemia? Quais as mudanças sociais que empreenderemos no nosso meio social? Quais sonhos alimentamos?

Sonho com um pais que não seja polarizado politicamente entre “comunistas” e “não-comunistas”; que não fosse privado e apropriado aquilo que é público; que nossos políticos entendessem que a política é a arte de fazer o bem, e não de se dar bem; que Justiça se faz também com igualdade social, e não por injusta acumulação patrimonial;  que o capital possa sempre exalar o cheiro da honestidade, e não da putrefação do ilícito; que a tolerância seja a nossa maior característica, longe da turrice da ignorância; que a estultície seja punida e a burrice da manipulação política seja considerada crime grave, com a condenação em estudos mínimos dos compêndios clássicos de Platão, Sócrates e Aristóteles; que a educação, bem maior de um povo, passe muito além da leitura superficial do maniqueísmo filosófico de autores considerados da “direita” ou de “esquerda”; que a merenda escolar deva ser apenas um alimento, e nunca uma forma de promoção de política educacional; que sejam proibidas todas as formas de censura; que seja condenado com prisão perpétua o racista, o agressor da mulher, ou o que comete crimes contra a criança ou contra o erário.

O melhor dos mundos ainda é aqui. Nosso povo é único, mesmo com tantas mazelas. É na criatividade, no instinto de sobrevivência coletiva, na valorização do outro, na interdependência, no afeto e no engenho do cérebro humano que depositamos nossas esperanças.

Este é um futuro possível. Basta sonhar!

Marcos Araújo é professor e advogado


[1] VIEIRA, Padre Antônio. Arte de Furtar. São Paulo: Martin Claret, 2006, p.30-31

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Grande parte dos integrantes da chamada classe merdia brasileira, durante toda sua vida, seja como pessoa ou profissional, vivem, labutam e doutrinam no seu dia-a-dia, demonstrando por a + b que o caminho “adequado” é a exclusão social, o enriquecimento à todo e qualquer custo.

    Mais ainda, ao longo da sua trajetória pessoal e profissional, não só estiveram ao lado a lado dos supostos homens de bem, assim como, politicamente, permanentemente se associaram e apoiaram àqueles que sob essa ou aquela matiz ou sigla partidária, estiveram á frente ou nas sombras das Oligarquias e Monarquias no descortinar dos fatos políticos CONSERVADORES , EXCLUDENTES, PRA NÃO DIZER OBSCURANTISTAS REACIONÁRIOS E RECONHECIDAMENTE AUTORITÁRIOS.

    Oportuno não esquecermos, essas figuras, na verdade, silenciosos e polidos representantes da extrema direita, desde sempre, intentam eternizar uma sociedade desigualmente dantesca, sociedade essa, que embora coexista com a tecnologia da informação em tempo real e a revolução do mundo digital em pleno século XXI, infelizmente, persiste com práticas administrativas, jurídicas e políticas na direção do retorno Da Dita Pátria Mãe Gentil à Idade Média, tanto nos costumes quanto na economia.

    Da leitura do texto do articulista e jurista Marcos Araújo, quem realmente o conhece, só poderia ter uma reação….

    Oh tempos…Oh tempos…!!!
    Observemos pois, como as pessoas supostamente mudam!

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

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