Por Bruno Ernesto
Certamente você já leu e releu que, para a maioria das pessoas, o rito de final do ano segue um roteiro: férias, confraternizações, comemorações, encontros, reencontros, tempo de fraternidade, orações, enviar mensagens de final de ano via whatsapp e, para poucos, reflexão.
De fato, é um período muito bom. Pena que dura pouco. Deveria ser assim o ano todo. Entretanto, seria paradoxal. Como alguns comportamentos.
Ter um período para descansar é extremamente necessário. Não é preciso fazer uma pesquisa acadêmica para chegar a essa conclusão. Experimente passar uma semana sem dormir.
Há uma expressão italiana para se dizer que está sem fazer nada. Só aproveitando o ócio: Dolce far niente. Seria tipo, “O bom de não fazer nada”.
Pois bem. Mas, e quanto a refletir? Penso que também demanda tempo. Pode nem parecer, mas leva muito tempo.
Nesse período os restaurantes estão abarrotados, o comércio fervilha, os aeroportos e estradas um caos; muitas pessoas postando nas redes sociais suas árvores de Natal, presentes, ceias, encontros e reencontros, declarações de amizade e amor. Alguns, até um pouco de caridade e religiosidade, genuínas ou não.
Nessas mesmas redes sociais, começam a fervilhar os memes relacionados ao período festivo. Uns bem engraçados e debochados. Porém, bem realistas.
Também há uma enxurrada de mensagens via whatsapp. Em especial nos grupos. Além daquelas distribuídas em forma de listas automatizadas, e aquelas distribuídas a esmo. Não vou nem mencionar as enviadas na virada do ano.
De todas as celebrações de final de ano, certamente, o Natal é a mais simbólica de todas.
A simbologia dessa data é inigualável, do ponto de vista espiritual. Ou deveria ser.
É um momento de reunião e reflexão com a família e os entes queridos. É uma oportunidade, inclusive, de se aparar eventuais arestas.
Além do aspecto religioso desse momento – Sim, o Natal é uma celebração religiosa -, há uma carga axiológica que permeia todo esse momento.
Veja que esse valor, ou aquilo que é valorizado pelas pessoas, é uma escolha individual, produto da cultura em que o indivíduo está inserido.
O escritor russo Liev Tolstoi é o autor de uma das frases mais representativas acerca de um sentimento abstrato: “Todas as famílias felizes se parecem. As infelizes, são infelizes à sua maneira.”
Apesar dessa frase falar sobre família, ela dever ser trazida para as relações interpessoais hoje além da própria família. É bem mais abrangente. No fundo, diz respeito ao fato de que o que deveria prevalecer seria o sentimento genuíno e não o contrário.
Veja que muitas pessoas sequer cumprimentam as outras durante o ano. Mesmo aquelas com que mantém contato diariamente, quer seja no seu condomínio, na academia, supermercado, faculdade, igreja, ou mesmo no trabalho. Não há o mínimo de empatia para com o próximo. Percebe-se que, muitas vezes, sequer há cordialidade.
Todavia, o final do ano, paradoxalmente, tem esse poder mágico de convergir o espírito de confraternização adormecido durante o longo do ano que vai se expirando.
No Natal, celebra-se o nascimento. Entretanto, paradoxalmente, parece que muitos só podem celebrar a Páscoa.
Essa ressignificação foi brilhantemente abordada pelo pintor Salvador Dalí, em sua obra denominada Cristo de São João da Cruz, de 1951. Obra que marcou seu retorno ao catolicismo, depois de um período de ateísmo.
Nela, Jesus Cristo não possui coroa de espinhos; quem observa Jesus, o observa de um ângulo superior, que seria o ângulo de observação de Deus; não há pregos em suas mãos ou pés, nem sangue ou mesmo a inscrição em latim, “Iesus Nazarnus, Rex Iudeum” (INRI), que significa, “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Entretanto, a simbologia continua lá e é de nítida compreensão.
Porém, há um outro detalhe nessa obra de Salvador Dalí que passa despercebido, porém tem grande significado.
Salvador Dalí não a assinou. E não o fez por um motivo que requer muita reflexão e genuinidade em sua omissão.
Para ele, sobre Deus, não há outro criador possível. Nem mesmo o egocêntrico Dalí ousou, em uma raríssima demonstração de humildade, se contrapor a essa simbologia do poder do Criador. Nem em nome da arte.
Assim, como Salvador Dalí, parece que se passa um período de afastamento espiritual durante o ano inteiro e, ao final, adota-se uma postura que deveria ser do ano inteiro. E, ao que parece, ao contrário de Dalì, se faz de uma forma irrefletida.
Dessa maneira, iniciado um novo ano, uma outra expressão italiana seria bem colocada: Poco dopo. Que, traduzida, significa, logo após. Ou seja, poco dopo, tudo volta à normalidade.
Afinal, reflexão precisa de tempo.
Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor
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