domingo - 06/04/2025 - 07:54h
Guiando gigantes

Praticagem marítima, paixão e desafios que atravessam décadas

Sebastião Leite, 80, garante entrada e saída de navios no Porto de Natal há mais de 40 anos

Por Felipe Salustino (Repórter da Tribuna do Norte)

Sebastião nasceu em Areia Branca, onde começou a se afeiçoar à profissão ainda jovem (Foto: Anderson Régis)

Sebastião nasceu em Areia Branca, onde começou a se afeiçoar à profissão ainda jovem (Foto: Anderson Régis)

Há quase quatro décadas e meia, a missão de Sebastião Leite, de 80 anos, é garantir a entrada e saída de navios do Porto de Natal com o máximo de segurança. Ele é piloto de praticagem, uma profissão pouco conhecida, mas que exige dedicação intensa. A paixão pelo ofício, que muitas vezes requer decisões rápidas, é o que move Sebastião, o mais antigo entre os oito pilotos em atividade no Rio Grande do Norte. O desejo de navegar pela praticagem começou ainda na juventude, em Areia Branca, cidade natal de Leite, quando ele foi apresentado à profissão pelo cunhado. “O contato humano é o que há de mais apaixonante nesse universo”, relata, ao revelar que não pretende parar tão cedo.

Tamanha paixão fez Sebastião Leite deixar a Costa Branca potiguar para morar em Natal, cidade onde ele construiu carreira e criou os filhos. “Para ser prático é necessário passar por um processo na Marinha. Eram duas vagas, uma aqui para a capital, e outra para Areia branca. Fui aprovado com o melhor desempenho, então, ganhei a chance de escolher onde queria trabalhar. Escolhi Natal, porque queria criar meus filhos em uma cidade grande, com melhor estrutura para educá-los”, conta.

O contato com a profissão, lembra Leite, foi possível graças ao aspecto econômico de Areia Branca, ancorado no seguinte tripé: indústria salineira, pesca e transporte marítimo. “Meu cunhado, Jairo Josino [que foi prefeito de Areia Branca] era prático na cidade. Ele foi transferido para Natal após a morte de um piloto que atuava por aqui. Nós conversávamos muito sobre a profissão e isso foi criando em mim um interesse pela área”, relata o piloto. Jairo Josino faleceu em 2017. Com mais da metade da vida dedicada à profissão, Leite confessa que o mais lhe cativa é a relação com as pessoas.

“Todos os dias nos deparamos com gente de diferentes nacionalidades – alguns são muito tranquilos e educados, enquanto outros já não têm o mesmo comportamento. Recentemente, um navio atracou por aqui com um comandante russo e um chefe de máquina ucraniano. Com os dois países em guerra, fiquei curioso para saber como era o relacionamento dos dois. Eles demonstraram boa convivência e lamentaram o que está acontecendo. Havia uma associação de muito respeito entre ambos, embora o ucraniano, que vive com a família na zona de guerra, demonstrou bastante preocupação diante do conflito”, contou o prático.

Questionado se pretende se aposentar, o piloto é categórico: “Já pensei em parar várias vezes, mas estou resistindo, porque sou apaixonado pelo que faço”, diz.

A profissão exige qualificação constante, o que, segundo Leite, funciona como um estímulo para seguir aprendendo e se desafiando na praticagem. “Independentemente da experiência, é preciso se qualificar sempre. Fazemos um treinamento anual. Já temos um curso programado para este ano em Brasília”, detalha.

Histórico

O histórico da praticagem marítima no país remonta ao século 19, quando entrou em vigor o Regimento para os Pilotos Práticos da Barra do Porto da Cidade do Rio de Janeiro, assinado pelo Visconde de Anadia, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos no período regente de D. João VI. Segundo o Conselho de Praticagem do Brasil, com isso foram implantados os primeiros serviços do tipo, com características preservadas até os dias atuais.

Sebastião Leite conta que no Rio Grande do Norte os primeiros registros da profissão se deram em Macau, também na Costa Branca. Geralmente, pescadores mais experientes eram usados para auxiliar na chegada e saída de navios da região. Depois, as empresas começaram a se organizar em torno de pessoas ‘práticas’ que pudessem auxiliar os navios com segurança. Daí, o nome da atividade – praticagem. “Aqui no Rio Grande do Norte, a prática tem mais de 100 anos”, afirma Leite.

Até por volta da década de 1950, a profissão esteve organizada em torno da Corporação dos Práticos, ligada à Marinha do Brasil. Depois, a corporação passou a se chamar Associação dos Práticos dos Portos do Rio Grande do Norte, com sede em Natal e também em Macau, para onde iam os navios que faziam o transporte de sal marinho. Nesta época, uma seção seguia, ainda, para Areia Branca, onde, em 1974 foi construído o Porto Ilha. “Com isso, a seção de Macau foi extinta e os dois práticos que existiam lá foram incorporados à de Areia Branca”, conta Leite.

Por falta de incentivos do Governo, as associações foram encerradas em 2007, dando lugar a duas empresas de praticagem – uma delas, a Natal Pilot, de Sebastião Leite, que fica na Ribeira, na zona Leste da capital e conta com cinco pilotos. A outra está localizada em Areia Branca e tem atualmente três profissionais. “Hoje, os práticos são prestadores de serviços e sócios das empresa ao mesmo tempo”, explica Leite. Para se tornar um piloto de praticagem é preciso participar de um rigoroso processo de seleção organizado pela Marinha.

A primeira etapa consiste em uma prova sobre conhecimentos de Marinharia, que envolve questões climáticas como comportamento dos ventos e chuvas, além de temas que envolvem as condições do local onde o profissional irá atuar. Em seguida, se aprovado, o candidato irá passar um ano acompanhando as manobras de um piloto experiente – metade desse período será dedicado à atividade na prática. Depois, o profissional é submetido a mais um prova, a última do processo seletivo. Para esta prova é formada uma banca, que envolve a participação de oficiais da Marinha de Guerra e da Marinha Mercante, outros práticos, além do instrutor que acompanhou o candidato desde o início.

“Esse grupo vai analisar se o praticante está apto para atuar. Na ocasião, o instrutor entrega um documento à Marinha atestando a aptidão do candidato. Qualquer pessoa com Ensino Superior e com inglês fluente pode se candidatar ao processo. O interesse é grande. Tem gente que se prepara de cinco a seis anos para o concurso”, conta Sebastião Leite, que foi o primeiro piloto do Rio Grande do Norte a passar por esse tipo de seleção.

Rotina repleta de desafios

O trabalho dos pilotos é dividido por zonas de praticagem, as quais possuem escalas próprias de serviço, encaminhadas antecipadamente à Marinha. Em Natal, um prático trabalha em sistema de rodízio – são seis dias seguidos como piloto titular e mais seis como reserva. “O reserva fica de sobreaviso em casa para qualquer intercorrência em que o titular não possa atuar, como impossibilidade de chegar ao porto, por exemplo. Depois, a escala é invertida”, afirma Sebastião Leite. Para o titular, a primeira e principal atividade é manter a comunicação em dia.

“Inicialmente, a empresa requisita o titular por telefone e depois todas as informações acertadas são confirmadas por e-mail. São dados como a data de chegada do navio, com nome, registro e bandeira da embarcação, nome do oficial de segurança e do armador, natureza do navio (se é de longo curso ou cabotagem) e se vai fazer a distribuição da carga em outros portos. O prático precisa receber todas essas informações logísticas com antecedência”, conta o piloto.

De posse delas, o prático ajusta a entrada do navio à maré e checa se há vaga no cais do porto. “Tudo tem que ser visto bem antes para evitar incompatibilidades”, comenta Sebastião Leite. A chegada do navio ao porto precisa ser acompanhada do prático para que sejam dadas comunicações como qual a melhor lâmina d’água para a escada de quebra-peito (usada para embarque e desembarque), por exemplo. Se o navio estiver com mais de nove metros de altura, a recomendação é para que se use outro tipo de escada – a conjugada. Lidar constantemente com o desconhecido é um dos desafios da profissão, segundo Leite. “Estar a bordo de um navio em que você nunca pisou antes, é complexo”, sublinha o prático. Some-se a isso, as questões estruturais do local de trabalho.

Porto de Natal é pequeno, sofre assoreamento e enfrenta outros problemas (Foto: Canindé Soares)

Porto de Natal é pequeno, sofre assoreamento e enfrenta outros problemas (Foto: Canindé Soares)

“Além de o Porto de Natal ser pequeno, estamos passando por um problema sério de assoreamento. Tivemos recentemente um episódio em que um navio entrou com a maré relativamente baixa e encalhou. Conseguiu sair uma hora depois, mas não deixa de ser uma situação desagradável. Sem contar que aqui temos uma área de pedra, o canal é estreito e tem toda a questão que envolve a Ponte Newton Navarro”, afirma.

Outro questão é o mercado bastante limitado no RN. “A quantidade de práticos é definida pela Marinha. Somos oito em todo o Estado, número considerado alto para a nossa praticagem, que é pequena. Em Natal, recebemos apenas dois navios mensalmente, mas o ideal seriam 10, porque temos cinco práticos e ganhamos por manobra. É permitido a cada piloto manobrar duas embarcações por mês”, conta Sebastião.

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Categoria(s): Gerais / Reportagem Especial

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