Por Fabrício Carpinejar
Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existe posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida.
Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.
– Biotipo sanguíneo?
Eu não sabia.
– Alergia a medicação?
Eu não sabia.
– Já teve sarampo, caxumba, catapora?
Eu não sabia.
– Realizou alguma cirurgia?
Eu não sabia.
– Vem usando medicação?
Eu não sabia.
Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.
Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.
Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: “Depois perguntamos para ele”.
O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função “pai”, em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.
Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.
Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.
Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.
Fabrício Carpinejar é jornalista, poeta e cronista
* Texto originalmente publicado na revista Donna.
A mais humana de todas as crônicas que já li em toda a minha vida.
Sabemos os gostos e manias dos que se projetam nos esportes, nas artes e na política.
Precisamos nos redescobrir como seres humanos.
///
O BEM DO AMOR FAZ BEM AO CORAÇÃO.
É o que acontece na maioria das vezes. Os filhos não conhecem os pais. Ótima crônica!
Muito bom texto. No meu caso, uma frustração de vida. Tive dois pais, o biológico e o adotivo. O adotivo morreu de infarto quando eu tinha oito anos. O biológico foi assassinado dois anos depois, quando eu completara dez. Ainda hoje sei deles pelo contar dos outros. Lembrança dispersa até das fisionomias. É um vazio que nunca se enche.
Que linda e Crônica, Fabrício Carpinejar.
Muitas vezes os pais são desconhecidos nos detalhes de suas vidas, mas não lamente. Primeiro porque você descobriu que não conhecia particularidades paternas com o seu pai vivo. Segundo, porque muitas vezes, os pais são reservados. Ocultam-nos doenças para não nos preocuparem, deixam de contar façanhas para não darem , segundo eles, um ótimo exemplo.
A modernidade dá-nos acesso aos exames laboratoriais que fazem e de um modo ou outro, acabamos descobrindo.
Aqui, em minha família, todos os filhos me conhecem.
Sabem da asma que arruinou minha infância, sabem que a natação é meu esporte amado, sabem que gosto de nadar em mar aberto, sabem quanto adoro dançar, sabem que fui rainha do Twist, sabem quanto estudei e sabem avaliar quanto o pai dele e eu somos harmoniosos. Sabem de meus choros e meus sorrisos.
Sabem os remédios que tomo, até por ter uma filha médica.
Alguns desses detalhes, eles vêem, outros eu conto.
Hoje em dia, parece que a cena da vida é mais clara, fácil de ser vista.
Tem mais: quando eu partir, quero ser cremada. Os documentos estão prontos. E ai deles, se não me cremarem. Não gostam dessa conversa…risos.