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domingo - 27/10/2024 - 11:02h

Quem só direito sabe

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa de Hélio Teixeira Org

Arte ilustrativa de Hélio Teixeira Org

Tenho me batido, aqui e na vida, contra aquilo que chamo de “mito da especialização”. Como já alertava Rubens Alves, em “Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras” (Editora Brasiliense, 1981), circunscrevendo o nosso pensamento e induzindo o nosso comportamento, “a especialização pode transformar-se numa perigosa fraqueza”.

No direito, isso tem até um toque especial e curioso.

Como muitos já devem ter notado, historicamente, os cursos jurídicos no Brasil sempre foram formadores de bacharéis cujas vocações, ao final dos estudos, acabavam sendo direcionadas para diversas outras profissões além daquelas consideradas estritamente jurídicas (magistratura, ministério público, advocacia etc.). Era – e ainda o é – uma característica do direito.

Na verdade, segundo Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), “a tantos aspectos negativos de que têm sido acusados os cursos jurídicos, em sua unilateralidade ou em sua preponderância – e que devem ser historicamente situados –, há que juntar um aspecto positivo quase sempre esquecido. É que tais cursos forneceram, como era de sua finalidade, conhecimentos que permitiam a atividade ligada ao Direito, mas forneceram, paralelamente – e, até o fim da fase de que nos ocupamos, unicamente –, aqueles conhecimentos, ainda que em nível rudimentar, que seriam fornecidos, adiante, por centros especializados de estudos, e, bem mais adiante, pelas Faculdades de Filosofia, isto é, o saber universal, humanístico, filosófico – com alguma licença nessas qualificações. De sorte que os bacharéis não se habilitavam apenas ao exercício profissional, mas às letras, ao jornalismo, à política, ao magistério, sem falar nas funções públicas. Não espanta que nos cursos jurídicos encontrassem eco especial as atividades mencionadas, de que ali se fizesse o noviciado, que tornavam estes cursos focos de ideias e de irradiação de campanhas, não esquecendo o papel, que tiveram, de unificadores da cultura, pela aproximação de elementos oriundos das mais distantes e diversas regiões do país, a que retornavam muitos com as marcas dessa formação”.

Talvez seja por isso que o folclore jurídico tenha consagrado o ditado “quem só direito sabe nem direito sabe”, cuja autoria muitos atribuem ao grande Pontes de Miranda (1892-1979), com o qual tendo deveras a concordar.

Mas se no passado essa “generalidade” do direito no Brasil era mais intuitiva pela própria necessidade de quadros profissionais, acho que hoje essa tendência do direito de ir além da sua especialização vem ganhando ares sistemáticos e espaço formal na academia. De fato, no direito, uma das atuais “coqueluches” é a interdisciplinaridade, aqui entendida, no seu sentido lato, como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em sentido estrito e transdisciplinaridade), das áreas do saber, visando à compreensão e ao aperfeiçoamento da realidade que nos cerca.

Nas últimas décadas o estudo interdisciplinar do direito tem ganhado institucionalmente espaço na academia e na literatura jurídica em geral, sobretudo nos EUA, com movimentos/disciplinas do tipo “law and society”, “law and economics”, “critical legal studies”, “law and literature”, “law and film”, dentre outros. E, mesmo que de forma não tão organizada como nos EUA, no Brasil, nos cursos de bacharelado e de pós-graduação, aos professores e estudantes é recomendado trabalhar toda e qualquer disciplina jurídica curricular em interação com os demais ramos de direito, assim como interagir com as demais ciências, tais como a filosofia, a política, a economia e a sociologia.

Seguindo essa boa tendência da interdisciplinaridade, eu faço a minha parte. Sempre misturo as enfadonhas tecnicalidades do direito com a filosofia, a literatura e o cinema, entre outras sabenças. E você, caro bacharel, tem se lembrado de fazer a sua?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Inacio Rodrigues diz:

    Essa frase atribuída a Pontes de Miranda anda mais atual do que nunca! Vide os inúmeros ” Sérgios Moros” da vida.

  2. Bernadete Lino diz:

    Acompanho o Blog e a crônica me chamou à atenção por ser bacharela em Direito. Já terminei o curso tardiamente, aos trinta e seis anos, com duas filhas pequenas e com emprego com carga horária de oito horas diárias. Fiz pós-graduação lato sensu em Processos e, posteriormente, fiz pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos. Fiquei um pouco frustrada por não ter me dedicado à atividade jurídica. Fui a aluna laureada e todos os meus professores apostavam que eu tinha preparação para seguir com o Direito e fazer carreira na área. Ocorre que não tive coragem de me aventurar. O emprego dava-me estabilidade financeira e eu me aquietei. Depois o tempo foi passando e eu me acomodei! Mas sinto uma inveja bonita de quem alcança o nível que você alcançou. Tem a minha admiração! Mesmo não exercendo atividade ligada ao Direito, considero que fiz o curso certo! Por vocação eu seria uma engenheira! Adoro matemática! Mas num País onde as pessoas tentam sobreviver e sendo de origem humilde, agi pela sensatez! O que me deixa confortável é que sempre procuro dar o meu melhor em tudo que me empenho. Sucesso!

  3. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Sem dúvida que o saber diferenciado cosmopolita e eclético, necessariamente comporta a leitura e vivência de muitos saberes e experiências, sem as quais, o profissional de qualquer área não irá desempenhar a contento sua nobre tarefa e profissão, sobretudo na conturbada, incerta e insegura sociedade contemporânea.

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