(Osman Lins)
Todo mundo sabe que Maria Boa, antiga cafetina e proprietária de um reputado bordel da cidade, “o Cabaré de Maria Boa”, não gostava de ser fotografada, tampouco dava entrevistas. Difundiu-se a informação que era um artifício para proteger sua família, sobretudo as netas, estudantes em colégios de classe média da cidade, bem como uma maneira de resguardar os nomes da sua importante clientela, constituída de homens “de boa família”.
Mulher distinta e discreta, depois de ataviada pelas aias, nas antológicas noites licenciosas, a abadessa permanecia na sua cela. Quando tomava conhecimento de alguém importante no Salão, dirigia-se solenemente, e com grande polidez, reverenciava o visitante: político, industrial, fazendeiro.
Para além da atitude ética de proteger sua família, o que faz parecer um jogo com a hipocrisia da sociedade, penso que, na atitude de se manter reservada, se inscreve um outro aspecto digno de ser ressaltado. Falo do mito que entorna a personagem Maria Boa, de certa maneira, criado e ritualizado por ela mesma, dimensão de fantasia para além do empírico vivenciado.
Aquilo que Roland Barthes se refere ao deliberado anonimato de Greta Garbo como necessidade de preservar uma imagem da decadência física, abandonando o cinema e a vida mundana, pois a atriz desejava seu rosto preservado numa “ordem conceptual”, ou seja, integrante da Idéia, não da substância, com a inexorável perecibilidade de tudo que é da ordem do material.
Nas fotos que permaneceram, sobretudo esta, tirada durante uma festa na casa de uma colega também proprietária de famoso bordel, a Francisquinha, sobrevivente, hoje, de uma época de fausto das casas de recursos, deixa entrever, pela configuração do seu opulento corpo – atributo servente para apelidar seu codinome – um majestático porte natural que poucas mulheres das nossas classes dominantes conseguem alcançar.
A maneira de passar as grossas pernas uma sobre a outra sugere uma naturalidade na qual o corpo se encontrava em harmonia com a alma. Havia uma presença de discreta elegância e acentuado charme, semelhante ao daquelas pessoas um tanto saudáveis, encanto que recende por meio de uma aura na qual o corpo queda-se confortável com o temperamento que o habita.
A pele delicada e sedosa deixava entrever a fartura de sua saúde psicossomática. Ora, a famosa meretriz sabiamente já acumulara uma certa fortuna, podia dar-se ao luxo de manipular o arquétipo da mulher enigmática e de difícil alcance, fazendo vigorar somente seus caprichos de mulher-dama requintada e respeitada entre as classes dominantes da cidade.
O pudor fazia parte do jogo no qual o mito se alimentava. Até no nome o mito instalara sua oficina de imagens dinâmicas (Gaston BACHELARD), suplantando as formas e permanecendo preso a determinadas estruturas do imaginário.
Astuciosamente se fez conhecer por “Maria”, o antropônimo mais comum no universo feminino, genérico e pouco dado a divagações semióticas. Ironicamente é o nome da mãe de Jesus… Quem não tinha conhecimento no Estado de uma proprietária de um requintado lupanar, e que se chamava Maria, a Boa?
O mito, da constituição do éter, era aspirado por todos, preenchendo necessidades, ocupando lugares no espírito, imprimindo fantasias nos adolescentes, despertando em jovens mulheres as aventuras da carne, engendrando adultérios imaginários. Integrava, assim, o patrimônio individual e coletivo.
Era necessária a existência dessa cortesã, lacrada num paradoxal anonimato: todos sabiam da sua existência, entretanto, não era vista por quase ninguém. Consagrou-se, sem que fosse necessário conciliar-se em demasia com o modus vivendi, contrário à sua própria forma de ganhar a vida. Intuitivamente fez uso dos meandros por onde o mito escorre suas autônomas imagens.
Sabia muito bem não ser necessário o factual para que o humano buscasse, mesmo sem vê-la, toda a lombra de uma imaginação das formas, suplantadas, de longe, pela supremacia da imaginação dinâmica. Em suma, como responder a partir, de um dos mitos principais que compõem o imaginário da cidade do Natal, à pergunta feita na epígrafe deste artigo?
Penso que o autor recifense da obra-prima, o romance ‘A rainha dos cárceres da Grécia’, nos dá a resposta: “O corpo é uma história: a do seu próprio curso”.
Márcio de Lima Dantas é professor Assistente do Departamento de Letras da Uern
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