Por Marcelo Alves
Na mesma trilha das últimas semanas, vamos novamente de ficção científica. Como fã desse gênero literário/cinematográfico/televisivo, faço hoje um paralelo entre uma das suas mais badaladas franquias – “Star Trek” ou “Jornada nas Estrelas” – e o grande Shakespeare (1564-1616).
Shakespeare, todo mundo – pelo menos o mundo interessado em literatura, arte dramática e coisas que tais – conhece ou dele já ouviu falar. É o criador de uma obra que transcende época e lugar e não pertence a qualquer religião, filosofia ou profissão.
Um gênio que representa o que há de mais sublime na literatura universal ou mesmo na natureza humana. “Romeu e Julieta” (1592), “Júlio César” (1599), “Hamlet” (1599), “Otelo” (1604), “Rei Lear” (1605), “Macbeth” (1606), “Antônio e Cleópatra” (1607), apenas para citar algumas de suas tragédias, já que de uma de suas comédias eu tratarei adiante, são tudo e algo mais. Poucos – na literatura ninguém mais do que ele – conheceram a alma humana como o bardo inglês.
Já “Star Trek”, entre nós chamada “Jornada nas Estrelas”, é uma franquia estadunidense do tipo “viagem espacial”, originalmente criada por Gene Roddenberry (1921-1991), mas composta por várias séries que se sucedem no tempo. A primeira série foi ao ar em 1966. Desde então vieram “Star Trek: the Next Generation”, “Star Trek: Deep Space Nine”, “Star Trek: Voyager”, para ficar nas minhas sequências preferidas, e por aí vai.
Da série original, William Shatner como o Capitão Kirk, Leonard Nimoy como o Sr. Spock e DeForest Kelley como o Dr. McCoy são rostos inesquecíveis. Da nova geração, o capitão Jean-Luc Picard (papel de Patrick Stewart) está entre meus heróis. A nave espacial Enterprise, a tão discutida viagem em dobra espacial e o inusitado teletransporte nos fazem sonhar com novos mundos. As aventuras viraram livros, quadrinhos, jogos e, claro, foram bater no cinema: os primeiros filmes, com os atores da série original, estão entre os meus queridinhos.
São décadas de estelar encantamento. Não acredito haver franquia mais longeva. E são inúmeros prêmios: Hugo, Saturno, Emmy, Oscar, por anos e anos. O impacto cultural de “Star Trek”, dos seus fãs à NASA e ao espaço sideral, é cósmico.
O paralelo que faço entre o cânone shakespeariano e as estórias de “Star Trek” tem por inspiração uma observação que li em um livro perfeito para os “juristas trekianos” (traduzo: juristas fãs de “Jornada nas Estrelas”): “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003). Dele consta: “Especialistas em estudos transdisciplinares shakespearianos nas ciências humanas gostam de enfatizar que, se alguém lê Shakespeare, essa pessoa irá encontrar na obra do bardo todos os tipos de seres humanos. Similarmente, se alguém assiste à Star Trek, essa pessoa irá achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em Star Trek. Este é o problema acadêmico de Start Trek; ela não se encaixa perfeitamente em qualquer das ciências. Ela é uma extrapolação das ciências puras, como a física, a biologia ou a química. Ela é uma análise crítica tanto das ciências sociais em geral como da nossa história. Ela é uma literatura visual da filosofia, da ética e da arte. Start Trek, no seu melhor, pode inspirar pessoas a buscarem ser melhores sendo seres humanos; ela pode ser tanto um púlpito ameaçador quanto inspiradora poesia. Ela pode também ser, e frequentemente o é, apenas uma série/novela divertida”.
A observação transcrita confirma o que venho defendendo: a ficção científica, sublinhada aqui a ficção “Star Trek”, é o mais filosófico dos gêneros literários/cinematográficos/televisivos. E entre as “filosofias” objeto da franquia “Star Trek” está a filosofia política e a subespécie filosofia do direito. De fato, relendo “Star Trek Visions of Law & Justice”, reafirmo: “Star Trek” trata, de forma profunda, de aspectos fundamentais da filosofia do direito. Em vários dos seus episódios se discute, com grande implicação para o enredo, temas como: o conceito de soberania, federação e constituição; o direito internacional (e interstelar, como o livro chama), seus tratados e o direito interno; a jurisdição extraterritorial, a extradição e o asilo; o direito de guerra; o combate ao terrorismo; a pena de morte e as outras formas de punição; o direito e a questão do gênero; e conceitos mais abstratos, como os de Justiça e Moral e as ideias de direito e de equidade.
Bom, para os mais céticos – no duplo sentido, seja porque não gostam de ficção cientifica, seja porque só acreditam vendo ou lendo –, vou dar um exemplo típico, misturando com a obra shakespeariana, da filosofia do direito de “Star Trek”. Rogo apenas um tico de paciência.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Shakespeare! Não há obra secundária, umas sublimes e outras geniais. Senti na lista a falta de “A Tempestade”. A obra que expõe o ritual humano da exploração, e o esperneio do oprimido. Diálogo final: Diz Próspero: “Eras uma figura ignóbil e eu te dei compleição humana”. Calibã responde: “Mas a ilha era minha e tu ma tomaste”. Próspero retruca: “Mas eu te ensinei minha língua”. E Calibã encerra: “No que a mim só serve para nela poder amaldiçoar-te”.