Já tive a oportunidade de dizer ue as cadeias e penitenciárias modernas são os leprosários de antanho: lugares sem volta, sem esperança, lugares em que, sob o cínico discurso da ressocialização por parte do Estado, concretiza-se o verso exasperante de Dante Alighieri ao descrever a frase cunhada do frontispício do Inferno: “Deixai toda a esperança, o vós que entrais” (Canto III, Inferno, “Divina Commedia”).
Esse misto de ojeriza e anastesia social e política levou a maioria dos sistemas pentinenciários dos Estados do Brasil ao verdadeiro caos: carceragens de delegacias utilizadas como cadeia pública, superlotação, sucateamento das estruturas físicas, insuficiência de recursos humanos e toda sorte de omissão administrativa – nada que nós, brasileiros, cheguemos a estranhar.
Na prática, essa incúria estatal redunda em celas superlotadas, completamente insalubres, sem condições de abrigar seres humanos, nem tampouco boa parte de espécies de seres vivos, sendo, no entando, habitat adequado para ratos, baratas e outros insetos.
À guisa de curiosidade jurídica, o tratamento desumano em relação aos presos ofende diretamente, no plano interno, a Constituição da República Federativa do Brasil, o Código Penal, a Lei de Execuções Penais e a Resolução nº 14/1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
No plano internacional, ofende a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da ONU, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San Jose da Costa Rica. Precisa demais? Entendemos, entretanto, que submeter um custodiado do Estado a tratamento extremamente degradante não consiste em uma mera ofensa – se é possível dizer isso – à dignidade humana dos presos.
Mais do que isso, essa deliberada ofensa à dignidade dos custodiados pode configurar a prática de tortura. A Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, definiu, no nosso ordenamento jurídico pátrio, o crime de tortura. Foi editada, diga-se de passagem, com décadas de atraso e revela nosso costume já histórico de não respeitar os direitos humanos.
Entre as várias modalidades de tortura, a sobredita lei prescreve que: “Art. 1º Constitui crime de tortura: II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência (…) a intenso sofrimento físico ou mental, como (…) medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos”.
A reflexão que vos convido a fazer, caríssimos, é a seguinte: submeter um preso que está sob a guarda de uma autoridade Estatal a cumprir ou esperar sua pena em celas reconhecidamente superlotadas e insalubres, porque não há para onde mandá-los, pode configurar o crime de tortura na modalidade transcrita no parágrafo acima? Entendemos que sim.
Sem pretensões de sentenciar uma tese jurídica, tentemos uma adequação entre norma e fato: a norma, genérica e abastrata, que prevê o crime de tortura consiste em três partes, a saber, “Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade”, “com emprego de violência a intenso sofrimento físico ou mental” “como medida de caráter preventivo”. Essa três locuções, por exemplo, adequam-se perfeitamente à conduta do delegado de polícia civil que, na área de carceragem de sua delegacia, custodia presos em celas superlotadas e totalmente insalubres.
Vejamos que há a relação de guarda, há a relação de submissão, há a relação de emprego da força (violência) para custodiar seres humanos que, em celas superlotadas e insalubres, experimentam sofrimento físico e mental, que vão além do mero cerceio de seu direito de locomoção, tudo como forma de evitar que, potencialmente, esses custodiados voltem a delinquir.
Fato e norma, nesse caso, adequam-se perfeitamente. Enfim, não se trata aqui de uma tese jurídica, mas de um desabafo de quem vivencia as agruras do sistema penitenciário brasileiro, de quem vê o indivíduo-delinquente vítima de um Estado-delinquente, que pune o indivíduo e, nessa punição, muitas vezes ofende mais normas do que qualquer marginal.
Carlos Henrique Harper Cox é defensor público do Estado do Pará.
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