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domingo - 11/06/2023 - 08:36h

Tabaco

Por Marcos Ferreirafumante, cigarro, foto

O médico explicou a situação pormenorizadamente, os dedos e mãos peludos cruzados sobre o birô. Por sua vez, estarrecido, Alcides ouviu tudo cabisbaixo, consentindo com a cabeça, de quando em vez, o linguajar cientificista do doutor. “Puta que pariu! Estou fodido!”, pensou o enfermo num impulso de revolta. Sessenta e dois anos. Agora tomava aquele baque. Deixara o cigarro havia cerca de duas décadas.

O oncologista continuou com as explicações, apontando os caminhos e os procedimentos a serem adotados dali por diante. Alcides moveu a cabeça de novo, agora de forma desalentada. A voz do outro lhe parecia longe, sumida.

— Sabe, doutor… Isso só pode ser um castigo — lamentou-se. — Pois larguei aquele maldito há vinte e dois anos, para lhe ser exato.

— Casos desse tipo não são raros, senhor Alcides — argumentou o experiente médico reposicionando os óculos sobre o nariz agudo. — Pessoas que abandonaram o tabaco antes que o senhor são surpreendidas desse modo. Há quem fume a vida inteira e morre devido a enfermidades que não têm nada a ver com fumo.

— É um castigo, doutor. Decerto mereço.

— Em outras palavras, trata-se mais de causa e efeito. Isso, contudo, não é regra. Existem na literatura médica diversos registros de indivíduos que nunca fumaram e adquirem câncer de pulmão. Acho isso uma ironia perversa.

Ele se lembrou dos negócios, da próspera empresa de laticínios, rentável, esbanjando saúde financeira. Pensou ainda em Ramona, esposa do segundo casamento, morena e bonita, trinta anos mais jovem, com a qual não tivera filhos.

Já trêmulo, olhos marejados, perguntou:

— Quanto tempo me resta? Pode ser franco.

— Com o tratamento, pouco mais de um ano.

O empresário deixou a clínica aniquilado. Lançou no canteiro o jato de vômito. Um sujeito saiu para fumar e ele pediu-lhe um cigarro.

Morreu após dez meses. O vício entre os dedos.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Francisco Nolasco diz:

    Bom domingo, amigo Ferreira.
    Gostei da crônica. Um misto de enlevo cultural e utilidade pública de saúde. Nada de auto-ajuda, é a realidade nua e crua da potência destrutiva dos vícios maus.
    Lembrei agora da esplêndida, Bela Espanca, que metaforicamente esculpiu: “… fumo leve que foge entre os meus dedos.”

  2. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    É um tema difícil: já me deparei com ele duas vezes. A primeira em 20/01/2015, quando recebi cópia do laudo de uma biópsia. Pensei igual ao Alcides. Estava só em casa e, por pouco, não tive um piripaque. Precisei respirar fundo mais de uma vez. Estava diante de uma sentença. Perdi o chão. Mas o instinto de sobrevivência me fez agir com rapidez e tive a sorte de ter meu problema resolvido com uma cirurgia. Sem químio nem rádio. Muita sorte! Há dois anos, meu pai não teve o mesmo desfecho. O tumor era raro e, em dois meses, ele faleceu. Em ambos os casos, não tivemos culpa. Foi uma Mega-Sena invertida. Na verdade, iremos morrer por algum motivo, algum dia. Isso é fato. Não tenho vícios nem meu pai tinha! Mas que o tabaco faz mal à saúde, não temos como negar!

  3. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Caro Marcos,
    Pura ironia do destino, a vida é uma incógnita! Muitos são brindados com a longevidade, enquanto que outros têm as suas vidas ceifadas ainda na flor da idade. Quem somos nós, simples mortais, para respondermos a uma questão de tamanha profundidade!
    O tabaco é responsável por um grande quinhão de mortalidade. Problema muito bem apresentado em sua crônica. Parabéns!
    Beijos!
    Sua ex-professora que te admira!

  4. Rocha Neto diz:

    É crucial ser portador de um vício, principalmente quando deste nos tornamos reféns, seja bom ou ruim, o vício nos torna escravos.
    Porém, devemos com consciência procurar o lado do bem, pois se no decorrer do tempo o vício vier a nós escravizar, que seja com a medida certa para fazer o bem as nossas almas.
    Sou oriundo de uma família consumidora do tabaco, todos na casa dos meus avós eram fumantes, alguns permaneceram, outros deixaram sem aconselhamento médico, mais por súplicas de maridos e esposas, e nenhum dos filhos meus avós João Antônio da Rocha e Olívia Barcelar Leite Rocha, faleceram por motivo do consumo do tabaco, talvez por ter consumido o tabaco oriundo da colheita de suas terras, aquele que não tinha aditivos, como os que a Companhia Souza Cruz impregnou no Brasil de todos nós.
    Então existia o tabaco e o tabaco. E quem dele fez ou faz uso, é sem sombra de dúvidas conhecedor de seus reais malefícios.
    Que Deus proteja e dê saúde para todos.
    Marcão, inté domingo!!

  5. Marcos Pinto diz:

    Temática por demais dolorosa para este empedernido aruá de Pé-de-Serra, vez que sempre abordada faz sangrar os diques do meu ser, , escorrendo pelas janelas da alma incontidas lágrimas de mar revolto. O meu saudoso pai teve a fibra da vida arrebentada pelo câncer pulmonar, causado pelo excessivo consumo do tabaco – consumia três maços de cigarros diariamente. Meu vício tem um misto de alquimia etílica acolitada por acentuada concupiscência tabaculosa vaginalis. Aja e haja libido.

  6. Raí Lopes diz:

    É, meu amigo, o cigarro fez parte da minha vida por longos 36 anos. Consegui parar, embora, e depois de 16 anos de havê-lo deixado, não me esqueça dele um só instante de cada dia da minha vida. Verdade. Ainda sinto, aqui e acolá, o gosto da nicotina na boca. Sonho quase que diariamente com ele entre os lábios. Já me peguei entrando na “mercearia”, e só na hora que ia ser atendido, lembrar de que não fumava mais. Enfim, esse vício é difícil e perigoso, pois mesmo tendo sido algo “inventado” no seu conto, é uma realidade para muitos. Conheço alguns exemplos exatamente assim: depois de 10, 12, 15 anos que a pessoa tinha parado de fumar, o diagnóstico de câncer de pulmão. Agora, meu amigo, de todos os vícios que adquiri, usufruí e depois larguei em minha vida, sem querer fazer apologia – longe de mim” – o tabaco foi e continua sendo o melhor de todos.

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