domingo - 26/05/2024 - 03:42h

Meu velhobook

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa da Web

Foto ilustrativa da Web

Hoje, usando apenas o dedo indicador da mão direita, posto que não tenho a destreza que tantos apresentam no tocante a mensagens por escrito neste aplicativo, resolvi escrever esta crônica no WhatsApp. Adianto, porém, que é um atrevimento que não pretendo repetir. Meus óculos já não contribuem para esse tipo de ousadia.

A deficiência ocular é para perto quanto para longe. Esta, então, é a primeira e última vez, embora eu deva admitir que estou até desasnando, como se diz.

O motivo disso é que meu velhobook está passando uns dias na casa de recuperação Tec-Micro, situada na Avenida Alberto Maranhão, 2377. Precisa de um urgente e delicado reparo. Embora com uma aparência um tanto jovial, ele entrou na terceira idade. Tem muitos anos de serviços prestados, de entrosamento com este escriba. Parceria que, até o momento, rendeu-me três romances, um livro de contos (afora alguns esparsos) e três reuniões de poemas.

Dois dos romances, a exemplo dos contos e poemas (cujos títulos convém não divulgar agora), são inéditos. Há também uma porção de crônicas e o premiado e republicado A Hora Azul do Silêncio, vencedor dos “Prêmios Literários Cidade de Manaus” na categoria melhor livro de poesia.

A ideia de trocar meu aparelho por outro novinho, mais avançado, desagrada-me. Pois nosso vínculo vai além da tecnologia. Bem parecido com o sentimento que alguns autores tiveram quando da mudança das velhas máquinas de datilografar para produzir seus escritos num computador. Isso se deu, por exemplo, com o recém-falecido José Nicodemos (veja AQUI), verdadeiro estilista da língua portuguesa, sobretudo da crônica.

Nicodemos nos deixou no dia 18 de maio. Ele tinha oitenta e seis anos e, a exemplo de Dorian Jorge Freire, um dos melhores textos do nosso país.

Pensei num mundéu de coisas para escrever, entretanto preciso me contentar com o que foi dito. Aliás, escrito. Cogitei dedicar uma página inteira a essa tragédia brutal que assola o Rio Grande do Sul, mas sem esquecer dos incontáveis desabrigados e desvalidos desta Mossoró (salvo exceções!) desalmada.

Essa utilíssima ferramenta chamada WhatsApp, no ritmo que estamos, vai quebrar o meu galho, me salvar da lacuna durante a ausência do meu velhobook. A repetição do carinhoso neologismo velhobook, que pode representar uma típica redundância, é um tratamento de mero afeto. Percebo, com a minha cabeça ora cheia de metalinguagem, que até esses equipamentos têm seu lado estimável. É mais ou menos o que existe entre mim e minha máquina de escrever, de contar histórias.

Bom. Acho que devo parar por aqui. Puxar mais conversa, engordar esta prosa do velhobook escrevendo neste aplicativo me parece um risco. De repente, não mais do que de repente, como no verso do poeta Vinicius de Moraes, pode acontecer uma trapalhada da minha parte e tudo isso se perder. Torço que o meu Editor consiga pinçar esta crônica digressiva, copiá-la do WhatsApp de algum jeito.

Depois, quando o velhobook retornar dos seus dias de conserto, trocaremos umas ideias e aí talvez eu traga à tona uma crônica mais robusta, que lhes ofereça um volume maior de texto. Todavia isso é por demais relativo; algo discutível. Um grande número de páginas ou livros bastante volumosos não significam sucesso literário. Se fosse assim todo dicionarista ganharia um Nobel de Literatura.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/05/2024 - 11:50h

A ruela dos livros

Por Marcelo Alves

Cecil Court em Londres (Foto: Web)

Cecil Court em Londres (Foto: Web)

Andei prometendo – e promessa deve ser cumprida – escrever aqui sobre a Cecil Court, ruela de pedestres londrina que é completamente tomada de pequeninas lojas de antiguidades e colecionáveis, livrarias e sebos especializados em primeiras edições, raridades, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Essa “ruela cultural”, no miolo turístico da capital do Reino Unido, liga a Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden. Facílimo de achá-la.

Com uma história que retroage ao século XVII, a Cecil Court sempre esteve de alguma forma relacionada às artes. Dizem que o pequeno Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), quando em Londres por volta de 1764-1765, morou lá. Quer mais? Já a primeira livraria parece ter se estabelecido por ali antes da chegada desse morador ilustre, ainda no comecinho do século XVIII, com proprietários de origem francesa.

É claro que a Cecil Court teve suas idas e vindas do ponto de vista arquitetônico. Foi quase reconstruída no tempo de Robert Gascoyne-Cecil (1830-1903), o 3º Marquês de Salisbury e primeiro-ministro do Reino Unido por três vezes (1185-1886, 1886-1892 e 1895-1902). Uma reforma para melhor, como era de praxe à época, com a remoção dos edifícios antigos, substituídos por prédios e lojas melhor construídas, sanitariamente adequadas e de proporções mais atraentes.

Se essa reforma urbanística deu a forma “definitiva” à Cecil Court, depois dela a ligação dessa ruela com as artes não parou de crescer. Já na virada do século XIX para o XX, a Cecil Court esteve fortemente relacionada ao nascimento da indústria cinematográfica britânica. Fornecedores de equipamentos técnicos, produtores e distribuidores estabeleceram-se em seus prédios. Esses “cineastas” pioneiros, alguns dos principais nomes de então, eram os seus “locais”. A ruela era o “coração dessa recém-nascida indústria”, dizem os historiadores.

Foi também por essa época que editoras e livrarias começaram a chegar em grande número à Cecil Court, ainda dividindo espaço com o povo do cinema. Esse boom se deu antes da 1ª Guerra Mundial, certamente. Eram sobretudo comércios de livros especializados, como ainda hoje o são. E foram só crescendo. Ocupando os dois lados da ruela, embora nem todas as lojas sejam livrarias tecnicamente falando. Temos também comércios de outras “curiosidades” ligadas ao que ainda chamamos de cultura.

De toda sorte, para esta crônica, o mais importante é ressaltar a sensação que tive ao voltar à Cecil Court na minha recente viagem em família: ela está quase como eu a deixei. Plena de comércios de livros e assemelhados. Eis uma lista deles extraída da página da Internet criada para a querida ruela dos livros (www.cecilcourt.co.uk): Alice Through The Looking Glass, Art Deco Gallery London, Bryars & Bryars, Coin Heritage, Colin Narbeth & Son Ltd, Daniel Bexfield Antiques, Darnley Fine Art, Goldsboro Books, London Medal Company, Marchpane, Mark Sullivan Antiques & Decoratives, November Books, Panter & Hall, Serhat Ahmet, Stephen Wheeler Medals, Storey’s Ltd, Sworders Fine Art Auctioneers, Tenderbooks, Tindley And Everett, Travis & Emery Music Bookshop e Watkins Books. Pelos nomes, embora em inglês, já dá para saber do que cuidam. Claro, não dá para visitar todos em uma só agradável tarde londrina.

Flanei em Cecil Court com a minha família, como fazia outrora sozinho, de mãos dadas apenas com a saudade de casa. Tiramos fotos. Xeretei algumas vitrines e lojas. O pequeno João a pé, à frente, animado deveras. E, aqui, para finalizar, apenas repito as palavras do grande Graham Greene (1904-1991): “Obrigado, Deus! Cecil Court continua Cecil Court…”

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 19/05/2024 - 11:20h

Meia-lua inteira

Por Bruno Ernesto

Foto de autoria de Gustavo Emiliano

Foto de autoria de Gustavo Emiliano

Há instantes que, aparentemente, são insignificantes. Porém, inexplicavelmente, ficam gravados em nossa memória e nos acompanham pelo resto da vida.

Uns vêm em formato de déjà-vu, outros reaparecem do fundo de nossa memória ao sentirmos um determinado cheiro, sabor, chegar num lugar ou escutar uma música.

É o que chamam de memórias afetivas, algo bem distinto da nostalgia.

Há também aquela sensação esquisita de que não temos bem certeza se sonhamos o mesmo sonho outras vezes.

Eu mesmo já cheguei a anotar um determinado sonho que parece se repetir há anos, para ter certeza que sonhei a mesma coisa. Se bem que faz alguns meses que esse déjà-vu dos sonhos não me ocorre.

Um desses momentos que guardo na memória, foi uma pescaria numa espécie de lagoa formada nas proximidades do rio Mossoró, onde havia uma pequena ponte no meio daquela mata onde passavam os trilhos da ferrovia que ligava Mossoró a Souza, na Paraíba.

Essa lagoa não tinha ligação direta com o rio, mas estava na várzea entre o grande Alto de São Manoel e o Alto da Conceição e era repleta de peixes, e que, após, não sei como, eu e alguns amigos termos descoberto sua existência, fomos lá pescar num final de semana bem cedo, num comboio de bicicletas BMX.

Para não perder a viagem, também levamos as nossas baladeiras e os bornais de pano repletos de pedras. Passarinhos, calangos e qualquer ser vivente que entrasse em nossa mira, viraria caça.

Por volta das sete horas da manhã, nos reunimos na casa do meu amigo Lawrence Davi, que era uma espécie de ponto de encontro dos meus amigos, e após a turma toda se fazer presente, tomamos bastante água e fomos organizando a saída para aquela que seria mais uma aventura de um grupo de uns cinco ou seis crianças que sumiam no meio do mundo com as bicicletas, para o desespero de nossos pais.

No momento que saímos da casa, tocava a música “Meia-lua inteira,” de autoria de Antônio Freitas e Carlinhos Brown, e interpretada por Caetano Veloso.

Naquele instante, olhei para meus amigos em suas bicicletas, numa conversa descontraída; uns sorrindo, outros empinando a bicicleta, e tudo parecia estar em câmera lenta para eu poder gravar para sempre na memória aquele instante, o que de fato ocorreu.

Não demoramos para chegar à lagoa e de cima da ponte, pescamos a manhã inteira até a moleira não aguentar mais o sol, e no momento de irmos embora, resolvemos tomar um bom banho nessa lagoa e, claro, passamos a pular da ponte.

Jamais voltamos lá. Fomos apenas aquela vez.

Tempos depois, já adulto, me atentei para o significado daquela música e me surpreendi.

O título da música remete a um movimento da capoeira e ela se refere à identidade cultural e à liberdade do capoeirista desaparecendo na mata, sempre em movimento, e que não se deixa ser contido, tal qual fazíamos quando saíamos em nossas aventuras naquela época, o que é muito difícil de ser feito pelas as crianças de hoje.

Infelizmente, a realidade é outra.

Entretanto, basta escutar essa música que lembro daquele dia e dos meus amigos de aventura, como se acabasse de ter ido lá com eles. Foi surreal.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/05/2024 - 09:28h

Copidesques e revisores

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Espero que ninguém se ofenda, contudo acho que o trabalho mais ingrato, senão inútil para quem o realiza, é o de copidesque e revisor de textos. O ofício desses lapidadores do nosso idioma é totalmente obscuro. Pois nesse triunvirato entre escritor, copidesque e revisor, quem sempre leva os louros por uma coisa bem escrita (livre de pleonasmos, ecos, redundâncias, erros de ortografia, de concordância verbal e nominal, além da sintaxe por vezes caótica) é o suposto literato.

Precisa-se fazer a seguinte distinção: nem todo revisor é copidesque, porém todo copidesque é revisor. No geral, sem que isso seja considerado um detalhe negativo, o revisor se encarrega da importante missão de localizar e consertar falhas puramente gramaticais e tropeços de digitação. Já o outro faz tudo isso e pode transformar uma página ou livro muito ruim em algo apresentável do ponto de vista redacional. Quanto ao aspecto artístico, aí vai depender de cada autor. Do contrário, ultrapassando essa linha de atuação, descambaria para a alçada do escritor fantasma.

Tudo bem que há aqueles indivíduos fora de série, narradores excepcionais, homens e mulheres com “redação própria”, como no caso de Otto Lara Resende, mas isso não é uma regra. Porque ninguém, por melhor que seja, pode ignorar a prudência e abrir mão de olhos treinados, mais atentos e descansados.

Diante do que oferecem, e considerando a remuneração desses profissionais, pode-se dizer que o reconhecimento é pífio. Na medicina, na advocacia, na arquitetura e na engenharia, por exemplo, é certeza que as pessoas logo perguntem quem foi (ou é) o médico responsável, o advogado, o arquiteto ou engenheiro.

Já em relação a um determinado romance, um livro de contos, de crônicas ou de poemas, ninguém quer saber quem foi o sujeito (oculto) que cuidou do copidesque e da revisão. Sei que as palavras copidesque e revisor aqui empregadas pipocam como um tipo de redundância, todavia não é possível falar acerca dessa questão sem repeti-las.

Segundo Luis Fernando Verissimo, que também foi revisor de jornal: “Os revisores só não dominaram o mundo porque ainda não se deram conta do poder que têm”. A meu ver, enfim, esses operários das letras são muito pouco reconhecidos. Não sei o que seria dos literatos sem os copidesques e revisores.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 19/05/2024 - 04:30h

Fazendo comércio pelo avesso

O comércio que resiste, a seu modo, à modernidade on-line (Foto do autor da crônica)

O comércio que resiste, a seu modo, à modernidade on-line (Foto do autor da crônica)

Por Paulo Procópio

A resistência respira. Ninguém tá sozinho na luta. Nessa pisada a “Venda” de Júnior ou a “Venda de Leivinha”, que são a mesma pessoa, atravessa décadas sem perder a tradição no bairro Doze Anos, em Mossoró. A Venda, de modo inusitado, também é conhecida por Cantinho Bar pelos frequentadores mais antigos, numa referência (ou reverência) ao antigo comércio da família Freitas, que existiu no local há dez mil anos atrás.

Leivinha não aceita pix nem cartão de crédito, e pronto. O aviso tá fixado na entrada pra todo mundo ver. Entrar na venda também é privilégio de poucos. Os estranhos são atendidos do lado de fora, através das grades, por uma portinhola. Esse sistema foi introduzido por prevenção, depois de um assalto.

A Venda só aceita pagamento em espécie. Dinheiro vivo. A única exceção é anotar algumas compras daqueles fregueses cativos do bairro numa caderneta. Esses pagam na quinzena ou no final do mês. Desse jeito ele vai mantendo a velha tradição dos bodegueiros, que herdou do pai. Como um Dom Quixote, enfrenta os moinhos do capitalismo triturador dos costumes locais. Tá nem ai para as praticidades do mundo moderno. Bom mesmo é o papel bordado.

E lá se vende de tudo. Material de limpeza, higiene pessoal, alimentação, refrigerantes, água mineral, cerveja, cachaça, vinho, velas, chocolates, balas, drops, queijos, embutidos e carne de jabá. Tem lápis, borracha, lapiseira, régua, caneta, cola, cadernos e cadernetas. Alfinetes, agulhas, linhas, friso, cortador de unhas, tesouras e lixas. Cigarro, fumo, papel de seda, isqueiro, rádio portátil, pilhas, headphones, carregadores de celular, e o que mais você possa imaginar.

E messe mundo avesso, pelo avesso a Venda funciona. O horário é anticonvencional. Abre das 11h às 14h, quando fecha para uma sesta esticada, e reabre das 18h à meia-noite, com uma clientela cativa.

É assim de domingo a domingo, com algumas exceções, naqueles finais de semana que ele resolve armar a rede na praia de Redondas, depois da divisa, no bom Ceará. Nesses dias a senha para a freguesia é a ausência da placa em tripé com a legenda: Venda, na calçada da Rua Frei Miguelinho, bairro 12 Anos, no Mossoró Grande que eu gosto demais.

Paulo Procópio é jornalista e advogado

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Categoria(s): Crônica
terça-feira - 14/05/2024 - 09:26h
Aprendizado

Ouvir é uma arte em tempos de intensidade política

Ilustração em Arquivo

Ilustração em Arquivo

Ouvir é uma arte. Mas, a gente só encontra escola para nos ensinar a falar.

Estranho, não!?

Em tempos de intensidade política, de extremos e extremismos, quase ninguém ouve.

Escutar, então…

Fala que eu o ouço.

Estou aberto a escutá-lo.

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Categoria(s): Crônica / Política
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domingo - 12/05/2024 - 09:22h

O canto do acauã

Acauã (Foto do Agro 2.0)

Acauã (Foto do Agro 2.0)

Por Bruno Ernesto

Um dos costumes de todo menino nordestino era criar pássaros, especialmente golinha, canário-da-terra, rolinha, galo-de-campina, azulão, graúna, concriz etc. Costume que de uns anos para cá praticamente acabou. E não era para menos.

Os motivos são inúmeros, como consciência ecológica, mudança de hábito em razão do crescimento urbano, desaparecimento dos animais, desinteresse das últimas gerações e, em especial, por ser crime ambiental.

Era uma prática terrível com os pássaros, e que Luiz Gonzaga eternizou a maldade do homem ao registrar que furavam os olhos da graúna para que ela “cantasse melhor”. Eu mesmo pude ver, quando criança, um exemplar de uma graúna cujos olhos foram furados pelo dono que se glorificava por ter um pássaro com canto tão belo. Só tempos depois compreendi aquele terrível hábito dos apreciadores das graúnas.

Aliás, a primeira vez que fui vítima da criminalidade foi quando furtaram o lindo canário-da-terra que, se não me fale a memória, ganhei do meu pai por volta dos oito anos de idade.

Naquele tempo, costumava deixar o portão da casa aberto enquanto ia brincar nas casas dos meus amigos pela vizinhança. Como não tinha noção do que era criminalidade naquela época, não imaginava que alguém pudesse furtar meu canário-da-terra.

Enfim, numas dessas minhas saídas, quando retornei para casa, a gaiola do meu canário, que ficava na área externa da casa, já não mais estava lá.

Não lembro se chorei; mas lembro que, desse dia em diante, isso não saiu da minha cabeça e, vez ou outra quando chego vou visitar minha mãe, lembro desse episódio.

De todos os passarinhos que criei na minha infância, o que me marcou mais foi um concriz.

Ganhei de um amigo do meu pai que, se registre, não gostou nem um pouco, pois ele detestava que aprisionassem os pássaros – embora tenha me presenteado com o canário-da-terra anos antes-, e apesar dos apelos do meu pai, criei com bastante esmero – ração, frutas, legumes, hortaliças, alguns insetos, o cano pendurado para ele dormir – até o coitado morrer de velho.

Pelas minhas contas, deve ter vivido doze anos. Era valente e tinha um canto belíssimo. Não, não tinha os olhos furados.

O que me impressionava, com o passar dos anos, era que ele cantava cada vez mais forte e lançava um olhar penetrante sobre mim quando eu chegava para colocar sua comida, trocar sua água e areia que ele adorava ingerir depois do banho que dava nele diariamente, apesar dos protestos dele.

Digo protestos pois ele cantava a plenos pulmões enquanto eu jogava água nele, que também mergulhava na tigelinha d´água e continuava enquanto estava comendo sua ração e as frutas.

No ano 2000, quando comprei meu primeiro celular, gravei o canto dele e coloquei como toque de chamada do meu telefone celular. Todos na faculdade riam quando meu telefone tocava.

Apesar de tudo, criei o meu concriz com bastante dedicação, cuidado e amor até o seu passamento.

Tantos anos após a sua morte, nesses últimos dias, assistindo a vários documentários sobre o cangaço, enquanto me recupero de um procedimento cirúrgico, me lembrei de um encontro que tive no ano de 2013 com o renomado escritor sobre o cangaço, Renato Luís Bandeira, na antiga sede do Sêbado, que naquele tempo funcionava na casa de seu proprietário na Av. Antônio Vieira de Sá, o outrora cirurgião-dentista Dr.Marcos Pereira, que hoje é largamente conhecido como Marcos do Sêbado, uma grande figura humana, sebista da melhor estirpe e de uma receptividade incrível.

Conversamos por um longo tempo sobre cangaço; adquiri alguns livros de autoria de Renato Luís, além do que, convenci-o a me vender do único exemplar que ele portava do livro “O canto da Acauã”, de autoria de Marilourdes Ferraz, filha do famoso Coronel Manoel Flor comandante de umas das volantes mais ferrenhas que perseguiu Lampião, que, aliás, é uma obra bastante difícil de adquirir.

A quem se interessar, dita obra tem um viés bem diferente do qual se costuma retratar as temidas volantes, pois, segundo a autora, houve uma verdadeira inversão de valores em relação ao papel das volantes, uma vez que ao longo do tempo, as mesmas foram transformadas em perseguidoras implacáveis dos cangaceiros, sem, no entanto, considerar que o fenômeno do cangaço já perdera a aura de movimento social e passou ao puro banditismo.

Em relação ao título da obra, penso que se trata de uma alusão à crença de que o canto do pequeno gavião da caatinga traz mau agouro e é um prenúncio da morte. Os sertanejos de mais idade levam a sério essa superstição.

Há quem chame a Acauã de Deus-quer-um, gavião-coveiro e cobreiro, sendo esta última denominação em razão de sua alimentação ser quase exclusivamente a base de cobras, inclusive as venenosas, e que, apesar de não ser imune ao veneno delas, é um ávido devorador de cascavéis e jararacas, de modo que o título do livro é bem sugestivo.

Com isso, após uma maratona de documentários sobre o cangaço e passar a vista novamente na literatura, me ocorreu de concluir que, apesar de naquele tempo eu cuidar do meu concriz, decerto quando ele escutava minha voz, para ele, deveria soar como o canto de uma Acauã, trazendo mau agouro, pois toda aquela agitação que eu via como uma satisfação dele que parecia cantar lindamente, em verdade, deveria ser muita raiva e desespero por estar ali confinado.

Que bom que os tempos mudaram, pois nenhum ser comemora a vida estando engaiolado ou canta melhor por ter os olhos furados.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/05/2024 - 08:38h

A velha rua

A Rua das Livrarias, Charing Cross Road, em Londres (Foto do Blog Mih Pocket)

A Rua das Livrarias, Charing Cross Road, em Londres (Foto do Blog Mih Pocket)

Por Marcelo Alves

Charing Cross Road é tradicionalmente conhecida como a “rua das livrarias” de Londres, sobretudo em razão dos seus muitos comércios de livros usados ou mesmo raros (e aí talvez esteja a diferença entre os sebos e os antiquários de livros). De tão famosa, entre outras coisas, deu título a um livro, “84 Charing Cross Road”, de 1970, da escritora Helene Hanff (1916-1997), que foi bater no cinema em 1987, com craques como Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench nos papéis principais. Livro e filme contam sobretudo uma estória de amor aos livros. Recomendo-os.

Quando cheguei a Londres para o meu doutorado, em 2008, ainda encontrei Charing Cross Road fornida de muitas livrarias e sebos. No meu primeiro ano por lá, morava bem pertinho, na Great Queen Street, em Covent Garden. Achava os comércios de livros de Charing Cross o máximo. E terminava quase todos os meus dias/noites zanzando por lá.

Havia lojas gigantes como a Blackwell’s, onde, por encomenda do saudoso Dr. Ernani Rosado, comprava coleções de filmes em DVDs (ainda assistíamos a filmes assim), de craques como Alfred Hitchcock (1899-1980), com títulos ainda do seu “período inglês”, ou David Lean (1908-1991), outro gênio do cinema britânico. Com a recomendação do Dr. Ernani, adquiria coisitas para mim também.

Havia também comércios bem especializados, como a adorável Murder One Bookshop, especializada, como o nome mesmo dá a entender, em estórias detetivescas e policiais. Eu adoro esse gênero de literatura, confesso. E havia, claro, os muitos sebos, que xeretava, pulando de porta em porta, descendo e subindo escadas, atrás dos títulos mais escondidos.

Ainda me recordo com saudade do meu achado, nos sebos daquela rua, de uma edição de bolso de “Ten Little Niggers” (também publicado em inglês, para evitar o título politicamente incorreto, como “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”), da minha Agatha Christie (1890-1976). O título “Ten Little Niggers” foi praticamente banido em livrarias e até em sebos. Comprei o danado, antigo mas conservado, em um dos comércios dali (já não lembro qual), por 3 libras esterlinas. Na Internet, achei uma edição igual por 730 libras. Guardo o meu exemplar com muito carinho.

Todavia, foi ainda nos meus anos em Londres, numa dessas infelizes coincidências, que fui observando, talvez em razão do crescimento do mercado dos livros digitais, talvez simplesmente porque as coisas inexoravelmente mudam, a decadência do comércio de livros de Charing Cross Road. Alguns comércios foram fechando as portas, como a Murder One Bookshop e, um pouco depois, até mesmo a grande loja da Blackwell’s.

Tendo estado agora novamente em Londres pelo período da Páscoa, achei as coisas ainda mais tristes. A decadência dos comércios de livros físicos parece que atingiu Charing Cross Road em cheio. Outras livrarias e sebos se foram; as que ficaram, como tenho dito, só pelejam. No dia em que estive por lá, empurrando o carrinho de meu pequeno João (uma trabalheira dos diabos), vi que a fachada do quarteirão onde ficam os sebos sobreviventes estava toda em reforma. Eram tapumes por todas as lojas.

Usei para mim mesmo a desculpa de estar ali com João, de ser muito difícil transitar com ele por escadas e estantes e fugi de Charing Cross. Não quis sequer ir à enorme livraria Foyles de Charing Cross, que, fundada em 1903, autoproclama possuir a maior quantidade de diferentes livros em estoque da Europa (coisa de 200 mil títulos, afirma, mas não sei dizer se é vero ou não). Espero que a reforma venha salvar ou, ao menos, dar sobrevida aos queridos sebos.

Na verdade, desanimado com a velha rua das livrarias, preferi ir caminhar em Cecil Court, ruela de pedestres que liga Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden.

Lindinha, pitoresca, parecendo ter parado no tempo, ela continua tomada de pequeninas lojas, livrarias e sebos especializados em livros antigos, primeiras edições, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Sobre essa ruela mágica falaremos qualquer dia desses.

Prometo.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 12/05/2024 - 07:22h

A vida é pra quem sabe viver

Ilustração Web

Ilustração Web

Por Odemirton Filho

Todos os dias, religiosamente, recebo por meio do Aplicativo WhatsApp mensagem do amigo Rocha Neto. São mensagens carregadas de esperança na vida e fé em Deus, inspiradas pelos melhores dos sentimentos, vindas do coração. Sem dúvida, quem as recebe, fica com a alma aquecida e renovada.

Diariamente, também, num grupo criado exclusivamente para oração, uma colega do trabalho envia áudios adorando e agradecendo a Deus pelo dom da vida, além de hinos de louvor. Um grupo de “zap” no qual somente ela, administradora, pode enviar mensagens.

Eis uma das vantagens do mundo tecnológico no qual vivemos: interagir com diversas pessoas, de forma rápida, ao mesmo tempo. Mas como encaramos a vida? Se, por um lado, há pessoas positivas, por outro, sempre existem pessoas negativas, com uma energia ruim.

Nem tudo na vida são flores, é certo. Porém, é preciso oxigenar o espírito com pensamentos positivos, dando-nos força para vencer os inúmeros obstáculos. Sempre reclamar de tudo, e de todos, não faz bem. Aliás, ao escrever, procuro transmitir aos leitores uma mensagem positiva, que resgatem do fundo do peito as lembranças, as saudades e os bons sentimentos.

Sua vida tá difícil? Agora, pense na tragédia do Rio Grande do Sul. Pensou? Pois é, percebeu como existem pessoas em situação pior? Por isso, devemos agradecer, sempre.

Guardar algum bem material para ser usado num momento singular pode não ser a melhor escolha. Não sabemos se chegará esse momento. Hoje ou amanhã tudo pode acabar. Uma canção interpretada pelo sambista Diogo Nogueira diz assim:

’A vida é pra quem sabe viver, procure aprender a arte pra quando apanhar não se abater; ganhar e perder faz parte…”

Se hoje perdemos, amanhã, ganharemos. Se hoje choramos, amanhã, sorriremos. Aqui ou acolá levamos umas rasteiras da vida, é verdade. Contudo, não podemos desistir.

Tristezas e preocupações? Sim, é claro que tenho. Entretanto, “Deus é maior! Maior é Deus, e quem tá com Ele nunca está só”.

Ah, e tenho alegrias. Muitas.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/05/2024 - 05:44h

De onde brotam os meus escritos

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Por Marcos Ferreira

Certas vezes, já noite alta, acontece de avistarmos em algumas ruas e estradas aquele ser humano (homem ou mulher, idoso ou idosa) sozinho e a pé em direção a lugar nenhum. Isso mesmo! Pois não têm para onde ir ou retornar. Simplesmente vagam por aí durante horas a fio sem amparo, sem um teto.

São os leprosos sociais. Uma gigantesca parcela de indivíduos tapa o nariz e passa ao largo ao se deparar com os pobres-diabos. Há quem ache que miséria é transmissível pelo ar e, sobretudo, pelo contato físico. Já fui um leproso social, no entanto encontrei cidadãos que me trataram com dignidade. Vivi tempos difíceis, como muitos, mas tive a felicidade de ser acolhido por anjos sem asas.

Nem todos querem saber desses desprotegidos que a Bíblia Sagrada afiança que são nossos irmãos. Porque (na cabeça de certos fatalistas) tais desgraçados estão colhendo somente o que plantaram. E assim lavam as mãos, imitam Pôncio Pilatos e vão às suas igrejas na cara dura dizer a Deus e a Jesus Cristo que são dignos de todas as bênçãos, bem-aventurança e prosperidade. É de sacripantas dessa natureza que brotam os meus escritos. Querem salvação sem fazer caridade.

Olho à minha volta e constato o quanto sou privilegiado. A saúde às vezes falha um pouco, todavia estou no lucro. Penso logo naqueles que não têm nada, que estão na sarjeta. É daí, entre outras coisas, que brotam os meus escritos. Adquiri essa mania, essa teimosia que faz com que eu me importe com a vida alheia. A vida de gente dessa espécie, gente desvalida, abandonada por Deus e pelo Diabo, invisíveis em meio a uma sociedade (salvo exceções) materialista e discricionária.

Agora todo “mundo” está sensibilizado com a tragédia no Rio Grande do Sul. Uma lástima! É comovente. Difícil segurar as comportas dos nossos olhos. Ao menos as comportas dos meus. Mas não vi (não vejo) comoção dos brasileiros e governos quando a seca no Nordeste castiga e humilha os nossos microscópicos agricultores, a gente pobre do sertão nordestino, o sertanejo que, desde sempre, é largado à própria sorte, ao deus-dará. Daí também brotam os meus escritos.

Essa barbárie na Palestina e na Ucrânia é uma vergonha ecumênica, uma pústula planetária. Vi em uma rede social uma frase atribuída a William Shakespeare que diz o seguinte: “O Inferno está vazio, todos os demônios estão aqui!”. Concordo. Enquanto inocentes são massacrados na Palestina e na Ucrânia, o sumo pontífice (a exemplo de todos os outros em suas épocas) segue rezando, contudo os demônios não dão a mínima para as orações do porta-voz do Altíssimo.

Fulano escreve, anuncia-se como solidário, mas na hora de baixar o vidro do carro e estender a mão ele vira a cara para o outro lado, o semáforo fica verdinho e o falso cristão segue viagem no bem-bom do ar-condicionado do seu veículo confortável. Outros são mais afetados, pegam um microfone e deitam falação, vendem-se por defensores e representantes dos miseráveis. Tudo lorota!

Dessas e outras coisas, volto a dizer, brotam os meus escritos. Aquele sem-número de gatinhos e cães abandonados em Mossoró são criaturas do Criador e merecem o mínimo de nossa sensibilidade e ajuda. Mas os políticos (os da direita quanto os da esquerda) se passam por cegos ou fingem não saber de nada. Desprezam a problemática dos animais de rua e o vínculo disso com as zoonoses.

Há cerca de um mês, ao comentar uma crônica minha, o senhor Pedro Nunes, meu vizinho, perguntou-me de onde é que tiro tanto assunto para escrever. Respondi que essa é a parte menos difícil, pois os meus escritos brotam de um manancial chamado vida em sociedade. Ou seja, algo que não tem fim.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 05/05/2024 - 12:38h

A mudança do cenário

Por Marcelo Alves

Vista panorâmica de Londres (Foto: Web)

Vista panorâmica de Londres (Foto: Web)

Pela época da Páscoa, estive em Londres com a minha família. A ideia era levar o pequeno João para conhecer a cidade onde o pai, há mais de uma década, havia morado e estudado quando do seu doutorado. Foi cansativo, é verdade, mas valeu a pena. A alma de João – a “imaginação” talvez seja a palavra justa – não é pequena.

É verdade que eu já havia estado em Londres outras vezes desde que terminei o doutorado. Mas, desta vez, achei as coisas bem diferentes. Vi muitos moradores de rua, algo de chamar mesmo a atenção. E achei tudo muito caro. Caríssimo, posso dizer, para nós brasileiros, com uma libra valendo quase sete reais. Amigos que moram por lá nos disseram que a inflação dos últimos anos foi terrível. Para se ter uma ideia, achamos Paris, para onde fomos em seguida, até “barata”. E já desistimos dos planos de estudar inglês, ano vindouro, na capital do Reino Unido.

Mas minha epifania sobre a mudança no “cenário” londrino veio mesmo quando vi um cartaz anunciando a peça “Long Day’s Journey into Night” (“Longa jornada noite adentro”, entre nós), obra-prima do americano Eugene O’Neill (1888-1953). Para quem não sabe, “Long Day’s Journey into Night” foi escrita em 1941. Mas, autobiográfica, O’Neill deixou instruções para que só fosse publicada 25 anos após a sua morte e, mesmo assim, nunca fosse levada aos palcos.

Suas instruções, ainda bem, não foram seguidas à risca. A peça teve a sua première em Estocolmo, Suécia, em fevereiro de 1956 (e em sueco, curiosamente). No mesmo ano, estreou na Broadway. Deu a O’Neill o prêmio Pulitzer de 1957.

Lembro-me bem que, morando então em Londres, fui assistir a “Long Day’s Journey into Night” no Apollo Theatre, em Shaftesbury Avenue, bem pertinho de Piccadilly Circus. A opinião dos críticos ingleses era unânime: David Suchet e Laurie Mettcalf davam um show na refinada produção da obra de O’Neill. Some a isso o fato de que eu era fã de David Suchet – na verdade, sou –, pela sua interpretação de Hercule Poirot, no seriado “Agatha Christie’s Poirot” da rede de televisão ITV.

Mas, desta vez, a peça, com Brian Cox interpretando a personagem principal James Tyrone, estava em Cartaz no Wyndham’s Theatre, localizado em Charing Cross Road, rua famosa por outrora abrigar as inúmeras livrarias especializadas e de segunda mão da metrópole londrina.

NÃO SEI SE FOI A MUDANÇA dos teatros e dos atores principais (embora tanto David Suchet como Brian Cox sejam craques do métier), não sei se foi a lembrança do tom genialmente desesperançoso de “Long Day’s Journey into Night” – um jogo de culpas, mas, sobretudo, de dissimulações; esconde-se a tuberculose; esconde-se a dependência à morfina; brinca-se com a bebida, apesar do alcoolismo na família; uma das últimas cenas, em que o pai conta ao filho enfermo, ambos dominados pela “emoção” do álcool, as desventuras de sua infância miserável e sua ascensão na vida, é mais que tocante; e a peça prende a nossa atenção até a cena final, quando a família termina reunida em torno da mãe, que, tomada pela morfina, parece um fantasma –, mas, não mais do que de repente, vi que até a Charing Cross Road que eu conheci, nos meus primeiros anos de Londres, ainda como a “rua das livrarias”, havia também mudado de cenário.

Uma mudança, sob o meu ponto de vista de amante dos livros, para muito pior. Muitas livrarias já se foram; as que ficaram, pelejam. Uma decadência que parece atingir os comércios de livros físicos por todo o mundo, mas que, sob o impacto da recordação do desenlace de “Long Day’s Journey into Night”, senti de uma maneira muito intensa, como se defronte à velhice e à doença de um ente querido, cuja dor e, sobretudo, o destino, nem mesmo a morfina resolve.

É verdade que alguns comércios de livros de Charing Cross Road, três ou quatro, ainda resistem. E é verdade que a famosa Cecil Court, rua de pedestres ligando de Charing Cross à St. Martin’s Lane, em direção à Covent Garden, ainda está ativa, com suas pequenas livrarias independentes, muitas especializadas em livros colecionáveis, primeiras ou raras edições, mapas e gravuras antigas, artigos de numismática e por aí vai. Talvez sejam até mais antiquários do que livrarias.

Ainda vale a pena passear por lá xeretando as vitrines. Nossa alma, quanto aos livros, nunca deve ser pequena.

Mas esse é o cenário para uma próxima – e espero não tão saudosa – crônica.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/05/2024 - 11:02h

Antes das redes sociais

Por Odemirton Filho

Ilustração Web

Ilustração Web

Lá pelo ano de 2005, portanto há quase vinte anos, a forma pela qual tínhamos notícias dos fatos era diferente. Já existia a internet, é certo. As notícias circulavam instantaneamente em sites e blogs de conteúdos diversos. Este Blog, por exemplo, deu as caras em 03 de maio de 2007; porém, à época, ainda não vivíamos com os olhos grudados nas telas dos computadores e smartphones.

Entretanto, a partir de 2007 com o Facebook no Brasil, e o Instagram e WhatsApp entre 2009/2010, a forma como nos relacionarmos com outras pessoas passou a ser diferente. Amigos que há tempos não víamos, ficaram próximos. Se antes eram com as fofocas nas calçadas e nas reuniões de famílias que sabíamos sobre a vida alheia, agora, não.

QUASE TODO MUNDO EXPÕE SUA VIDA nas redes sociais; tão nem aí. Agora, sabemos onde as pessoas estão. Se estão num barzinho tomando umas; se estão numa festa, viajando pelo Brasil ou pela Europa. Sabemos até o que estão comendo. Servidos?

É claro que não direi que o mundo era melhor antes das redes sociais e da internet, pois a violência, as mazelas sociais e as dificuldades já existiam. A vida sempre foi difícil, e sempre será. Falo é sobre as relações interpessoais. Mas, cá pra nós e a torcida do Mengão, mentiras, fofocas, inveja, ostentação, sempre fizeram parte de nossas vidas. As redes sociais apenas deram visibilidade, com rapidez.

Ah, agora as notícias falsas levam o epíteto de fakes news. Todavia, as notícias falsas e o jornalismo parcial sempre existiram. A diferença é que antes da internet e das redes sociais os fatos e fakes demoravam um pouco mais para se tornarem conhecidos. Político acusando o adversário de meter a mão nos cofres públicos? Não é novidade.

E político que gosta de aparecer na mídia? Ora, ora, sempre existiu. Há exemplos aqui e alhures, de ontem e de hoje. Contudo, não podemos dizer que a internet e as redes sociais não legaram coisas boas. Temos o conhecimento à disposição, basta pesquisar no Google. Por outro lado, infelizmente, há o submundo da Deep web.

Pois é, existia vida antes das redes sociais. Mas, agora, cabe-nos utilizá-las da melhor forma, filtrando o que há de bom. Principalmente, sem esquecer que o mundo real é melhor do que o virtual.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 05/05/2024 - 10:30h

A indignidade da vida e a apologia da morte

Por Marcos Araújo

Ilustração IA/Web

Ilustração IA/Web

Dinamogênese é uma expressão que os doutos utilizam para falar sobre a dinâmica da evolução dos seres humanos ao longo da história, especialmente na formação dos seus direitos (sociais, econômicos, culturais, humanos etc.). A partir do processo de consolidação de determinados valores morais e éticos que emergem na sociedade, criamos normas e instituições que se tornam eixos fundamentais no respeito à paz, à convivência e à dignidade humana.

A partir dos acontecimentos que vêm se sucedendo neste primeiro quartel do Século XXI, sociólogos e estudiosos do mundo inteiro têm afirmado que está em curso um processo involutivo civilizatório, comprovado pela degradação daquilo que é a busca maior das sociedades: a dignidade e o respeito à pessoa humana.

Um retrato criminológico da nossa região na semana passada, infelizmente, é uma prova cabal de que há uma visível razão no pensar científico da involução. Em Assú, um assassinato brutal de uma psicóloga apenas para obtenção de uma informação privada; em Fortaleza, a crueldade de uma decapitação dentro de um hospital; em Recife, um porteiro do hospital morto apenas porque o assassino queria chegar logo em casa…No aspecto nacional, uma cobrança de uma dívida, fez uma mãe e dois filhos (um deles formado em Medicina) se arvorarem de justiceiros e invadir uma residência e matar dois idosos. Fico no exemplo brasileiro para não me reportar ao plano internacional, onde povos belicamente desenvolvidos, travam batalhas irracionais como se ignóbeis mentais fossem.

Os sinais que a sociedade planetária lança são preocupantes. Estamos meio a uma crise fundamental, entrando em uma era de barbárie, onde os direitos essenciais se desvanecem (inclusive o de se alimentar). Hoje, milhões de pessoas estão privadas de água potável e de alimento, sem qualquer gritaria da comunidade internacional.

O planeta agoniza com muitas crises simultâneas. Os problemas são comuns às nações, como: o conflito entre as religiões; a ameaça das democracias; o crescimento assustador dos movimentos conservadores e ultranacionalistas; a indiferença e o isolacionismo dos países pobres; as guerras civis e aquelas travadas entre países confinantes… Seres humanos que não reconhecem os outros como humanos.

Estamos no meio de uma emergência humanitária. Contam-se os mortos aos milhares, ou aos milhões? Quem pode calcular as vidas perdidas na guerra entre Israel e a Palestina? Quantos outros milhares morrem diariamente nas águas do Mediterrâneo, tentando chegar à Europa, ou nas trilhas da América Latina para os Estados Unidos? E os conflitos no Haiti, e as vidas perdidas nos países da África subsaariana?

NO ANTIGO TESTAMENTO, a valorização da pessoa humana pode ser percebida na crença de que o homem seria o ápice da criação divina, na medida em que fora criado à imagem e semelhança de Deus. No Novo Testamento, o próprio Cristo ensina que o maior dos mandamentos é amar o próximo como a si mesmo. Pensar que o outro também é fruto da criação de Deus e que isso nos torna fraternalmente irmãos, foi um equalizador social por séculos. Não mais.

Escutamos todos os dias esta reprodução bíblica nas pregações televisivas e nos discursos apologéticos de líderes religiosos, que inexplicavelmente mantêm-se inertes e silentes aos crimes coletivos cometidos pelos governantes e agentes capitalistas da dominação econômica.

A fraternidade universal nos adverte que a vida em comum é uma construção que depende de nós, uma realidade originaria e ideal a alcançar. A desobediência ao direito natural de viver e conviver em paz compromete o que é mais emblemático na existência humana: a dignidade. Não pode ser considerada digna uma vida que se baseia na cultura da morte. Todos os dias descemos um degrau no patamar do mínimo civilizatório.

Viramos expectadores do crime, rezando a Deus para que não sejamos expostos a um dos seus dantescos cenários. Tenho minhas dúvidas se ainda conseguiremos a formação de uma consciência moral coletiva acerca da retomada da evolução da humanidade.

Resta-nos a esperança. E a contribuição individual que musicou Ivan Lins: 

“Depende de nós

Quem já foi ou ainda é criança

Que acredita ou tem esperança

Quem faz tudo pra um mundo melhor

(…)

Depende de nós

Se esse mundo ainda tem jeito

Apesar do que o homem tem feito

Se a vida sobreviverá”

Marcos Araújo advogado e professor da Universidade do Estado do RN (UERN)

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/05/2024 - 09:14h

Autorretrato

Por Marcos Ferreira

Foto do autor aos quatro anos de idade (Reprodução)

Foto do autor aos quatro anos de idade (Reprodução)

Tudo está na mesa, tudo às claras, meu irmão. Só não vê quem não quer. Todas as cartas estão na mesa da desigualdade social. A vida está posta e a gente sabe que a vida não é moleza, não. Nesse jogo da existência, do sobreviver cotidianamente, o pão não é um artigo fácil. São muitas voltas no corpo, muito jogo de cintura. Pergunte aos desvalidos deste país se estou mentindo. Não estou.

Ah, como somos felizes! Ainda assim nem sempre somos gratos; há vezes em que esquecemos disso. É até corriqueiro. Somos avarentos, somíticos. Porque, como se diz, a medida do ter nunca enche, sempre queremos algo mais. Nunca (salvo exceções) estamos satisfeitos com o que já temos. No final das contas, meu irmão, para a maior parte das pessoas que constituem esta pátria por demais injusta, a vida é um osso. É muito sofrer, muito suor, lágrimas, choro, ranger de dentes.

Quantos não estão por aí tiritando de frio, desabrigados, acossados pela fome, perseguidos pelo desemprego, sem onde cair mortos? Já eu, graças a Deus, estou muito bem, obrigado. Como se os outros, os miseráveis, não fossem merecedores da mão protetora desse mesmo Deus que ora me propicia bem-estar e amparo. Não compreendo esse Deus, porém todos gritam que Deus sabe o que faz.

Penso agora nessa desinteligência, nesse desígnio que deixa uma gigantesca parcela da população ao deus-dará. No frigir dos ovos, pois, parece que Deus não vê isso. É tão triste, meu irmão. Olho à minha volta e aqui me encontro e me sinto privilegiado, agraciado com um teto, comida, meus remédios e um pouco de dinheiro para acudir as despesas, pagar consultas médicas. Minha geladeira, meu irmão, é velha, mas representa um luxo na minha também modesta opinião.

Além de comida, água, luz, uma rede de dormir e alguns poucos móveis, usufruo de segurança. Considerando a penúria, a invisibilidade escancarada nos semáforos, os cartazes com pedidos de socorro, os brasileiros desamparados que suplicam pela caridade de pessoas que podem ajudar e não ajudam, afirmo que atualmente minha vida é um paraíso. Conto até com um serviço de internet.

Desapareceu a casa de taipa, de pau a pique. A chuva pode vir com vontade, pois aquele teto estiolado agora é outro que não me causa transtornos. O fogão a lenha escafedeu-se. Sumiram a tisna das paredes da cozinha e o rendilhado de picumãs. O café da manhã já não é diáfano com o pão da véspera, que a gente comprava pela metade do preço em uma padaria da Avenida Alberto Maranhão.

A farinha com açúcar no almoço ou jantar deu lugar a coisas melhores. Após longos anos, Deus disse: “Vão embora da vida dessa criatura, senhora Fome e senhora Miséria!” Então elas obedeceram e picaram a mula.

Deus precisa repetir essas mesmas palavras em todos os lares onde a Miséria e a Fome continuam como inquilinas, meu irmão. Tenho certeza de que não sou o único merecedor da intercessão do Altíssimo. É inevitável, quando pego no prato de comida e na colher, esquecer desses que agora mendigam nos semáforos, lançando contra os abastados as flechas dos seus olhares famintos, carentes.

Sou um sobrevivente, meu irmão. E hoje, após aqueles tempos bicudos, estou certo de que o correto é a gente contar nossa história com veracidade. Deus me disse ainda que eu não fizesse muitos planos, que esse negócio de diploma de nível superior não era (até agora não) para mim. Em troca, para meu ressarcimento, o Todo-Poderoso me deu o consolo de escrever por homologação divina. Isto não dá camisa a ninguém, como se costuma dizer, mas me abriu algumas portas.

Josué de Castro, em seu clássico Geografia da Fome, diz: “Metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come”. Quem dera que fosse só a metade sem comida. O número é muito maior, infelizmente. Josué de Castro (o qual o deputado federal Guilherme Boulos parafraseou) também disse que a fome no Brasil não é um problema social, e um projeto político.

Entendo dessas coisas, meu irmão. Tenho conhecimento de causa nesses assuntos de vazio estomacal. No correr daqueles anos de 1970 e 1980, sobretudo, éramos uma prole de onze filhos para um sapateiro e uma dona de casa analfabeta colocar comida na barriga. Ah, meu irmão! Não diga que é coitadismo ou pobrismo que agora salta das pontas dos dedos deste tecelão de palavras. Não diga.

Imagine isso: um menininho cabeçudo e com cara de choro, extraído do útero da miséria, agora exposto num retrato em preto e branco carcomido pelo tempo. Quem diria que ele (um zero à esquerda no tocante aos algarismos) se tornaria um homem de letras. Não é muita coisa, eu sei, contudo não deixa de ser uma simbólica façanha. Porque você, meu irmão, ficou comigo até o final destas linhas.

Imagino que isso seja um indicativo de que este autorretrato, feito de reminiscências que não se apagam na minha cabeça, tocou o seu coração e enterneceu a sua alma. Dito isto, meu irmão, é sempre possível a gente tirar um tantinho do quanto nós temos e oferecer, ao menos, um pão da véspera àquelas pessoas que talvez só tenham em suas casas nada além de café ralo e farinha com açúcar.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 28/04/2024 - 09:00h

Longe, as serras…

Por Honório de Medeiros

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Longe, as serras. Acima, nuvens carregadas de chuva.

O verde da mata. A estradinha de terra vermelha rasgando o chão. A água do açude. A árvore onde araras fizeram pouso. O perfume do ar carregado de umidade.

Vou amarrar minha burra choteira aí, nesse presente de Deus. Eu e minha amada.

Numa casinha simples, alpendrada, onde a passarinhada faça pouso, e, de noite, um ou outro saci venha pitar, quando for lua cheia…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário do Governo do RN e da Prefeitura de Natal

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Categoria(s): Crônica
domingo - 28/04/2024 - 07:42h

Anagramas, pronomes e adjetivações

Por Bruno Ernesto

Ilustração da página Filosofia Incerta

Ilustração da página Filosofia Incerta

Quem tem mais de quarenta anos de idade, certamente se recorda dos apelidos que inundavam as rodas de conversas com os amigos.

O politicamente correto não tinha o relevo social, cultural e, em especial, o legal, que hoje todos podemos constatar.

É algo bastante sério, sob todos os aspectos, e pode implicar em sérias consequências para todos os envolvidos.

Havia todo tipo de classificação. De anagramas e pronomes a adjetivações. Jocosas, sarcásticas e, claro, as que hoje seriam politicamente incorretas. Se não, criminosas.

O certo é que o velho ditado de que quanto mais se chateia, mais incendeia, ainda está em pleno vigor.

Em que pesem as implicações legais hoje, a turma não perdoa. A diferença é que o fazem de maneira mais elaborada e mais eloquente, de modo que o sarcasmo e a ironia são essenciais para a sobrevivência dessa, digamos assim, “arte”.

Decerto que há os que ainda gostam da forma tradicional, ou raiz. Tudo é questão de “estilo” e disposição.

Se antigamente ainda podíamos, de uma certa forma, criar anagramas, utilizar pronomes e destacar adjetivações numa roda de conversa, uma rápida pesquisa na internet desencoraja até os mais habilidosos articuladores.

As próprias “regras e diretrizes” de algumas redes sociais são aplicadas de forma automática mediante utilização de algoritmos próprios que cuidam de punir prontamente quem não conseguir burlá-las.

Por incrível que pareça, podemos lançar mão de um simples subterfúgio, como substituir uma letra A por um número 4, para burlá-las; e abstraindo o que a inteligência artificial pode fazer atualmente, essa simples substituição de caractere, aparentemente, consegue burlar o algoritmo.

Não obstante os aspectos negativos e as consequências, ainda podemos nos divertir e criticar de forma incisiva certos acontecimentos, cujo alcance por outro meio talvez não despertasse a atenção e o interesse das pessoas.

As tirinhas e as charges têm papel relevante nesse aspecto. Talvez tenham em sua essência essa liberdade.

Política, relações familiares, amizade, religião, educação, trabalho, economia, história e uma infinidade de temas, dão vida a elas. E, de mão dadas, o sarcasmo e a ironia, elevam o tom; como naquela citação de alguém, de que não me recordo a autoria, que diz que é ateu, graças a Deus.

Disso, é um perigo lançar mão desses recursos literários e exercitar a crítica, uma vez que, tal qual a assertiva de Jaques Lacan – de que você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou ou entendeu -, em certos momentos, lhe deixará uma dúvida terrível, pois a limitação do outro, lhe retira a satisfação de se fazer criticar.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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domingo - 28/04/2024 - 07:16h

Os doces anos da infância

Por Odemirton FilhoDia Nacional do Abraço

O tempo não apaga as lembranças; no máximo, o entardecer da vida faz arrefecer o calor de um coração inundado de saudades. Mas apagar? Apaga não. Assim foi com Arlindo, quando retornou à casa de seus avós depois de muitos, muitos anos. A velha casa estava fechada há tempos. A briga pela herança de pouca monta impedia que o processo de inventário terminasse. Recursos, embargos, impugnações e chicanas de toda sorte faziam a marcha processual emperrar. Os autos do processo sempre estavam conclusos para o juiz prolatar alguma decisão.

Ele fora criado pelos avós maternos desde a mais tenra idade. Toda vez que ouvia a música Avôhai, de Zé Ramalho, sentia um nó na garganta. Vinha à memória a figura de seu avô-pai. “Um velho cruza a soleira de botas longas, de barbas longas”. De sua avó lembrava-se do carinho. De vê-la ao seu lado quando ele estava doente; dos intermináveis “sermões”. Sentia o gosto do arroz de leite e da carne de sol preparados por ela.

Quando completou dezoito anos de idade, mudou-se para a casa de um tio, numa cidade grande, em busca de um futuro promissor. Lembrava-se do dia de sua partida. O seu avô já tinha falecido à época. Contudo, a sua avó, já avançada em anos, despediu-se com lágrimas nos olhos. Deram-se um abraço apertado, daqueles que aquecem a alma.

Infelizmente, tempos depois, quando sua vó faleceu, ele não pode comparecer ao velório, pois morava longe e o dinheiro era contado. Penitenciava-se por essa imperdoável falta. Entretanto, na primeira oportunidade, voltou à sua cidade; foi rever o local onde viveu os doces anos da infância.

Parafraseando a bela canção de Roberto Carlos, ele foi abrindo a porta devagar, mas deixou a luz entrar primeiro, todo o seu passado iluminou-se, e entrou. Em cada canto da casa, lembranças. Os móveis, deteriorados pelo tempo, estavam cobertos por lençóis empoeirados. Foi até a cozinha, os utensílios ainda estavam lá, do jeitinho que sua avó gostava de arrumar. No seu antigo quarto, os brinquedos permaneciam na estante.

Ao olhar a máquina de costura que sua avó trabalhava, incansavelmente, emocionou-se. Lembrou-se que, quando era criança, gostava de ficar ao pé da máquina, brincando, enquanto sua avó preparava o almoço, contando histórias e estórias. E riam, riam, riam.

Arlindo se sentou no chão, próximo à máquina, tecendo na mente um passado de inúmeras memórias afetivas.

Por um instante, o seu corpo arrepiou-se. E sentiu, mais uma vez, o abraço carinhoso da sua vó.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 28/04/2024 - 06:20h

Onde você estiver

Por Marcos Ferreira

"Preciosa" em pose para foto do autor da crônica

“Preciosa” em pose para foto do autor da crônica

Penso em quanta vida você tinha pela frente. Uma mocinha cheia de saúde e vigor, uma bichana sapeca, irresistível. Assim era você. Poderíamos chegar à velhice juntos. Isto supondo que eu alcance uma idade avançada. Porém o acaso, um destino injusto e tão perverso, tirou você de mim. Estamos irremediavelmente separados. Onde você estiver, Preciosa, saiba que você nunca será esquecida.

Restaram sobre os móveis as marcas dos seus pesinhos. Todas as suas coisinhas continuam aqui: a caixa com a areia que você nem pôde usar; a ração também posta recentemente; a vasilha com a água que eu trocava com frequência por outra geladinha. Sim. Daqui por diante, neste nosso diálogo (na verdade um monólogo proferido em silêncio), empregarei uma porção de diminutivos repletos de amor e brandura. Durante esses dias fui dormir (ao menos tentei) com a janela e a porta da cozinha abertas, na esperança de você voltar a qualquer hora da noite.

Você não calcula o quanto é difícil enxergar o que escrevo neste momento tendo nos olhos um oceano de tristeza e saudade. É complicado, Preciosa. Talvez alguém me diga: “Adote outra gatinha”. Não quero! Não tenho mais lugar, não tenho mais espaço no meu coração onde se possa inserir outra cicatriz gerada pela morte de uma ternurinha como você. Você se foi para sempre, querida Preciosa, e me deixou todo esse vazio impossível de ser preenchido por nenhuma outra.

Lembra de quando a gente se encontrou, da primeira vez que nos vimos? Naquele instante (com um ou dois meses de vida, abandonada no mundo, indefesa, passando fome e sede, doente e invisível perante a maior parte das pessoas) senti que as nossas almas tinham tudo a ver. Você foi um arrimo, uma companheirinha, o meu facho de luz, um farol nesta minha existência por vezes obscura.

Ah, Preciosa! Você fazia a Solidão de gato e sapato. A sua presença, além de uma dádiva para este meu espírito de pescador de encantamentos, era um dia a dia de afagos, mimos, cumplicidade. Seus pelinhos permanecem, sobretudo, nas roupas de dormir. Tínhamos, você sabe, uma sintonia, uma praxe toda especial quando se aproximava a vez de sossegarmos, após eu tomar os meus remédios e ver um pouco de televisão.

A rede armada na sala, duas cadeiras perto de mim. Você ocupava uma e na outra ficavam meus óculos, o telefone e o controle remoto da tevê.

Depois de passar um tempinho comigo na rede, de afagar o meu peito com as suas patinhas acolchoadas e conferir o meu cheiro, como se assim estivesse me dando um beijinho de boa noite, você ia para a sua cadeirinha. Daí a pouco você já estava dormindo. O efeito dos meus remédios também chegava, eu desligava tudo e a gente dormia dessa maneira. Até que na manhã seguinte você me acordava logo que os passarinhos começavam a pipilar nos verdes condomínios das arvores.

Agora não há mais nada disso, Preciosa; apenas esta dor, a ausência, a salina que se formou nos meus olhos e vai riscando o meu rosto. Procurei você em tantos lugares. Perguntei a um monte de moradores deste bairro, contudo nenhum deles me deu notícias de você, Preciosa. Nem o apoio das redes sociais foi poderoso o bastante para informar o seu paradeiro. Achei que estivesse muito distante, porém você estava quase debaixo do meu nariz. Isto é, em cima do telhado de uma casa vizinha. Somente o mau cheiro, após esses dias de buscas, denunciou a sua localização.

Você desapareceu naquele começo de noite. Até agora não sei o que aconteceu. O que eu sei é que nunca mais terei as suas pequenas travessuras, as suas brincadeiras repentinas, os zapetrapes vez por outra nos meus calcanhares, a sua meiguice à noite, no horário em que a gente se preparava para dormir.

Dava um trabalhinho, mas eu adorava fotografar você. O seu olhar me transmitia muita coisa boa. Sentia-me tão querido por você. Guardarei as suas fotos, os vídeos e as boas e tantas recordações.

Adeus, minha Preciosa!

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 21/04/2024 - 12:00h

Limítrofe

Por Bruno Ernesto

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Até que ponto a degradação humana lhe afeta?

Lembro de um filme alemão chamado Das experiment (A experiência), lançado em 2002 e dirigido por Oliver Hirschbiegel, o qual reproduz um experimento realizado no ano de 1971 na universidade de Stanford.

Nele, vinte voluntários são divididos em dois grupos, sendo oito deles carcereiros e demais prisioneiros.

O experimento consistia em observar o comportamento dos dois grupos simulando uma prisão.

Uma semana após o início, o nível de violência e degradação humana foi tão surpreendente, com uma total falta de controle dos voluntários que faziam o papel de carcereiros, que esses passaram a praticar todos os tipos de violência contra os voluntários no papel de prisioneiros, o que forçou sua interrupção.

Quando falamos de degradação humana pela violência física, estranhamente, ela desperta mais interesse e é incrivelmente mais atraente para as pessoas; embora muitos não admitam.

Entretanto, há uma degradação humana, muitas vezes silenciosa, porém tão cruel e, por vezes, igualmente mortal.

Vez ou outra vemos nos noticiários matérias acerca da situação econômica no Brasil e mundo a afora. Invariavelmente, não muito animadoras. Mas a vida segue.

Há dois autores que escreveram sobre privações e dificuldades em dois sistemas político-econômicos distintos e que, ainda hoje, geram grandes discussões: capitalismo e socialismo.

A diferença básica entre suas obras, é que uma, tal qual o filme, foi um experimento; e outra, foi pura realidade.

Conhecido pelo seu famoso livro 1984, o ingglês, George Orwell, uma obra tanto distópica quanto satírica, iniciou sua vida literária com o livro “Na pior em Paris e Londres”, escrito na década de 1920, quando largou tudo para iniciar sua vida literária, entretanto, só publicado em 1933.

A obra foi idealizada por Orwell para relatar a situação limite de pessoas com dificuldades financeiras. Uma população invisível.

Conta a vida das mais variadas pessoas. Desde sapateiros, pedreiros, cozinheiros, trabalhadores braçais, desempregados, até estudantes universitários, demonstrando que a ruína financeira, a miséria e o desamparo material, deterioram rapidamente qualquer perspectiva, quando se está extremamente necessitado, alterando e, repetidamente, interrompendo planos, ainda que seja por um prato de comida ou um lugar para passar a noite, registrando vividamente o desespero e luta diária de uma pessoa no intuito único de conseguir o básico naquela situação crítica de sobrevivência naquelas duas cidades que representam, ainda hoje, o capitalismo: Paris e Londres.

Para tanto, como uma forma de melhor imergir naquele mundo, passou, literalmente, a viver naquelas mesmas condições e, assim, poder relatar fielmente como era aquela situação de vida.

Orwell, brilhantemente registrou que a primeira experiência com a pobreza vem carregada com o temor de que ela estava prestes a acontecer.

Dizia ele que muito embora as pessoas relutassem, mais cedo ou mais tarde, ela – a pobreza – se materializaria, e tudo se dava de forma prosaicamente diferente, porém, de forma completa, extremamente diferente e extraordinariamente complicada.

E a primeira coisa que se conhecia era a baixeza peculiar da pobreza e as mudanças que ela impõe; o desnudamento de si mesmo, e a invisibilidade.

De uma hora para a outra, tudo se esvai entre os dedos e diante dos olhos.

O outro autor é russo Serguei Dovlátov, autor do livro “A mala”.

Em “A mala”, ele traz à tona sua história de como emigrou da antiga União Soviética para os Estados Unidos da América no final da década de 1970, relatando as dificuldades de sobreviver em sua terra natal no auge da Guerra Fria.

Ilustradamente, no início de sua obra, ele resume, sarcasticamente, que o regime socialista solucionava tudo, até a oferta e a procura de meias de crepe, como foi ocaso do fiasco de sua negociação na compra de uma grande carga de meias de crepe finlandesas verdes, e que no outro dia houve uma inundação de meias de crepe russas custando um décimo do valor que pretendia vendê-las.

Além disso, descreveu, de forma sutil, entretanto, bastante direta e crua, que a situação econômica estava tão deteriorada, que mesmo tendo ficado revoltado ao saber que, pelas regras da União Soviética, quem emigrava só poderia levar consigo três malas, descobriu que tudo que possuía naquele tempo, mal ocupava uma mala.

Assim, apesar de situações distintas, o aviso é o mesmo: tudo é limítrofe.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 21/04/2024 - 11:28h

Cambridge e sua universidade

Por Marcelo Alves

Foto Web

Foto Web

Assim como Oxford (sobre a qual escrevi dia desses), Cambridge está a cerca de uma hora de trem de Londres. Não é uma cidade grande. Pouco menos de 150 mil habitantes, acredito. Dominada pelo rio Cam, ela está também entre os mais visitados destinos turísticos do Reino Unido. E aqui vai uma dica para quem quer flanar por lá: o passeio deve começar pela King’s Parade, rua/praça defronte ao King’s College, que, pela sua localização, marca a vida de cidade.

Cambridge tem aquele apelo todo especial para os que gostam do chamado “turismo cultural”. Isso está relacionado à sua universidade. Antiquíssima, ela foi fundada em 1209, a partir de uma dissidência de estudiosos de Oxford. Arenga boa! Cambridge está hoje entre as melhores universidades do mundo. Um dos primeiríssimos lugares em qualquer ranking.

Ela conta com cerca de 20 mil alunos. A maioria é de graduação, sure. Mas há um alto percentual de pós-graduandos, em torno de 30/40 por cento do total, com o consequente impacto positivo no orçamento, nas pesquisas, nas publicações etc. Ela é o sonho – e para a grande maioria não passará de um sonho – de muitos estudantes nacionais e estrangeiros.

Tal qual a congênere de Oxford, a organização/governança da Universidade de Cambridge é sui generis. Na governança central, possui departamentos, faculdades ou “schools”, grandes museus (como o maravilhoso Fitzwilliam Museum, dedicado à arte em geral e a antiguidades), laboratórios (entre eles o Laboratório Cavendish, que já “laureou” uns 30 prêmios Nobel), a gigantesca University Library e a Cambridge University Press. Mas há a peculiar estruturação dual com o sistema de instituições independentes e autogovernadas, chamadas “colleges”, aos quais estão vinculados todos os docentes e os estudantes e que servem como um misto de residência e centro de estudos. Cambridge possui hoje 31 colleges.

Alguns, como o citado King’s, o Trinity e o St. Jonh’s, para dar alguns exemplos, são prestigiadíssimos. O dinheiro investido em Cambridge – basicamente dinheiro público em uma instituição administrada “privativamente” – gera um conhecimento inestimável. Nas artes, na filosofia, na política, no direito, nas ciências e por aí vai. Isso é o que eu tenho como uma bela “parceria público-privada”.

Cambridge também comemora haver “educado” personalidades de grande destaque nos mais diversos métiers. Na política, Cambridge deu o primeiro e o mais jovem dos primeiros-ministros do Reino Unido, Robert Walpole e William Pitt “The Younger”, respectivamente. Nas letras, Cambridge celebra Christopher Marlowe, John Milton, Samuel Pepys, Lawrence Sterne, W. M. Thackeray, Kingsley Amis, John Dryden, William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Lord Byron e Lord Alfred Tennyson, entre outros. Na filosofia, ela vem com Erasmus de Rotterdam, Francis Bacon, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein. Na economia, com gente do top de Thomas Malthus e John Maynard Keynes.

Mas parece ser nas “ciências” que Cambridge escreveu, ao longo dos séculos, a sua mais bela página. Para se ter uma ideia, Isaac Newton e Charles Darwin, dois dos mais importantes nomes da história da humanidade, passaram por Cambridge. Isso sem falar em James Clerk Maxwell, que, juntamente a Newton e Einstein, é considerado um dos maiores físicos de todos os tempos. Ou em Charles Babbage e Alan Turing, pais da ciência da computação que hoje conhecemos. Aliás, pais e pioneiros não faltam em Cambridge.

Foi em Cambridge, em 1932, seguindo os passos de pioneiros como J. J. Thomson e Ernest Rutherford, que Ernest Walton e John Cockcroft realizaram, pela primeira vez na história, a cisão do átomo de maneira controlada. Assim como foi em Cambridge que, em 1953, Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura do DNA, o que lhes deu, acompanhado de Maurice Wilkins (do Kings College London – KCL, onde fiz o meu PhD), o Prêmio Nobel de Medicina de 1962. E eles são apenas dois dos oitenta e tantos prêmios Nobel de Cambridge, número que nenhuma outra universidade conseguiu bater.

Bom, viva a ciência e todas as artes de Cambridge!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London (KCL) e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL)

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 21/04/2024 - 10:04h

“Dr. Jivago” em três momentos de minha vida

Por Inácio Rodrigues 

Cartaz - Reprodução

Cartaz – Reprodução

Assistir “Dr. Jivago” em três momentos distintos da minha vida foi como ver três filmes diferentes, cada um revelando camadas divergentes, não só da obra, mas também das minhas próprias convicções e experiências pessoais. A primeira vez, aos dez anos, eu vi Yuri Jivago como um herói burguês; aos dezoito, sob a influência da ideologia socialista, julguei-o por outros prismas; e, finalmente, na maturidade, o percebi como um homem dividido entre dois amores, refletindo sobre as complexidades humanas, tendo como pano de fundo a Revolução Russa.

Aos dez anos, minha percepção de “Dr. Jivago” foi pintada com as cores da simplicidade infantil. Yuri Jivago, com sua postura nobre, seu talento para a poesia e medicina, emergiu para mim como um herói quase mítico. O luxo sutil de sua vida antes da revolução, contrastando com a decadência ao seu redor, não me parecia uma questão de privilégio, mas de merecimento, diante do que ele representava.

Via nele a personificação do sucesso individual, um farol de civilidade e cultura em meio ao caos que dominava aquele microcosmo. A Revolução Russa, por sua vez, era o pano de fundo dramático, uma tempestade que desafiava o protagonista a manter sua integridade, sua altivez e posição, frente a uma sociedade profundamente dividida.

Aos dezoito anos, minha visão do mundo estava saturada de ideais socialistas. Reassistindo “Dr. Jivago”, minha empatia pelo personagem principal se transformou em crítica feroz. Enxerguei Jivago não mais como herói, mas como um símbolo da burguesia, cujos dilemas pessoais pareciam triviais frente às lutas coletivas daqueles que a revolução pretendia emancipar e empoderar como seres sociais.

A poesia e o amor, outrora elementos de beleza universal, agora me pareciam indulgências de quem tinha o privilégio de ignorar a luta de classes. A Revolução Russa, em minha interpretação juvenil e até inocente, era o despertar necessário, e Jivago, com sua hesitação e falta de compromisso político, uma figura obsoleta.  Enquanto um sofrimento inominável se desenrolava, ele estava envolto em temas menores, sentimentalismos indefinidos e fúteis.

Na maturidade, minha compreensão de “Dr. Jivago” e de seu protagonista se aprofundou significativamente. Percebi Yuri Jivago não como herói ou vilão, mas como um homem profundamente humano, cuja verdadeira batalha era interna.

Os dilemas amorosos, antes vistos como fraquezas e futilidades, revelaram-se reflexos das contradições que todos enfrentamos. A divisão de seu coração entre Tonya e Lara simbolizava a eterna luta entre o dever e desejo, entre o conforto do conhecido e a paixão pelo desconhecido.

Nesta fase, a Revolução Russa ganhou novas camadas de significados pessoais para mim. Entendi que, além de ser um evento político e social, ela representava as mudanças inevitáveis que todos nós enfrentamos, as revoluções internas que desafiam nossas crenças e valores. Jivago, com sua relutância em abraçar a causa bolchevique, não era mais apenas um símbolo de apatia política, mas um indivíduo tentando preservar sua humanidade em um mundo que exigia escolhas impossíveis e que relegava o eu e suas complexidades ao nada.

REFLETINDO DE MANEIRA BREVE e rasa sobre essas três visões de “Dr. Jivago”, percebi que cada uma delas captura verdades essenciais, não só sobre o filme, mas sobre a natureza humana e a sociedade de cada tempo. Na infância, vi a importância do indivíduo; na juventude, a força do coletivo; e na maturidade, a complexidade das importantes escolhas pessoais em contextos históricos amplos.

Talvez a questão não seja qual análise é a mais correta, mas como cada uma reflete um estágio de compreensão e empatia sobre o filme e o personagem que lhe dá o nome. “Dr. Jivago” é uma obra rica e multifacetada, que oferece diferentes significados a diferentes espectadores, em diferentes momentos de suas vidas. O verdadeiro poder do filme, e de qualquer grande obra de arte, reside em sua capacidade de nos fazer refletir, questionar e, por fim, obter algum nível de crescimento pessoal.

A maturidade, e também problemas de saúde, me ensinaram que a vida, assim como a história, raramente oferecem respostas simples. Yuri Jivago, com suas fraquezas e contradições, é um lembrete de que, em meio às grandes narrativas da história, existem histórias pessoais de amor, perda e buscas por significados próprios da condição humana. E talvez seja na apreciação dessas histórias “menores” que encontramos nossa maior humanidade.

Veja e reveja o filme, na fantástica interpretação de Omar Sharif, Julie Christie, Geraldine Chaplin e Alec Guinness. Imperdível em qualquer época da vida.

Inácio Rodrigues é bacharel em direito e delegado da Polícia Civil do RN

*Baseado no romance de Boris Pasternak, Dr. Jivago é um médico e poeta que inicialmente apoia a revolução Russa, mas, aos poucos, se desilude com o socialismo e se divide entre dois amores: a esposa Tania e a bela plebeia Lara. Lançado em 1965, a fita teve direção de David Lean e trilha sonora de Maurice Jarre. Ganhou cinco Oscars, nas categorias de Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção de Arte – A Cores, Melhor Fotografia – A Cores, Melhor Figurino – A Cores e Melhor Trilha Sonora.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 21/04/2024 - 08:50h

Aniversário em nuvens coloridas

Foto ilustrativa feita pelo próprio autor da crônica, em sua casa

Foto ilustrativa feita pelo próprio autor da crônica, em sua casa

Por Marcos Ferreira

Posso afirmar, modéstia à parte, que sou um tipo discreto, apesar da circunferência craniana. Hoje, porém, quero sair um pouco dessa característica e apontar quatro indivíduos, denunciá-los por uma benfazeja conspiração a mim destinada. Isto ainda em virtude da passagem do meu natalício, ocorrida aos 10 de abril. Aproveito o momento para agradecer a todos aqueles que, de um modo ou de outro, não deixaram essa obscura data passar em brancas nuvens, como se diz popularmente. Não deixaram, não.

O dia dos meus anos transcorreu em meio a nuvens bem coloridas, afagos e muito carinho. Gente que eu nem esperava pegou o telefone e me deu os parabéns.

Vejamos se não entrego os “acusados” logo de cara. Vamos protelando um tantinho a revelação dos conspiradores. Sim, meu intuito é fazer um pouco de suspense, bancar o mestre Conan Doyle, mas sem a pretensão (podem crer!) de me comparar ao criador do célebre detetive Sherlock Holmes. De jeito algum.

Bem, acho que não terei como ocultar os nomes dos “acusados” dessa forma, fazendo rodeios em demasia, esgotando a paciência do leitor. Temo que essa estratégia (brincadeira de esconde-esconde) faça com que um Valdemar Siqueira, um Rocha Neto, uma Vanda Jacinto, uma Zilene Medeiros ou um Fransueldo Vieira de Araújo, por exemplo, fiquem entediados com tantas delongas e se interessem por ver apenas o que hoje os talentosos cronistas Odemirton Filho e Bruno Ernesto escreveram.

Obviamente que há outros articulistas deste Blog Carlos Santos não menos interessantes. Pois é, reconheço que o circunlóquio está excessivo, longo por demais. Então cuidemos logo de encurtar a conversa e revelar os envolvidos na conspiração.

Antes, para que a palmatória do esquecimento não me castigue, quero registrar que meu aniversário teve um bolo da melhor qualidade. Foi feito por Natália, boleira de mão cheia. Felizmente não estava coberto de velas miúdas nem com uma plaquinha de número 54 indicando o antes ou o depois de Cristo.

Além do bolo, continuando com as gentilezas, informo que fui surpreendido com outros presentinhos que me deixaram muito contente. É isso. Não tenho porque negar. Senti-me querido, lisonjeado, da mesma forma como me senti com as mensagens nas redes sociais, pelo WhatsApp, nos telefonemas e também da maneira como fez meu querido amigo Elias Epaminondas, que queimou a linha de largada e já me parabenizou uns cinco dias antes no Facebook. A todos sou grato.

Agora, enfim, vamos aos benditos conspiradores: a bancária aposentada Bernadete Lino, de Caruaru; o gramático João Bezerra de Castro, de Parnamirim; e o poeta Francisco Nolasco, este último do País de Mossoró.

Os três, num trabalho de equipe apoiado por Natália, especialmente a partir do olhar sensível de Bernadete Lino, visitaram um tal de Mercado Livre e, quando eu me dei conta, eis que chegou a esta Euclides Deocleciano, 32, nada mais, nada menos que uma lindíssima escrivaninha. Ou seja, Bernadete Lino, atenta a uma crônica com a minha felina Preciosa em cima do meu espaço de escrita (uma pequena banca de plástico), propôs aos demais amigos a aquisição do referido móvel.

Claro que esse gesto me agradou não só pelo aspecto material. Sobretudo pela delicadeza de quem, embora tão longe geograficamente da realidade e do cotidiano deste homem de letras dos cafundós, falou consigo própria e decidiu que mereço algo mais do que uma mesa de plástico apertada para escrever. Por anos a fio, o que não era nenhum segredo, produzi os meus textos em tais condições.

Foi Bernadete, portanto, com o seu olhar atento e bondoso, quem orquestrou a compra desta confortável escrivaninha em que ora redijo estas palavras emotivas. Cada vez mais, ao contrário de tempos outros, vejo que estou cercado por pessoas que me têm sincera estima e benquerer. Assim como Cilene Freitas, amiga e vizinha que me brindou com uma belíssima (permitam mais este superlativo) caneca de louça na qual foi gravada uma foto deste cronista. Tudo feito de modo carinhoso, antecipado, com o nobre intuito de fazer este coração de escriba bater mais feliz.

É muito bom ser lembrado. Mas é ainda melhor não ser esquecido. É possível que o leitor considere que há redundância nessa questão de memória e esquecimento, contudo lhes asseguro que existe uma diferença semântica, algo conotativo. Deixemos isso de lado. Meu aniversário não passou em brancas nuvens, não caiu na deslembrança. Vieram as nuvens coloridas e isso me fez muito bem.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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