domingo - 23/07/2023 - 10:10h

Leão Veloso

Por Honório de Medeiros

Leão Veloso (Reprodução)

Leão Veloso (Reprodução)

Leão Veloso (Pedro Gomes Leão Veloso) nasceu em Itapicurú, Bahia, no dia 1º de janeiro de 1828. Formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. Filiou-se ao Partido Conservador e foi várias vezes Deputado Provincial pela Bahia. Presidiu a Província do Espírito Santo, Alagoas, Maranhão e, então, de 1861 a 1863, o Rio Grande do Norte.

Depois, ainda administrou o Piauí, o Pará e, por duas vezes, o Ceará.

Em 1878, foi escolhido Senador do Império pela Bahia. Ministro do Império em 1882 chegou, finalmente, a Conselheiro de Estado em 1889.

O melhor relato acerca de Leão Veloso no Rio Grande do Norte é de Câmara Cascudo, em seu Governo do Rio Grande do Norte[1], no qual consta que ele visitou o interior da província, indo a Mossoró e, em julho de 1862, a Caicó.

É uma informação extremamente suscinta acerca da viagem que a Comitiva Governamental empreendeu ao interior do Rio Grande do Norte, chegando a entrar na Paraíba, visitando Macau, Açu, Acari, Jardim do Seridó, Caicó, Martins, Portalegre, Patu, Pau dos Ferros, e Mossoró.

Nessa viagem, que durou 44 dias, e que começou no dia 16 de julho de 1861, às 8 horas da manhã, no vapor Jaguaribe, fez-se acompanhar por João Carlos Wanderley, inspetor da tesouraria provincial; Ernesto Augusto Amorim do Vale, engenheiro; Manoel Ferreira Nobre, ajudante de Ordens; e Francisco Othilio Álvares da Silva, jornalista, que registrou tudo, em deliciosas crônicas, para o jornal O Recreio[2].

162 anos depois, neste ano da graça de 2023, Honório de Medeiros, André Felipe Pignataro e Gustavo Sobral, em uma comitiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), vão refazer o mesmo percurso e, ao final, da mesma forma que a viagem anterior de Leão Veloso originou um relatório governamental, desta vez um outro será apresentado formalmente, por eles, ao Instituto[3].

Cascudo lembra que durante a administração de Leão Veloso, a Província atravessava um período de grande depressão econômica e isso o levou a comprimir as despesas por todos os lados:

Diminuiu até a iluminação pública, cortou três cadeiras do Atheneu, demitiu dezenas de funcionários. Seu “Relatorio” (16-2-1862) é um dos documentos mais completos, elevados e nítidos que possuímos da administração Imperial. Nada conheço superior. A situação financeira era terrível. O funcionalismo estava morrendo de fome, (mas) Leão Veloso, energicamente, enfrentou o problema, atacando despesas inúteis e suprimindo tudo quanto lhe parecia adiável.

Por fim, arremata Cascudo: “Veloso tem (teve) ideias originais e justas”.

Difícil é tirar Leão Veloso do limbo da história. Entretanto, não é possível esquecermos a ousadia de sua viagem, a primeira do gênero no Rio Grande do Norte, que seria repetida no período de 16 a 29 de maio de 1934, pelo Interventor Federal Mário Câmara, em cuja comitiva oficial constavam Anfilóquio Câmara (Diretor geral do departamento de Educação); Antônio Soares Júnior (Prefeito de Mossoró); Alcides Franco (Chefe da segunda seção técnica do Serviço de Plantas Têxteis); e Oscar Guedes (inspetor do mesmo Serviço), e Luís da Câmara Cascudo.

Dessa viagem, surgiu Viajando o Sertão, publicado em 1934 no formato de livro e também como uma série de crônicas no jornal “A República” de 31/05 a 22/07 de 1934.

Assim como, em um remate à contraluz, difícil é esquecer que Leão Veloso, segundo Bruno Agostini[4] é o criador da sopa que leva o seu nome, “um prato carioquíssimo criado no Rio Minho, berço desse caldo de pescados encorpado, feito com base em peixes e frutos do mar, ainda hoje o melhor lugar para apreciar esse clássico da gastronomia carioca”.

Agostini lembra que viajado e apreciador da boa mesa, Paulo Leão Veloso foi diplomata do Brasil em vários países, entre eles a França. Foi lá que ele conheceu a Bouillabaisse, sopa típica de Marselha, no sul da França, às margens do Mediterrâneo. E foi essa receita que inspirou a versão carioca, que ganhou o nome do sujeito que teria passado, na década de 1910, provavelmente, o modo de preparo aos donos do Rio Minho.

“Isso não aconteceu apenas para homenagear Pedro Leão Velloso Neto. Cozinheiros, garçons e muitos clientes não conseguiam pronunciar corretamente Bouillabaisse. Portanto, a sopa carioca não é um ‘plágio’ da francesa, como se pensou por muito tempo, porém uma aculturação em função da disponibilidade de produtos e, sobretudo, da dificuldade de comunicação”, escreveu o maior jornalista da História da Gastronomia Brasileira, J.A. Dias Lopes, colunista da Veja (leiam, basta seguir no Facebook).

E eis a receita[5]:

Lave os camarões e mexilhões e reserve. Retire a cabeça do peixe, coloque-a em um caldeirão, cubra com cerca de 5 litros de água fria, tempere com sal a gosto, leve ao fogo alto e deixe ferver. Junte o amarrado de ervas, tampe o caldeirão, abaixe o fogo e cozinhe por cerca de 1h30. Elimine a cabeça do peixe e o amarrado de ervas, coe o caldo e leve novamente ao fogo. Coloque os camarões em uma cesta de arame para fritura, mergulhe no caldo, cozinhe somente até ficarem rosados, tire do caldo, elimine as cascas, limpe e reserve. Faça o mesmo com os mexilhões até as conchas se abrirem, tire do caldo, remova as conchas e reserve. Mantenha o caldo em fogo alto. Amasse os dentes de alho com grãos de coentro e 1 colher (chá) de sal até obter uma pasta, acrescente ao caldo, junte cheiro verde, tomates, tempere com pimenta, deixe ferver, tampe a panela, abaixe o fogo e cozinhe até os tomates ficarem macios. Corte o peixe em postas, tempere com sal e pimenta, coloque azeite em uma panela, aqueça em fogo médio, junte as postas de peixe, frite até ficarem douradas, tire do fogo e elimine a pele e espinhas. Desfie a carne do peixe, acrescente ao caldo junto com as carnes de siri e lagosta, camarões e mexilhões. Coloque um pouco de água na panela onde o peixe foi frito, deixe ferver, junte ao caldo, misture, verifique o tempero e deixe ferver mais.

Pedro Gomes Leão Veloso faleceu no Rio de Janeiro, a 2 de março de 1902.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

Referências

[1] CASCUDO, Luís da Câmara. Governo do Rio Grande do Norte. Mossoró, Coleção Mossoroense, série “C”, volume DXXXI: 1989.

[2] Com informações do jornalista e escritor Gustavo Sobral (gustavosobral.com.br).

[3] As peripécias da viagem estão em @comitiva1861

[4] //menuagostini.com.br/retrato-de-um-prato-a-sopa-leao-veloso-a-versao-carioca-da-francesa-bouillabaisse/

[5]andrecasabella88

Leia tambémComitiva do Instituto Histórico vai registrar viagem num ‘diário’

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Categoria(s): Crônica
domingo - 23/07/2023 - 08:50h

Avós e netos

Por Ney Lopes

Foto ilustrativa

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Comemora-se o Dia dos Avós e Netos.

Em 2021, o Papa Francisco instituiu na Igreja essa data, numa celebração anual, no quarto domingo de julho, que é hoje, domingo (23).

A comemoração integra a Jornada Mundial dos Avós e dos Idosos, em memória dos santos Joaquim e Ana, avós de Jesus.

O amor de avó/avô é um dos mais puros que existem em nossa sociedade.

A obra “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, mostra a avó mais famosa da literatura brasileira. e personagem central de “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”: Dona Benta.

Ao lado dos netinhos Narizinho e Pedrinho, ela com sabedoria ensinou-lhes coisas novas, informando-os sobre a cultura do Brasil e do mundo

“A casa do meu avô” de Carlos Lacerda é outra obra literária, que revive a figura do avô paterno e a antiga casa de fazenda onde o autor passou boa parte da infância.

Carlos Lacerda resgata um tempo único, em que o mundo em ocaso contrasta com as primeiras experiências de uma criança diante da vida.

Já a velhice foi abordada por Simone de Beauvoir, ao publicar o ensaio “A velhice”, quando propôs “quebrar a conspiração do silêncio”.

Ela denunciou que nada se discutia sobre a velhice, que era vista como um “segredo vergonhoso”: velhas e velhos condenados à miséria e ao esquecimento pela sociedade.

Entre os motivos que levaram Beauvoir a escrever sobre a velhice estavam o seu medo de envelhecer e o horror que tinha da morte.

Por tal motivo, ela sempre valorizou a companhia dos outros, de amigos, com quem pudesse dialogar.

O seu biógrafo afirmou que “se há algo a aprender com a vida de Simone de Beauvoir, é que ninguém se torna o que é sozinho”.

Já na velhice, ela confessou o maior estímulo para viver: “São as relações com eles – cooperação, luta, diálogo – que durante toda a minha vida valorizei mais que tudo”.

A ligação entre avós (idosos) e netos contribui para que a criança se desenvolva com a crença de que é alguém que possui qualidades e é digna de ser amada.

Sentir-se aceito e amado pelos avós é relevante para a construção de autoestima elevada em qualquer criança,

Por exemplo, os conselhos carinhosos dos avós são levados para a vida adulta.

Eles passam de geração alertando para os “perigos” de sair de casa sem levar um agasalho;  tomar sorvete com dor de garganta; sair do banho quente e pegar vento faz mal; abrir a geladeira depois do banho ou tomar café no sol entorta a boca.

A maioria destes conselhos não têm comprovação científica, mas alguns até fazem sentido.

Em 2030, Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo. O  problema é a ausência de sensibilidade administrativa para conduzir a indispensável assistência para idoso.

É necessário que o poder público desenvolva políticas de acolhimento e visibilidade para que sejam extintos os preconceitos criados.

Enfim, todos nós vamos envelhecer e precisamos ter qualidade de vida e longevidade.

E os netos desejam isso também para os seus avós!

Ney Lopes é jornalista, advogado e ex-deputado federal

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 16/07/2023 - 11:28h

O palhaço do cruzamento

Foto ilustrativa

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Por Zenóbio Oliveira

Concentrado no semáforo esperando o sinal ficar verde, nem dei fé daquele palhaço esmolambado ao lado do carro, com cara de choro, toda pintada e feia. Esperei a anedota, o gracejo, mas nenhuma sílaba, nenhum trejeito cômico, apenas a mão estendida, num gesto de súplica, a implorar minha piedade.

Longe da magia das luzes e das cores e sem a ilusão do picadeiro.

No espetáculo da sobrevivência, o palco da rua não oferece o abrigo da lona colorida, mas a causticidade de um sol a pino, ardendo no couro a quarenta graus.

O corpo já lhe nega forças para as cabriolas e piruetas e as desgraças da vida roubaram-lhe as graças do rosto, hoje marcado pelas carquilhas, que nem a maquiagem consegue mais esconder. Não tem a alegria dos palhaços das minhas lembranças, não provoca o riso, mas causa a compaixão.

Chamam-no “Queima-roda”, cognome esdrúxulo, alcunha humilhante, denotativo de baitolagem, chacota que a modernidade apelidou de bullying.

Há dias não vejo o palhaço esmolando entre os carros nas intermitências do sinal vermelho. Soube que estava hospitalizado, vítima de assalto, ferido por adolescentes, como os que alegrou em seus tempos áureos, mas ignorantes da fascinação e do encanto que envolvem esse artista circense.

Sempre dediquei minha percepção semiológica ao signo palhaço como uma representação, fiel, da alegria e do contentamento. Hoje, assusto-me quando esse mesmo signo me remete ao significado de condolência e sofrimento, manifestados no palhaço triste daquele cruzamento.

Uma generalização injusta, a contradizer a história de que a primeira impressão é a que fica.

A verdade é que esta situação comove para além do embate semiótico das minhas concepções, ensinando que alegria e tristeza nos são comuns e que até para os palhaços, a vida reserva o tempo de fazer rir e de fazer chorar.

Zenóbio Oliveira é poeta, jornalista e ex-cinegrafista da InterTV Cabugi

*Texto originalmente publicado nesta página no dia 24 de dezembro de 2017 (veja AQUI). Nossa singela homenagem ao amigo e, autor da crônica, falecido na última quarta-feira (12). Descanse em paz, Zé.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 16/07/2023 - 07:22h

O valor da gratidão

Por Odemirton Filho gratidão, flores

Tomou um gole do café, ainda fumegante. Vestiu-se e foi para mais um dia de trabalho. Estava cansado da rotina. Há anos que sua vida era a mesma. De casa para o trabalho; do trabalho para casa. Quase não saía para passear ou viajar, embora tivesse condições financeiras.

Morava sozinho. Estava separado de sua mulher; não tiveram filhos. Os seus pais eram falecidos há tempos. O único irmão não queria conversa com ele. Tinha um ou dois amigos, mas quase não se encontravam para jogar conversa fora.

O percurso para o seu trabalho era de três quarteirões de onde morava. No caminho, observava o corre-corre das pessoas. Tudo como sempre foi. As lojas do comércio com os vendedores à espera de clientes; as paradas de ônibus lotadas de pessoas para irem aos seus destinos.

No rosto da maioria, desânimo. Com certeza, muitos estavam com problemas. O dinheiro pouco, talvez com famílias desestruturadas, desempregados; sem perspectiva de dias melhores.

Ele, ao contrário, tinha um bom salário, trabalhava em um escritório de uma empresa multinacional. Morava num excelente apartamento; um bom carro na garagem, ambos quitados.

Entretanto, reclamava de tudo e de todos. Era um “chato de galochas”, como diziam os colegas de trabalho. Nada o agradava. Nunca participou das festas de final de ano da empresa.

Certa vez, numa noite fria, ia do trabalho para casa; caía uma garoa. No caminho encontrou um homem sentado na calçada, o qual lhe pediu algum trocado. Com cara de poucos amigos, meteu a mão no bolso e deu ao pedinte uma cédula de dez reais. O homem sorriu e agradeceu.

“O chato de galochas”, para não perder a oportunidade de reclamar, perguntou:

– O que deseja desta vida ingrata, meu senhor?

– Ah, meu amigo, eu só queria saúde, um emprego e uma casa, respondeu o pedinte.

Ele ficou em silêncio; seguiu para o seu apartamento, pensativo. Ao deitar na cama, depois de anos deu valor a tudo o que tinha, agradeceu a Deus, principalmente a saúde.

E chorou. Chorou copiosamente.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 16/07/2023 - 04:10h

Verbo sertanejo

Por Marcos Ferreira

Zenóbio Oliveira faleceu na última quarta-feira (Foto: cedida)

Zenóbio Oliveira faleceu na última quarta-feira (Foto: cedida)

Escrevi, talvez há três semanas, uma pequena crônica que intitulei de “Vida fugaz” (veja AQUI). Tratava, obviamente, sobre o quanto a nossa despedida deste plano terreno pode ser precoce e repentina. Ou seja, discorri acerca de algo que todo mundo está careca de saber. E por qual motivo (indagarão) volto a requentar esse tema? Retomo tal assunto porque na quarta-feira passada, como foi divulgado pela imprensa, perdemos mais um poeta relevante: o jornalista e cinegrafista Zenóbio Oliveira (veja AQUI).

Sim, a arte poética está de luto. Arrebatado por um infarto inapelável, o autor de Verbo sertanejo, seu primeiro e único livro de poesia, partiu e deixou por aqui um sem-número de admiradores e amigos. Pois, além de homem de letras e competente repórter cinematográfico, Zenóbio era uma figura humana das melhores, benquista em todos os segmentos sociais e profissionais por onde passou.

Pena que somente hoje estou repetindo o que é público e notório. Com o mesmo atraso com que outros indivíduos teceram justos e oportunos depoimentos sobre o profissional e vate das Aguilhadas. Temos (salvo pequenas exceções) essa lamentável tradição de só louvarmos, valorizarmos os nossos artistas depois que estes são chamados para o além-túmulo. Então, a exemplo de alguns, findei não dizendo ao sonetista de “Trajetória”, não ao menos com a merecida ênfase, quanto respeito e admiração eu tinha por sua pessoa e arte da escrita. Deixei isso para depois e depois.

É verdade que vez por outra me deparei com ele nas redes sociais, de maneira que nossa relação nunca foi próxima fisicamente. Melhor dizendo, jamais sentamos à mesa para um café e trocar umas ideias, bater um papo. Permito-me dizer, entretanto, que nutríamos um pelo outro, sobretudo enquanto sonetistas, gênero que Zenóbio Oliveira cultivava com rara mestria, uma estima recíproca.

Então, para desfalque de nossa literatura, perdemos o escritor de Verbo sertanejo. Era bom no que se propunha a realizar. Em especial na debulha do verso. Seus sonetos e sextilhas, entre outras formas versíficas, estão aí para comprovar o que digo e todos admitem. Sabia rimar e metrificar de verdade. Não era (aqui não aponto ninguém) autor de cordéis do pé-quebrado. Até qualquer dia, poeta!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 09/07/2023 - 06:46h

Escritores – Franklin Jorge

Por Honório de Medeiros

Franklin Jorge é um escritor

Franklin Jorge, “um escritor que sabe praticar a arte da boa escrita.”

A obra literária de Franklin Jorge não permite uma leitura rápida.

No sentido absolutamente estético, convida a uma reflexão, suscitada pelo rigor da forma e profundidade de conteúdo que revela, ao leitor, o paradoxo do máximo, no mínimo.

Como um jogo de sombras e luz, metáfora da estratégia que o autor usa para nos apresentar uma realidade constituída de delicados, embora marcantes textos, através de uma escrita contida, elegante, ele proporciona, ao crítico literário, um ambiente de análise acerca do artista envolto no ato de criar.

A análise será refém dos conceitos de exclusão, contenção, reserva. Algo minimalista. Permite supor que Franklin Jorge constrói, deliberadamente ou não, uma misteriosa fronteira entre o trivial e o necessário, na qual se exclui o óbvio e se expõe uma espécie de ascese intelectual.

Assim, e por esse intermédio, através da leitura de seus textos, é possível resgatar-se o “modus operandi” da criação estética literária que parece perdido nos dias de hoje: teremos não mais a trama banal que consiste na utilização de ícones simplórios, mas, sim, um projeto de arte construído a partir da negação do superficial, para atingir a essência das coisas.

O texto de Franklin – seja Ficções, Fricções, Africções – ou qualquer outro, tem essa alquimia, revela um pouco daquilo que, na arte, é o belo, o simples, o harmonioso. Nada além, nada aquém. Nem a exuberância da sofisticação, tampouco o irracionalismo da ausência. Apenas um verdadeiro impulso de criação.

Mencionei Ficções, Fricções, Africções, a quem Ascendino Leite designou como inteligente e personalíssimo, e o comparou aos textos de Camilo José Cela, mas poderia ser o belo O Spleen de Natal (Romance de uma Cidade), onde Carlos Peixoto percebeu a cidade invisível da qual nos falou Ítalo Calvino em sua obra.

Ou, quem sabe, possa ser O Ouro de Goiás, onde Ubirajara Galli, entusiasmado com sua leitura, cognominou Franklin Jorge de “O Anhanguera Cultural”, lembrando, no dizer típico de um goiano, que “da sua colheita, nada se perdeu”. Bem como o Jornal de Bolso, apresentado por Jaime Hipólito Dantas:

Depois comecei a ler Franklin Jorge em livros, que ele passou a publicar, aqui e lá fora. Surgiu-me o poeta e surgiu igualmente o crítico exigentíssimo de artes plásticas. Enfim, o escritor Franklin Jorge. Com um detalhe, um escritor que principalmente sabe praticar a arte da boa escrita. Um artesão da prosa, como pouquíssimos, por cá. Um artista da palavra, sério, sem desleixos visíveis.

Há outros, tal qual O |Livro dos Afiguraves; Isso é Que é; Fantasmas Cotidianos, com prefácio do magnífico Antônio Carlos Villaça, o estilista:

Franklin escritor, Franklin poeta, Franklin puro artista transcende a circunstância e vê o abismo, convive com o abismo. Vai ao fundo e enxerga longe. Argúcia muita. Um senhor analista, um mestre da instrospecção. Um ser proustiano.

Todos eles, assim como outras mais, formando uma unidade formal estilística, muito embora com conteúdo diverso, posto que constituído por ensaios, poemas, crítica literária, e assim por diante.

E há, não poderia ser diferente, o meu predileto: O Verniz dos Mestres (Anotações e pastiches de um leitor de Marcel Proust) onde, em sua orelha, Franklin logo revela que suas páginas são egressas de O Escrivão de Chatam, seleção de ensaios curtos produzidos em mais de cinquenta anos de leitura, que infelizmente ainda não foi publicado.

Nesse pequeno e denso livro, contendo dez primorosos capítulos, Franklin Jorge aborda a música, arte e memória, crítica, imortalidade, comédia humana e escritura em Marcel Proust. Também escreve acerca do verniz dos mestres, título do livro, ao perscrutar o estilo do grande escritor francês, comparando-o a John Ruskin, o crítico de arte, ensaísta, desenhista e aquarelista britânico.

Saliente-se que os ensaios de Ruskin sobre arte e arquitetura foram extremamente influentes na era Vitoriana.

Lá para as tantas, Franklin observa, em O Verniz dos Mestres:

Em seus últimos sete anos, tentando amortecer os ruídos, Proust viveu enfurnado num quarto forrado de cortiça. Resignado à solidão, queria viver tão somente para ter valor e mérito. Acreditava que a imortalidade era possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Concordava com a ideia de Boudelaire de que a vida verdadeira está alhures, não dentro da vida, nem após, mas fora dela. Nos domínios da arte.

Sua obra, laboriosamente fictícia, transcria a realidade que seria pobre sem o recurso da imaginação. Suas notas lançadas sobre o papel, no curso de sua vida, dão suporte e carnação ao que escreve; compõe-se de brevíssimos insights; a princípio lançado sobre a página em branco, e, depois, obstinadamente em períodos mais longos, agoniantes em seu fluxo, até soar a hora final; em busca da vida verdadeira que só pode ser resgatada e interpretada pela arte. Proust cria um novo realismo, polifônico e impressionista.

Como descrever melhor a saga proustiana?

Mais além:

Olhando a sua volta, Proust viu o que ninguém antes vira. E o viu de maneira crítica, aprofundando-se e “indo mais além”, numa superação das “coisas usuais” que desmerecem o temperamento individualizador do artista de talento capaz de criar um mundo a partir da observação de um grão de areia.

Em outro momento, Franklin amplia sua reflexão e introduz o que seria uma observação plenamente filosófica, de caráter gnosiológico, acerca do alcance da obra de Marcel Proust:

“Proust nos ensina que um livro nunca pode nos contar aquilo que desejamos saber, mas tão somente despertar em nós o desejo de saber, pois não é possível a nenhum indivíduo receber a sabedoria de outrem. É preciso cria-la por nós mesmos. E foi o que ele fez, escrevendo os sete volumes do seu “roman-fleuve” “Em Busca do Tempo Perdido”.

Perfeito. Conhecer é criar; o apreender é uma criação. Cada objeto apreendido é único e é tudo em sua singularidade.

Não se poderia esperar menos de Franklin Jorge do Nascimento Roque, um escritor para escritores: nada além, nada aquém da justa medida.

Natal, 5 de julho de 2023, no outono, quase inverno, da esperança.

ESCRITORES

Leia também: Escritores – Luiz Fernando Pereira de Melo;

Leia também: Escritores – Gustavo Sobral;

Leia também: Raimundo Nonato da Silva.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 09/07/2023 - 04:34h

Boi de piranha

Por Marcos FerreiraBoi de piranha

Hoje em dia, cansado de guerra, tenho enorme dificuldade de me ocupar com a vida alheia. Especialmente a de políticos, celebridades e subcelebridades. “Você é o famoso quem?”, às vezes pergunto em silêncio. Então, por mera higiene mental, busco tratar de outros assuntos quando escrevo. A exemplo desta crônica que versa justamente acerca de minha certeza de que não vale a pena oferecer palanque a determinados indivíduos.

Porque já existem tantos sujeitos por aí descendo a ripa na cuca de fulano e beltrano e outra ruma lambendo os bagos dessas pessoas, que me sinto inútil, um risco n’água. É como servir de isca, ser usado como boi de piranha.

Isto não quer dizer (prestem bem atenção!) que tudo o que se escreve nos periódicos ou se estampa nos veículos de mídia televisiva é futilidade. Não. Nem oito nem oitenta. Considero razoável, porém, que exista um meio-termo, um equilíbrio. Digo isto por conta do besteirol (principalmente o da televisão com alguns programas de auditório) que me embrulha o estômago.

Sei, evidentemente, que se trata do estômago de uma minoria. E haverá quem nos tome por caretas, quadrados, etc. Pois a boiada que se deixa tanger por essas atrações é qualquer coisa esmagadora.

Repito que não estou generalizando. Seria injusto. Nem só de besteiras é constituído o globo midiático. Há exceções em toda parte e cabe a cada um escolher para si o conteúdo que lhe interessar. A impressão que tenho, no entanto, é que as opções vão ficando mais escassas a cada dia. Tanto que muito raramente assisto a alguma coisa da promíscua TV aberta, onde todo cuspidor de microfone é artista genial, fora de série, galáctico.

Por essas e por outras, vejam só, é que de quando em quando também me irrito, os nervos tremem e me dá vontade de descer o malho, apontar essa ou aquela estrela, dar nomes aos bois que formam a referida manada fútil.

Conforme prometi, não vou atacar nem defender ninguém. Quer seja no campo artístico ou na seara da política partidária. Não me permitirei cair em tentação, deixar-me envolver na pancadaria nem na bajulice. Temos elementos qualificados, competentes, com estômago forte para enfrentar esse métier. Não serei eu, enfim, a me queimar com terceiros enquanto fulaninho fica só na moita, dando corda aos incautos.

Hoje quero paz, sossego. Chega de guerra e de me sacrificar pela boiada. Cansei. Quem quiser que enfrente o cardume e se entenda com as piranhas.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/07/2023 - 11:38h

Paixão pela profissão; amor pelo mar

Por Odemirton Filho 

Tibau, jangada, (Foto de Ricardo Lopes)

Tibau, jangada, (Foto de Ricardo Lopes)

“A jangada se perde de mar afora. E à boca da noite vai chegando. É um ponto branco no horizonte. Doze horas de alto-mar, de paciência, de espera, de linhas soltas, na espreita das ciobas, das cavalas. Vai chegando. Veranistas se juntam para a compra do pescado. Seu João já encostou a jangada na praia” (…).

O texto acima é um fragmento de uma crônica de José Lins do Rêgo sobre a vida de um pescador. Mostra, com clareza, a labuta diária de quem se aventura no mar, ainda nas madrugadas frias.

Quando vou à cidade de Porto do Mangue pra exercer o meu ofício vislumbro na belíssima praia da Ponta do Mel, na Pedra Grande e na calmaria da praia do Rosado algumas jangadas na areia. E faz um bem danado a minha alma. Na maioria das vezes, não há um pé de pessoa. Só a imensidão do mar e um mundão de areia; a beleza da obra talhada pelas mãos de Deus.

Há algo na vida desses pescadores que me fascina. Talvez, seja a lembrança dos dias da minha infância, quando em férias, brincando na areia da praia, via as jangadas chegaram à beira-mar e os pescadores vendendo os peixes, ainda frescos, debatendo-se num carcomido cesto de palhas.

Vez ou outra, converso com um deles pra ouvir as suas aventuras. Decerto, deve existir um ou outro exagero nas “estórias”. Não me importo. Gosto de prosear. Falam-me da lida, do dinheiro pouco. Mas falam, principalmente, da paixão pela profissão, do amor pelo mar. Deixo claro, porém, que não quero romantizar as dificuldades enfrentadas por eles, de sol a sol. São muitas.

Certa vez, caminhei bastante sobre as dunas da praia do Cristóvão para fazer uma intimação. A casa ficava distante, num ponto alto. Sob um sol escaldante, com os pés atolando nas dunas “pegando fogo” consegui chegar à residência. Uma casa simples, de taipa. O velho pescador me ofereceu água e café. Sentei-me por um bocado de tempo apreciando a linda paisagem.

Ao ler o texto de Lins do Rêgo, lembrei-me dessa diligência e fiquei a imaginar aquele pescador como um personagem da crônica do autor de Menino de Engenho.

“Agora, espichado na porta da casa de palha, olha para o céu. Sopra o vento nos cajueiros floridos e há o barulho dos coqueiros agitados. Seu João vê a lua, vê manchas na lua. Levanta-se e vai dizendo para a mulher”:

“Amanhã é dia de cavala. A lua está dando o sinal”.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 02/07/2023 - 07:28h

Águas passadas

Por Marcos FerreiraÁguas passadas - Marcos Ferreira

Desde há muito (em sua quase totalidade) que os jornais morreram, bateram a caçoleta, deram o último suspiro. As revistas, também. Ao menos os veículos impressos. Aqui e ali, no entanto, um ou outro estrebucha, persevera, nega-se a jogar a toalha, fechar as portas. Algo louvável, contudo embalde. A debacle não faz acordo, não parcela dívidas, não perdoa as rescisões trabalhistas que não foram honradas.

Então a mídia física arqueja, vai caindo uma após a outra como moscas de tinta e celulose. O rolo compressor dos sites, portais e blogues é duro, imparável. Mas isso é notícia velha, com cheiro de mofo e naftalina. Não é possível corrigir, reeditar o tempo.

O mundo sabe bem que a era do papel, em se tratando de informação, perdeu o seu reinado, chegou ao fim. Exatamente. Um buraco negro se abriu sob os pés das redações e tragou todo um universo de história e progresso. O que outrora era solidez, futuro, de repente se transformou em velharias.

O império ruiu, acabou-se, foi engolido pela modernidade e tecnologia. Até o livro físico está ameaçado. Livrarias emblemáticas, importantes, tradicionais, estão falindo em toda parte.

Ao longo da corrente “internética” foi arrastada a fina e simpática categoria dos colunistas sociais. Sim, o glamour também sucumbiu entre as engrenagens das rotativas. Hoje, para o bem ou para o mal, cada indivíduo é dono de sua própria coluna e expositor de caras e bocas, ideias e babados.

Perdemos (quase por inteiro) a elegância, a finesse desses informantes das boas-novas, divulgadores do sucesso e pujança alheios. Já ninguém procura fulano ou beltrano para se informar da vida luxuosa, endinheirada e chique dos colunáveis. Porque todos os assuntos, rostinhos e sorrisos se transferiram para as vitrines das redes. Fato definitivo, irreversível.

Sou mais um que se adaptou. Pulei de ponta-cabeça nas águas da blogosfera. Saí de uma barulhenta máquina de escrever para um notebook que ora está com quinze aninhos, caducando, com velocidade e jeitão de jabuti. Possuo minhas contas no Facebook e Instagram e me considero um elemento em sintonia com os tempos modernos, embora ainda saudoso dos jornais e revistas que a gente buscava nas bancas. Águas passadas. Agora espero somente pelo link desta crônica.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 25/06/2023 - 05:54h

Vida Fugaz

Por Marcos FerreiraVida fugaz

Antes, ao ir contar o cabelo, eu achava ruim quando, aqui e acolá, caía um fiozinho branco sobre o pano. Hoje, trinta anos depois, fico contente se, vez por outra, um fio preto despenca sobre o tecido. A barba negra e macia de outrora virou uma moita branca, espinhenta, hirsuta. Ah, como é perverso o tempo! Contra tudo atenta. Até contra o mármore dos campos-santos, o aço e o ferro. Imaginem contra nós, seres provisórios, passageiros, presas fáceis dos calendários e relógios. Ainda há quem diga que faz certas coisas apenas para passar o tempo. Tolice. Nós é que passamos, enquanto ele segue íntegro, irredutível, indomável, sem que lhe possamos pôr um freio.

Quando jovens, afoitos, cheios de pressa e desperdício, tínhamos a mais completa certeza de que todo o mundo e os relógios giravam a nosso favor. Torcíamos pela chegada disso e daquilo, contávamos as horas, dias, meses e anos, por exemplo, para atingirmos a maioridade e adquirirmos uma cédula eleitoral, uma carteira de habilitação. Ora! Quanta ingenuidade! Não fazíamos ideia do terreno movediço em que estávamos pisando, da areia fininha a se filtrar na cintura da ampulheta.

Alguns de nós já nos metamorfoseamos. De belas, rútilas e doces uvas nos transformamos em ameixas secas, engelhadas, azedas. Perdemos (não todos) a doçura e, em determinados casos, até a ternura. Como é perverso o tempo, senhoras e senhores! A juventude, permitam-me a metáfora, é uma distraída gazela cruzando águas fervilhando de crocodilos. Nunca a coitadinha alcançará a outra margem.

Assim também somos nós, gazelas bípedes, vulneráveis, sujeitas à abocanhada fatal e ao giro da morte a qualquer instante. Poucos realizam essa travessia ilesos, sem nenhuma cicatriz na carne ou na alma. Felizes os que conseguem envelhecer dignamente.

Toda sorte de limitações é destinada aos sobreviventes. Algumas, em grau menor; outras, em grau maior. A longevidade é um luxo e uma bênção. Ainda assim há cobranças inegociáveis: quando não caem, os cabelos embranquecem; as pernas ficam bambas; os joelhos emperram; a vista se torna curta; a audição diminui. Até a voz, num e noutro indivíduo, fica rouquenha, nasalada. Ninguém pode contar vantagem diante do tempo. Mais cedo ou mais tarde ele nos pega. Não perdoa.

Cadê o pulmão de atleta, a musculatura rígida, a libido infalível? Nenhuma sombra ou vestígio. Porque tudo é passageiro, fugaz, transitório. Refugiamo-nos nas recordações, no acervo afetivo. Ao menos aqueles que dispõem de boas memórias para reprisar. Então praticamos mil e uma ações para nos sentirmos produtivos.

Engendramos filhos, criamos netos, deitamo-nos tarde, levantamos cedo. Porque de repente descobrimos que já passamos pela cinturinha da ampulheta e que a areia que nos resta é bem pouca. Buscamos atrasar o relógio, ludibriar o calendário. Mas o tempo não tem nada de bobo. Nós é que somos tolos ao achar que damos as cartas.

Isso, no entanto, não é uma descoberta. É fato revelho e notório. Temos mais passado que futuro. Aí começa a corrida em busca da imortalidade de nossa biografia. Fulano decide escrever um livro, sicrano pinta uns quadros, beltrano compõe uma música. É um deus nos acuda. Porque estamos morrendo. Mais cedo ou mais tarde.

Todavia a perpetuidade da alma é um alento. No fim das contas compreendemos que só o amor nos torna imortais, nos eterniza. Amar é viver além da morte.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 18/06/2023 - 06:44h

O amor acaba

Por Paulo Mendes Campos

Ilustração

Ilustração

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar;

De repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite voltada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado;

Na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar;

Na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente;

No sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores;

Em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero;

Nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba;

No inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro;

Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York;

No coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha;

Às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;

Às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno;

Em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos (1922-1991) foi jornalista, cronista, escritor e poeta

*Crônica originalmente publicada na revista Manchete em 16 de maio de 1964, há mais de 59 anos, e em nossa página, pela primeira vez, no dia 18 de abril de 2010. Portanto, há mais de 13 anos (veja AQUI).

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domingo - 04/06/2023 - 09:10h

Língua portuguesa

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Houve momentos em que me arrisquei tocando em assuntos delicados ou polêmicos. Discorri acerca de temas espinhosos, como política, religião e até um pouco sobre futebol. Imaginem só isso! Futebol! Uma inconsequência de meu bestunto, admito. Mas o que busquei foi oferecer o máximo de minha pena, da linguagem de que faço uso com certa dose de imoderação, descomedimento.

Pois escrever, embora duro, penoso e solitário, também é algo que nos liberta e aprisiona a um só tempo. Sempre escolhi o melhor verbo, tentei simplificar sem baixar o nível, de forma que o leitor possa se elevar.

De minha parte, então, entreguei-me com ardor. Vivo em função da palavra. Não tenho outro anseio, ambição, exceto reverenciar nossa Língua Portuguesa. O texto é uma pedra bruta que nos propomos a esculpir. Às vezes a escultura derrota o escultor. Noutras vezes o resultado consagra o artista. De um modo ou de outro, enfim, escrever não é moleza. Requer paixão, entrega, tenacidade.

Colhi das árvores e beirais, durante a alvorada e à hora do crepúsculo, o canto benigno dos pássaros. Incrustei no exercício do meu letramento uma constelação de estrelas. Tudo isso em favor da literariedade e poeticidade da folha momentaneamente vazia. Nada pior que uma página em branco.

Reproduzi (bem ou mal) o som de regatos, o melódico dialeto da chuva banhando o espaço e a terra, metrificando horizontes, retomando seus caminhos. Cantei a moeda infalível da Lua, a juba indomável do Sol, o rendilhado das estrelas, o pisca-pisca de vaga-lumes parnasianos. Essas e outras joias apenas para louvar a poesia que há em cada vocábulo que descortina a hora azul do silêncio.

Caminhei com minhas limitações, com minha cultura rasa e modesta de um devoto da literatura. Porque não sou doutor em coisa alguma, não possuo estofo intelectual como o de alguns amigos e escritores que admiro.

Minha universidade foi uma pequena estante de livros. Daí provém o que sou e reconheço ser. Tudo fiz com esta verve, do meu jeito, à minha maneira. Não achei melhor forma de me expressar exceto pela escrita.

Marcos Ferreira é escritor

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  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 28/05/2023 - 09:30h

O julgamento do juiz

Por Marcelo Alves

Aproveitando a deixa do artigo da semana passada, que versou sobre um bizarro “Causídico de Instagram” (veja AQUI), vou hoje abordar a moral/ética dos juízes, misturando a temática com lições da história e do cinema, para deixar a nossa conversa mais leve e interessante.

Corte do julgamento de Nuremberg (Reprodução)

Corte do julgamento de Nuremberg (Reprodução)

Começo com dois trechinhos colhidos do “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional” (Editora Saraiva, 2016): no que toca a qualquer profissional do direito, este “tem de estar consciente de que o instrumental que manipula é aquele capaz de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”; no que toca ao juiz especificamente, “pede-se consciência do magistrado na medida em que é ele a última palavra acerca da lei, devendo, portanto, prestar a atividade jurisdicional como sendo o último recurso de que dispõe o cidadão na defesa de seus direitos e garantias, no combate à arbitrariedade, à deslealdade, à inadimplência, ao desvio de poder, enfim, à ilegalidade e à inconstitucionalidade”.

E agora chegamos às lições da história e do cinema.

Quanto à história, relembro aqui os “julgamentos de Nuremberg”, decorrentes dos horrores da 2ª Guerra Mundial, que foram realizados entre 1945 e 1949. O principal julgamento teve fim em 1º de outubro de 1946 e concentrou-se na cúpula do regime nazista. Hermman Goering & Cia. Mas, a partir de dezembro de 1946, foram realizados mais doze julgamentos de criminosos de guerra nazistas de menor relevância.

Um deles foi o “julgamento dos juízes”, em que nove membros do Ministério da Justiça do Reich e sete membros de tribunais do povo e de tribunais especiais foram acusados de abusar dos seus poderes de promotores e juízes para cometer crimes de guerra e contra a humanidade, fomentando e autorizando a perseguição racial e horrendas práticas de eugenia, entre outras coisas, levando à prisão e à morte inúmeros inocentes. O julgamento durou de março a dezembro de 1947. Dez dos acusados foram condenados, quatro absolvidos e dois acabaram não julgados.

Esse julgamento, com uma boa dose de ficção, foi dramatizado no filme “O julgamento de Nuremberg”, de 1961, com direção de Stanley Kramer. O filme é estrelado por Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Judy Garland, Montgomery Clift, Richard Widmark, Maximilian Schell, Werner Klemperer e William Shatner, entre outros. Só top!

Moralmente, o filme foca naquilo que uma das personagens chama de “crimes cometidos em nome do direito”. É certo, como afirma a defesa, que “um juiz não faz as leis; ele aplica as leis do seu país”? Ou devem os juízes sempre ter em conta um direito superior, a Justiça em si?

“O julgamento de Nuremberg” responde a esse questionamento por meio de um outro magistrado, o herói do filme, o presidente da Corte no caso do “julgamento dos juízes”, o juiz Dan Haywood (papel de Spencer Tracy), apresentado como um homem modesto, tolerante e justo, que quer entender como os sábios magistrados da Alemanha puderam participar dos horrores do regime nazista e, se for o caso, punir adequadamente esses “crimes judiciais” praticados “em nome da lei”.

A resposta nos é dada primeiramente pelo anti-herói do filme, Ernst Janning (papel de Burt Lancaster), aquele jurista que, segundo é dito no filme, havia “dedicado sua vida à Justiça – ao conceito de Justiça”. Janning acaba aceitando sua responsabilidade pelos graves erros do regime nazista, reconhecendo que tanto ele como os corréus sabiam que as pessoas que eles sentenciavam eram enviadas a campos de concentração.

O próprio Janning, tomando o lugar do seu advogado (papel de Maximilian Schell), vem a reconhecer a sua responsabilidade no “Caso Feldenstein”, que já estaria decidido, pela “lei” nazista, antes mesmo da abertura dos debates. “Aquilo não foi um processo”, dirá Janning, “foi um rito de sacrifício”. No final do filme, num encontro entre herói e anti-herói, afirma ainda a personagem de Spencer Tracy: “sua culpa [e a dos juízes nazistas como um todo] teve início na primeira vez que você condenou conscientemente um inocente”.

Baseado na crença de que uma ordem moral/ética transcende o direito/lei feito pelos homens, devendo ser seguida por todos nós, a Corte de Nuremberg condena os réus magistrados. Acho que todos nós condenaríamos, não?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 28/05/2023 - 08:22h

Uma questão de escolha

Por Marcos Araújolinguagem neutra - Todes

Nas últimas duas décadas, a sociedade evoluiu em temáticas relevantes, a exemplo de diversidade, igualdade de gênero, interracialidade, valorização da causa ambiental, proteção animal, etc. Para além desses, parcela populacional reclama dos outros avanços(?) no campo da linguagem: a implantação da neutralidade da linguagem e o politicamente correto em todas as obras culturais. Tenho minhas reservas a esses dois últimos, e justifico.

Acho que todo mundo sabe, mas, relembrando, a linguagem neutra tem como objetivo adaptar o português para o uso de expressões sem gênero (masculino ou feminino), a fim de que as pessoas não binárias ou intersexo se sintam representadas. É a substituição dos artigos feminino e masculino por um “x”, “e” ou até pela “@” em alguns casos. Assim, “amigo” ou “amiga” virariam “amigue” ou “amigx”.

As palavras “todos” ou “todas” seriam trocadas, da mesma forma, por “todes”, “todxs” ou “tod@s”. Os defensores do gênero neutro também exigem a adoção do pronome “elu” para se referir a qualquer pessoa, independente do gênero, de maneira que abranja pessoas não-binárias ou intersexo que não se identifiquem como homem ou como mulher.

Quanto ao politicamente correto, medidas jurídicas e outras movimentações sociais estão sendo feitas para impedir a venda, proibir circulação, ou até mesmo revisar termos e expressões de obras mundialmente famosas. Monteiro Lobato terminou no Supremo Tribunal Federal por causa de um professor que tentava impedir que o Ministério de Educação referenciasse as peripécias de Pedrinho, por entender que a fala era racista. O maior sucesso da inglesa Agatha Christie, “O caso dos dez negrinhos”, está tendo o título mudado no mundo inteiro.

Na França, o antigo “Dix petits nègres” (Dez Negrinhos, em tradução literal) virou “Ils étaient dix” (Eram dez). A mudança de linguagem não aconteceu apenas no título. Na nova versão do livro em francês, a palavra “nègre” aparecia 74 vezes e foi adaptada em todos os casos. Poderia até rebater este preciosismo linguístico com os dizeres do próprio Monteiro Lobato – “Um país se faz com homens e livros” -, mas recairia na pecha de uso de uma expressão machista, e sofrer das ativistas uma grave reprimenda.

Dizem que é racismo se lastimar da vida dizendo “a coisa está preta!”. É proibido reconhecer a “noite negra”, ou se referir à compra de muamba no “mercado negro”.

Se prosperar a linguagem neutra, como doravante versejaremos Florbela Espanca,  na sua magistral construção: “Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida / Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão de meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida!”?

É na onda modista do politicamente correto que no Rio Grande do Sul há um boicote da execução do hino do Estado, por conter frases supostamente racistas nesta parte: “Mas não basta, para ser livre/ Ser forte, aguerrido e bravo/ Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”.

Linguagem é uma questão de escolha. Não me apraz a linguagem neutra. Nem corroboro com os puristas sociais do politicamente correto.

Está na órbita da liberdade de expressão, uma garantia constitucional, a forma de se comunicar. Como diz Leci Brandão na sua canção Questão de gosto: “Gosto mais do mês de março / Mas você prefere agosto. Questão de gosto. Questão de gosto (…)”

Marcos Araújo é mestre e doutor em Direito Constitucional, advogado e professor da Uern

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domingo - 28/05/2023 - 04:44h

Por que escrevemos

Por Marcos FerreiraPor que escrevemos #

Todo domingo é assim. Pomos a cara fora e tratamos sobre um monte de assuntos. Há uns que caem no gosto do público leitor, e o cronista é logo aplaudido por seu texto. Pois bem. O Blog Carlos Santos (Canal BCS) é isto: um reduto desses intelectos, e atrai pessoas dos mais diversos estratos humanos e níveis críticos. São um show à parte os comentários vistos no espaço reservado à opinião dos leitores.

Assim como eu, alguns articulistas se autodenominam escritores. Não tiro a razão de ninguém. Já outros, mais contidos quanto modestos, preferem informar suas profissões e status curriculares. Para os quais tiro o chapéu.

Aos domingos, então, expomos nossa escrita acerca de um sem-número de temas. Há aqueles, todavia, que se atêm a um determinado campo temático, a exemplo do doutor Marcelo Alves Dias de Souza, aguçado bateador da história da Literatura e dos seus autores, tanto os bambas das letras nacionais quanto estrangeiras. Temos também a verve suave e envolvente do cronista Odemirton Filho.

Vez por outra é François Silvestre quem ataca com uma crônica, artigo ou poema neste espaço. François, com legitimidade, é mais um que se declara escritor. Possui biografia, histórico e estatura para dizer-se como tal.

Temos, ainda, o não menos doutor e professor Marcos Araújo, cuja inteligência e mérito literário não ficam a dever a nenhum de nós. O mestre Honório de Medeiros é outro que volta e meia dá o ar da graça com uma página de apreciável rutilância. Semana passada deu-se a estreia do ilustrado Hildeberto Barbosa Filho, professor da UFPB, poeta, escritor e membro da Academia Paraibana de Letras.

Por essa ou aquela razão, enfim, todos escrevemos. Uns com periodicidade definida, enquanto fulano e beltrano comparecem de maneira esporádica, feito procedem o doutor Marcos Araújo e Honório de Medeiros. O importante é escrever, ter onde publicar e contar com o interesse de nove ou dez leitores.

Se me perguntarem por que escrevemos, digo que é menos por dom que necessidade. Abrimos uma brecha em nossas agendas (a maioria possui isso) e nos dedicamos a compor algo com um mínimo de literariedade.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 21/05/2023 - 09:34h

A importância da cultura dos precedentes judiciais

Por Odemirton Filho 

No último dia 15 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) realizou a terceira edição do projeto “Diálogos com a Vice”, com a participação do ministro do Superior Tribunal Justiça, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas.

Foto ilustrativa

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Na ocasião, discutiu-se a importância da cultura dos precedentes judiciais e a sua maior aplicabilidade.

Contudo, o que vem a ser um precedente judicial? Para responder essa pergunta é de bom tom diferenciar precedente, jurisprudência e súmula.

Precedentes são decisões judiciais que, baseadas em casos concretos, servem de base para outros julgamentos de casos semelhantes.

Jurisprudência significa o conjunto das decisões, aplicações e interpretações das leis, ou seja, um conjunto de decisões reiteradas dos tribunais.

Já as Súmulas são orientações dos tribunais para que seja adotada um entendimento dominante, uma consolidação objetiva da jurisprudência.

Destaque-se, que, conforme o professor Daniel Amorim, nem toda decisão, ainda que proferida pelo tribunal, é um precedente. Uma decisão que não transcender o caso concreto nunca será utilizada como razão de decidir de outro julgamento, de forma que não é considerada um precedente.

O cidadão quando procura o Poder Judiciário precisa de uma resposta ao seu pedido, por meio de uma ação judicial. Assim, quando do mesmo fato, decorrem decisões diferentes, o jurisdicionado não entende, atribuindo descrédito à Justiça.

À título de exemplo, cite-se um caso ocorrido em Petrolina (PE), no qual um empreendedor fez a entrega de moradias populares sem que houvesse o fornecimento de água. A questão chegou ao Judiciário, sendo julgada de forma diferente. “Das 200 famílias que estavam no empreendimento, um vizinho ganhou, o outro vizinho perdeu, um outro vizinho ganhou R$ 10 mil e o outro R$ 15 mil, e não há como explicar essa diferença de tratamento ao jurisdicionado porque as questões são exatamente iguais.”

Como explicou o ministro do STJ, Ribeiro Dantas:

“Os precedentes são importantes porque eles podem ajudar a racionalizar o sistema judiciário brasileiro, deixando-o mais coerente e consistente, e assim melhorar a prestação jurisdicional, facilitando a vida do jurisdicionado, com mais previsibilidade nas questões, e até diminuir o tempo de duração dos processos.

E acrescentou: para isso, não basta mudar a legislação, é necessário que se instaure uma cultura de precedentes no Judiciário, mas isso não é tão fácil, pois nossos profissionais do direito, em geral, foram educados com a cultura de liberdade de julgamentos e isso gera uma discordância entre as decisões e entre as instâncias”.

O Código de Processo Civil – Lei n. 13.105/2015 – buscando valorizar a cultura do precedente judicial, reza que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (Art. 489. § 1º, VI).

No mesmo passo, o Art. 926. do Diploma Processual aduz que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Por outro lado, há quem entenda que a utilização dos precedentes judiciais iria de encontro ao que preceitua o Art. 371 do CPC, que diz: o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Sobre o artigo acima, fica o questionamento do professor Lenio Streck:

“Como justificar, na democracia, o livre convencimento ou a livre apreciação da prova? Se democracia, lembro Bobbio, é exatamente o sistema das regras do jogo, como pode uma autoridade pública, falando pelo Estado, ser “livre” em seu convencimento? Pergunto: A sentença (ou acordão), afinal, é produto de um sentimento pessoal, de um subjetivismo ou deve ser o resultado de uma análise do direito e do fato (sem que se cinda esses dois fenômenos) de uma linguagem pública e com rigorosos critérios republicanos? Porque a democracia é o respeito às regras do jogo”.

Portanto, é salutar o debate sobre a importância da cultura dos precedentes, pois são uma forma de dar previsibilidade, agilidade e segurança às decisões judiciais.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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domingo - 14/05/2023 - 11:26h

Loucura atrativa

Por Marcelo Alves

“Depois de pouco mais de três anos, trilhões de dólares em perdas e 20 milhões de mortos, a emergência internacional causada pela covid-19 chega ao fim, uma data que entra para a história recente da ciência e do mundo. Nesta sexta-feira, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou que seus especialistas chegaram à conclusão de que o vírus não representa mais uma ameaça sanitária internacional e que, portanto, a crise é oficialmente declarada como encerrada. Central para o fim da fase mais aguda foi a expansão da vacina”.

Brasil dispara em termos de mortes no mundo, numa dianteira assustadora (Foto: Sílvio Ávila)

Brasil também sofreu sobremodo com a pandemia (Foto: Sílvio Ávila/Arquivo)

Reproduzo trecho de matéria do portal Uol. Mas, na semana passada, coisa parecida, em tom de alívio, estava em todos os meios de comunicação da Terra (redonda).

Pelas regras da OMS, não foi uma declaração oficial do fim da pandemia. O “coisa ruim” – e falo aqui especificamente do vírus – ainda circula entre nós. Mas celebremos. Devido sobretudo às vacinas, o pior já passou. Mil vivas para todos os deuses e a quem mais de direito.

Todavia, na mesma semana em que celebramos o fim da emergência internacional pela covid-19, fomos surpreendidos com notícias estarrecedoras também envolvendo a pandemia e a vacinação respectiva: a Polícia Federal realizou operação contra uma bizarra turma que teria “inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados” que, assim forjados, viabilizariam a entrada de alguns do bando e de familiares, incluindo menores, nos EUA. E, “segundo comunicado da PF à imprensa sobre a operação, os investigados podem ter cometido quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. A continuidade da apuração deve esclarecer se de fato esses ou outros ilícitos ocorreram e quem seriam os autores”. E aqui reproduzo a BBC Brasil, embora a notícia estivesse em todos os jornais do país (redondo, ops, quis dizer lúcido) e diversos congêneres mundo afora.

Se a notícia do fim da emergência pela covid-19 nos deu alegria, a citada descoberta da falsificação dos certificados de vacinação é de dar uma tristeza mais que enorme. E não é só pela penca de crimes praticados, o que já seria por demais triste. É também pela absurdez da coisa.

Praticar “infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores”, todos esses crimes, envolvendo um montão de pessoas, numa trabalheira danada, correndo risco de ser pego (como foram), para não tomar “uma porra de uma vacina” (desculpem a expressão, mas é o que me vem neste momento de indignação), não tem lógica alguma. Zero. É absurdamente estúpido. E tudo isso numa pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil e milhões no mundo. Só posso dizer: “loucura, loucura, loucura”.

Para piorar, berrando uma malamanhada liberdade, há gente louvando essa loucura toda, que, como efeito colateral gravíssimo, levou muitas pessoas (menos informadas e mais vulneráveis) a não se vacinar e, em muitos casos, por consequência, à morte. “A cadela do fascismo está sempre no cio”, disse Bertolt Brecht (1898-1956); pelo visto, a cachorra antivacina também.

Pergunto-me quando essa absurdez vai acabar? Já nem sei mais se vai. Sempre temo a lição que aprendi assistindo a “O Terceiro Homem” (“The Third Man”), película dirigida por Carol Reed (1906-1976) com base em roteiro de Graham Greene (1904-1991), por muitos considerado o melhor filme britânico de todos os tempos.

Uma lição sobre a “maldade atrativa”. Harry Lime, personagem interpretada por Orson Welles (1915-1985), é um criminoso, contrabandista e falsificador de Penicilina, que, na Viena pós-guerra, causou a morte e a invalidez física e mental de centenas de adultos e crianças. Cínico e sem escrúpulos, ao ponto de delatar a ex-amante para conseguir um ou outro favor dos soviéticos, ele é, a despeito das iniquidades cometidas, capaz de provocar a admiração de alguns e até o amor sem contestação da bela mulher.

Lime/Welles confessa: “Ora, eu ainda acredito, meu caro. Em Deus, na misericórdia e tudo mais. Não estou machucando a alma de ninguém com minhas atividades. Os mortos são mais felizes mortos. Não estão perdendo grande coisa daqui, pobres coitados”. Tudo é feito e dito livremente e até “com um toque de genuína piedade…”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 14/05/2023 - 10:44h

Lágrimas contritas

Por Odemirton Filho 

Do seu belo e potente carro, com películas escuras, ele observava a cena do cotidiano. Vários pedintes nas ruas. Eram pessoas de sua cidade, de seu país, de outros países.  Choro, sobrimento, depressão, dor

Ao passar nos arredores do Museu da cidade, pessoas estavam nos becos, nas ruas. Pareciam “zumbis” com a mão estendida e olhos rútilos, pedindo algum trocado. Mas ele continuava o seu caminho. Indiferente a tudo e a todos.

Quando ia à Catedral, a cena se redesenhava. Sobre os bancos da praça que ficava em frente, algumas pessoas dormiam. Estavam maltrapilhos, famintos, sem rumo.

Ao sair da Igreja dirigia-se ao seu carro, dava uma ou duas moedas a algum pedinte, e ia embora cuidar da sua vida. Não era problema dele, os poderes públicos que adotassem as providências.

Ao lado da praça, via-se o imponente prédio dos representantes do povo. Em silêncio. Um ou outro parlamentar é que, vez em quando, levantava a voz em favor daquelas pessoas.

Às vezes, quando ia jantar em um restaurante com sua família, via algumas pessoas distribuindo um “sopão” aos pedintes em alguns locais. Todavia, nunca se dispôs a fazê-lo.

E os animais abandonados? Milhares de gatos e cachorros. Com fome. Sede. Doentes. Tinha um vizinho à sua casa que, diariamente, dava comida aos gatos da rua. E ele não gostava. Incomodava-o aquela ruma de gatos fazendo barulho e sujando as calçadas.

Certa noite, lá pra três horas de uma madrugada fria, deitado em sua cama com lençóis limpinhos, sonhou com um daqueles pedintes que diariamente via nos semáforos, nas ruas, nos becos, nos bancos das praças.

No sonho, o pedinte estendia a mão, chorando, angustiado. Acordou nervoso, com o corpo pingando de suor.

Como era religioso, levantou-se da cama e foi ler a Bíblia para se acalmar. O seguinte versículo saltou aos olhos:

“Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim”. (Marcos 10:47,48)

E lágrimas contritas escorreram em seu rosto.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 14/05/2023 - 07:22h

Cartas do reformatório

Por Marcos FerreiraCartas do reformatório

Peço desculpas aos interessados em amenidades, porém hoje quero discorrer sobre algo um tanto travoso, meio amargo. Mas um amargor diferente do amargor da amargura. Não. Isso não tem nada a ver com tristeza. O travo aqui é puramente abstrato, semântico. Nem tudo o quanto é amargo é desagradável.

Muito bem. Vivemos entre as paredes de um vasto e singular reformatório, invisível a outros que estão trancados em si mesmos. Cada um possui as chaves dos seus portões, contudo quase ninguém se atreve a sair, a encarar o mundo externo. Tal instituição metafórica (ou psicológica) é o nosso porto seguro, o que nos mantém centrados, nos trilhos. É isto que impede que descarrilhemos.

Esse lugar metafísico, fugindo à acepção comum, não acolhe apenas pessoas na menoridade. É outro tipo de espaço, também voltado para elementos adultos, de vários níveis e desníveis mentais. Nele somos amiúde reformados e registramos nossas lembranças desde sempre, sujeitos às suas normas e regras.

Consciente ou não, todo indivíduo vai emitindo suas correspondências nos mais recônditos porões de si próprios. Alguns, entretanto, por “razões que a própria razão desconhece”, como no dizer do filósofo Blaise Pascal, conseguem anular sua psique e aí findam não se tornando uma coisa nem outra, descambando para um abismo de esterilidade e solidão. Esses estão condenados ao nada.

Por meio de algumas cartas, exibo meu ponto de vista sobre o assunto proposto lá no início deste monólogo. Não creio que exista uma plateia interessada em saber o que busco com essa história de missivas. Também não estou bem certo do intuito desta narrativa sem objetividade. Todavia julgo correto sabermos o que somos ou desejamos ser. É mais ou menos o ser ou não ser de Shakespeare.

Então escrevam (embora desprovidos de talento) tudo aquilo que representa a essência de vocês. Até porque, segundo José Saramago: “Todos nós somos escritores, só que alguns escrevem e outros não”. Assim compartilho minhas impressões. Sem pressa nenhuma ou desejo de abandonar o reformatório.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 07/05/2023 - 12:12h

De raras finezas

Por Paulo LinharesCharge de CHico buarque recebendo prêmio literário em Portugual

Depois de residir por quase uma década em Brasília, onde exercia a profissão de motorista de ônibus urbanos, meu irmão José Afonso, recentemente falecido, e esposa Maria José, fizeram o caminho de volta para Mossoró, com a família aumentada em mais quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Como não poderia ser de outra maneira, logo que retornou saiu à cata de emprego. Com o seu currículo estampado na própria Carteira de Trabalho e Previdência Social, a famosa CTPS tão importante para os trabalhadores, ela exibia várias anotações de contratos de trabalho como motorista de ônibus. E não foi difícil conseguir um emprego semelhante, porém, com remuneração bem inferior, de salário-mínimo.

Começou logo a trabalhar e chamado ao Departamento de Pessoal lhe foi pedida a CTPS para anotações do contrato de trabalho. Inopinadamente ele recusou-se a entregar tal documento, para maior surpresa do patrão e outros empregados. Expôs o motivo, exagerado como sempre: “não quero manchar a minha carteira com esse salário mixuruca! ” E continuou por algum tempo no emprego, porém, “sem ser fichado na carteira”, em linguagem popular.

Esse episódio me veio à mente com a notícia de que, finalmente, o escritor, poeta e compositor de MPB, Francisco Buarque de Hollanda, iria receber o “Prêmio Camões”, que lhe fora outorgado em 2019, das mãos dos presidentes da República do Brasil e de Portugal, respectivamente, Luiz Inácio Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Maior honraria literária que se confere a autores lusófonos, o “Camões”, pelos Governos de Portugal e do Brasil, em1988, no objetivo de fortalecer os laços culturais entre os diversos países de fala camoniana e, por via de consequência, o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da Língua Portuguesa.

Desde a sua primeira edição, em 1989, esse significativo prêmio literário teve 34 laureados, a começar com o escritor Miguel Torga e passando pelos poetas, o brasileiro João Cabral de Melo Neto, o moçambicano José Craveirinha, o romancista luso Virgílio Ferreira, a romancista e memorialista brasileira Rachel de Queiroz, seguindo por Jorge Amado e o Nobel de Literatura, José Saramago, além de vários nomes da literatura de língua Portuguesa, criteriosamente escolhidos por um júri de 6 membros, dos quais o Brasil indica 2 e Portugal 2, sendo os outros 2 indicados pelos governos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Aliás, pela qualidade dos agraciados, percebe-se quão criteriosas têm sido suas as escolhas.

Aliás, o mesmo não se pode dizer acerca do Prêmio Nobel de Literatura, conferido pela Fundação que leva o nome de seu instituidor, o empresário e cientista sueco Alfred Nobel, cuja grande contribuição, no campo da Química, foi ter inventado a dinamite em suas diversas variante, além dos acessórios dessa que passou a ser uma grande ferramenta para a engenharia, mas, também, com pernicioso uso militar, registrando 355 patentes e acumulando enorme fortuna através de 90 fábricas de produtos químicos espalhadas pelo mundo.

O Nobel de Literatura tem-se notabilizado mais pelas enormes injustiças que acumula ano a ano, olvidando olimpicamente uma enorme plêiade de gênios da literatura universal, em especial os do chamado Terceiro Mundo, a exemplo do Brasil que jamais emplacou um dos seus, embora o pequeno Chile tenha cravado dois (os poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda).

O prêmio Camões consiste em vultosa quantia pecuniária paga paritariamente pelos dois países instituidores e fixada anualmente por eles – atualmente é de 100.000 euros -, além de um diploma firmado pelos dois chefes de Estado. E foi aí que deu “B.O.” quando Chico Buarque foi escolhido. Com efeito, seria muito difícil uma escolha melhor, dada a sua brilhante atuação em vários domínios artísticos, seja na música, na poesia, no romance e no teatro.

Brilhante numas e mediano noutras, contudo, jamais medíocre em qualquer delas: o chefe de Estado brasileiro à época, Jair Bolsonaro, cismou e se recusou a outorgar o diploma e liberar a quantia que cabia ao Brasil, tudo alimentado por ridículo, bolorento e mendaz ranço ideológico somente cabível no círculo do reacionarismo autoritário de raízes nazifascistas que reúne a truculenta extrema-direita rediviva, nestas últimas duas décadas, nestas terras de Pindorama.

Na relação entre dois Estados soberanos acerca de um tema, se um não quer, o outro se aquieta; “não rola” como se diz em linguagem de hoje. Assim, o Estado português manteve-se em obsequioso silêncio, por amor da liturgia político-diplomática, algo que jamais passou pela diminuta cabeça de Jair Bolsonaro. Por seu turno, o grande Chico Buarque, patrimônio intangível da civilização lusófona, manteve “cool”, pois, sábio, sabia que enquanto o mundo gira a Lusitana roda… E não a se referir àquele meio bobo anúncio comercial tão conhecido nos dois lado do velho Atlântico, mas, como a História é caprichosa e faz imanente o tão bem traduz trecho da apreciada canção de Geraldo Vandré: “Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no mar/ eu também sou marinheiro/ Eu também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até quebrar/ É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar/ É a volta do cipó de aroeira/No lombo de quem mandou dar”.

Sim, chega o ano de 2022. Eleições (quase) gerais no Brasil. Preso injustamente por um juiz parcial e incompetente, mancomunado procuradores federais de igual índole, apedrejado por uma súcia raivosa, na imprensa, redes sociais ou fora delas, sobretudo, perseguido pelo governo Bolsonaro, que se revelou como um dos mais corruptos da história republicana, sobretudo por montar uma megamáquina de distribuir verbas públicas de um tal “orçamento secreto”, que ao fim e ao cabo financiou as eleições de parlamentares e governadores ligados a Jair Bolsonaro, cuja candidatura ganhou, por esses enormes abusos dos poderes econômico e político, ao absoluto arrepio da legislação pátria. Apesar de tudo, faltaram mais de dois milhões de votos a Bolsonaro e Lula venceu. Enfim, foi mesmo “…a volta do cipó de aroeira/No lombo de quem mandou dar”.

Envergando a faixa presidencial e com amplo apoio da sociedade brasileira, maior ainda do que os 51 milhões de eleitores que sufragaram a sua eleição, Lula tenta reconstruir, interna e externamente, a imagem do Brasil. É bem verdade que, nalguns momentos de empolgação ou de irrefletido improviso, tem dado alguns escorregos o que, todavia, não compromete o conjunto das realizações político-administrativas encetadas nestes mais de cem dias de governo.

Entre tantas coisas já realizadas e antes prometidas, o presidente Lula abraçou como propósito pessoal o desagravo ao laureado Chico Buarque e ao Estado português, pela inadmissível e gratuita desfeita perpetrada não apenas em face destes, mas, dos milhões de cidadãos cuja língua-mãe é o português de Camões.

E foi bonita a festa, pá: no belíssimo Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, berço de tantos reis e rainhas lusitanos, inclusive do fundador do Estado brasileiro, Dom Pedro I. Enfim, a desfeita foi redimida nos belos discursos dos chefes de Estado dos países outorgantes da honraria, porém, mais belas foram as palavras e singela a oração de Chico Buarque, da qual, por imposição de espaço e de estilo, cito o mais significativo, quando ele lembra que, após quatro anos de espera, afirmou que, “…no que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”.

Que dizer disso? Inteligência puríssima e líquida, adornada de refinado humor. No íntimo foi bom, imagina Chico, que Bolsonaro, aboletado na curul presidencial a comer franco com farofa esparramada pelo bucho abaixo, tenha cismado em não assinar o diploma e liberar o valor pecuniário que caberia ao Brasil, no “Camões”, embora, na arguta visão do literato agraciado, apenas o Bozo“…teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. ”

Induvidoso que a emoção mais legítima fê-lo esquecer que a fineza do troglodita Bolsonaro não é tão rara assim: mais fineza teve ele quando, batido nas urnas e choramingando como um meninozinho de má índole, resolveu não transmitir a faixa presidencial ao empossado presidente Lula, que aproveitou o muxoxo do Jair para subir a rampa do Palácio do Planalto, pela terceira vez, todavia, dessa feita, acompanhado de uma expressiva representação do povo brasileiro, inclusive o vetusto cacique Raoni, tudo em imagens de rara beleza levadas ao mundo.

Raríssima fineza, mestre Chico, foi também o Ogro da Cloroquina não sujar a faixa presidencial que simboliza a magistratura suprema do Estado brasileiro, para usar o linguajar de Cícero em tempos e glórias idos no mundo republicano na velha Roma. Nas monarquias, o chefe de Estado, rei, imperador, czar ou sultão, geralmente usa um cetro e uma coroa como representativos do seu poder. Já nas repúblicas, a materialização desse poder fixa-se numa estreita faixa de pano, geralmente pintada com as cores nacionais e adornada pelo brasão de armas. Algo assim bem singelo, sem ouro nem prata ou de outros finos metais e pedra preciosas.

No dia seguinte celebrar-se-ia a Revolução do Cravos, de 25 de abril de 1974, que arrancou a nação portuguesas das garras de uma sanguinária ditadura protofascista de 42 anos, sobre a qual Chico Buarque, a quem o próprio Luiz Vaz de Camões ou Fernando Pessoa, os dois maiores vates das terras lusitanas, gostariam de chamar “irmão”, escreveu belíssima canção, no trecho em que vaticina: “Sei que há léguas a nos separar/ Tanto mar, tanto mar/ Sei, também, quanto é preciso, pá/ Navegar, navegar/ Canta primavera, pá/ Cá estou carente/ Manda novamente/ Algum cheirinho de alecrim”. E o “cheirinho de alecrim” somente chegou por aqui em 1988, quando dada à luz a Constituição Cidadã que encerrou, cá também, as trevas de mais de duas décadas de sangue, suor, desespero e lágrimas.

Agora, ao perceber o ex-presidente Bolsonaro a (quase) vislumbrar o sol nascer quadrado pelas tantas piruetas que aprontou, certamente Chico Buarque, com um belo diploma debaixo do braço e 100 mil euros no bolso, vai cantarolando pelas ladeiras da velha Lisboa: ” Quando chegar o momento, esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido, esse grito contido/ Este samba no escuro/ Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza de desinventar/ Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada nesse meu penar”.

Paulo Linhares é professor e advogado

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 07/05/2023 - 11:10h

Eu conheci um santo

Por Honório de Medeiros

Eu tinha dez ou onze anos quando conheci um santo. Chamava-se Helder Câmara, era Arcebispo da Igreja de Cristo em Recife e Olinda.Dom-Helder-Camara-NE2

A ele fui levado pela secretária particular do Governador Nilo Coelho, que eu suponho ter sido, muitas vezes, um canal de comunicação entre a Igreja, o Poder Civil e o Poder Militar em Pernambuco, dada sua condição singular de amiga pessoal dos líderes dessas instituições.

Fomos eu, ela, uma tia, funcionária da Sudene, minha mãe e minha irmã, no começo da noite, na sede do arcebispado.

Estávamos de férias em Recife.

D. Helder nos recebeu com aquele seu sorriso luminoso, tão característico, olhos pisados pela falta de sono, o corpo mirrado, frágil, em seu ascético gabinete.

Para mim, naquela época, era impossível sequer imaginar que ali estava um gigante moral. Um dique, que com a força de suas palavras, atitudes, e carisma, tantas vezes contivera o furioso redemoinho, em Pernambuco, das águas turbulentas da repressão pós 64.

Pregava defendendo uma Igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Orador que galvanizava multidões, também era um escritor cultuado. Dele li o belo “Um Olhar Sobre a Cidade”, depois perdido em alguma das mudanças que minhas muitas vidas me impuseram.

Entretanto, dele, guardei mesmo, em meu coração, em minha mente, sem nunca esquecer, não somente a benção que seus dedos magros desenharam sob a minha testa ainda infantil, como também uma frase sua, lida em algum lugar, que é a síntese, para mim, do seu apostolado, tão bela quanto densa: “me enriqueces quando discordas de mim”.

Eis uma epistemologia em forma de poesia direcionada ao espírito dos homens de boa-fé do povo de Deus. Minha benção, padre. Quando me lembro do senhor, acredito na humanidade.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

*Crônica extraída do livro De uma longa e áspera caminhada, pela Editora Viseu.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 07/05/2023 - 08:48h

De ouro

Por Marcelo Alves

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), sobre quem andei falando estes dias, foi um gênio.

Primeira capa de Dom Quixote (Reprodução)

Primeira capa de Dom Quixote (Reprodução)

Ele é sinônimo de literatura em língua espanhola/castelhana, sendo o seu “Quixote” (“El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”), de 1605, o marco fundador do romance moderno e uma das mais celebradas obras-primas da literatura universal. Disse isso e repito.

Todavia, devo também dizer que Cervantes é apenas a face mais visível de uma literatura, dita espanhola/castelhana, que era grande, enorme, maravilhosa mesmo, no seu tempo.

Para quem não sabe, a obra de Cervantes está situada no que se costumou chamar, em terras ibéricas, de Siglo de Oro, época de apogeu da cultura e, em especial, da literatura espanhola. A grosso modo, esse apogeu, que abarca o Renascimento e o Barroco na Península, começa já em fins do Século XV, perpassa o século XVI e vai até fins do século XVII – quando estaria situado o Siglo de Oro no seu estrito senso –, com o falecimento de Calderón de la Barca (1600-1681).

Para se ter uma ideia, por essa época (e até já um pouco antes), junto à prosa e à poesia de Cervantes e ao teatro de Calderón de la Barca, se misturavam e pontificavam uma plêiade de célebres autores e obras. Para os mais espiritualizados, é o tempo da poesia mística de Fray Luis de León (1528-1591), Santa Teresa de Jesús (1515-1582) e San Juan de la Cruz (1542-1591). É o tempo da poesia, da prosa e do grande teatro de Lope de Vega (1562-1635). Da prosa de Baltasar Gracián (1601-1658) e Mateo Alemán (1547-1614). Do teatro de Tirso de Molina (1571-1648). Da poesia de Francisco de Quevedo (1580-1645) e Luis de Góngorra (1561-1627). E por aí vai.

Não por mera coincidência, esse é o período dos reinados de Carlos I (o Imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico) e dos reis Filipes (cujos números, dada a profusão de reinos dominados, inclusive Portugal, com a União das Coroas Ibéricas, é uma confusão dos diabos). Poder e riqueza, com muito ouro vindo da América Espanhola e do Brasil, não faltavam. Dinheiro e arte, incluindo a literatura, geralmente andam juntos.

Como registrado no excelente “Curso de literatura – español lengua extranjera” (Editora Edelsa, 2006), de Rocío Barros Lorenzo, Ana Maria González Pino e Mar Freire Hermida: “O Renascimento chega a Espanha numa data-chave, 1492 (fim da Reconquista da Península Ibérica, primeira viagem de Colombo à América e data da publicação da primeira Gramática da língua castelhana, de Antonio de Nebrija, que significa a unificação da língua) e se desenvolve durante o século XVI.

Primeira Gramática da língua castelhana (Reprodução)

Primeira Gramática da língua castelhana (Reprodução)

No panorama político, a Península é um território estabilizado e unificado sob o reinado dos Reis Católicos, que começará a se expandir tanto na América (com a Conquista) como pela Europa (através de alianças matrimoniais: duas filhas dos Reis Católicos, Isabel e Maria, se casarão com o rei Manuel de Portugal; outros dois, Juan e mais tarde Juana, se casarão com os herdeiros do Império Austríaco; e Catarina, com Henrique VIII da Inglaterra). O século XVI, sob os reinados de Carlos I e Felipe II, é o apogeu do Império Espanhol, em cujos territórios, dizia-se, ‘o sol nunca se põe’”.

A riqueza era tão grande que, mesmo com as guerras nos reinados de Felipe III, Felipe IV e Carlos II, que debilitam política e economicamente o país, com a decadência sociocultural e política, afinal temos ciência da Inquisição, do tráfico de escravos e dos horrores na América, “fala-se de um período de florescimento cultural que pode ser situado entre a morte de dois autores fundamentais, Miguel de Cervantes em 1616 e Calderón de la Barca em 1681. Este período é conhecido como Siglo de Oro, e nele se desenvolve o movimento cultural denominado Barroco”.

No mais, devo registrar que nós, brasileiros, temos um lugar de fala (para usar de uma dessas expressões da moda) no Siglo de Oro espanhol. Seguidamente às mortes sucessivas de D. Sebastião (meio tresloucada, na famosa batalha de Alcácer Quibir) e de D. Henrique, ambos sem deixar filhos, Felipe II de Espanha foi entronizado Felipe I de Portugal, com a célebre União das Coroas Ibéricas (ou, menos afamadamente, o domínio espanhol sobre Portugal).

Os juristas, pelo menos aqueles que foram meus contemporâneos de universidade, devem até se lembrar das badaladas Ordenações Filipinas, muito citadas, mas nunca estudadas, quando se falava da história do direito brasileiro.

O Siglo de Oro dos espanhóis foi também forjado com o nosso (vil?) metal. Das minas gerais e arrabaldes.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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Categoria(s): Crônica
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