domingo - 12/03/2023 - 08:38h

Um Bond alternativo

Por Marcelo Alves

Comemoramos em 2023 os 70 anos de Bond, James Bond. De fato, foi em 1953, em plena Guerra Fria, que o escritor britânico Ian Fleming (1908-1964) nos apresentou o seu agente secreto 007 – que se tornou “nosso”, de todos os amantes das letras e, sobretudo, do cinema. “Cassino Royale” é o romance de estreia, embora não seja o primeiro título a rolar na grande tela. No cinema, a primazia fica com “Dr. No”, filme de 1962, baseado em romance homônimo de 1958.

Ilustração

Ilustração

Para celebrar a data, os herdeiros de Ian Fleming, que ainda guardam os seus direitos autorais, decidiram publicar novas edições dos livros de Bond, cujo cânone é composto por doze romances e dois livros de contos. Maravilha! Em princípio…

O problema, como informa Christine Lehnen, da Deutsche Welle, em artigo publicado em várias mídias do país (G1, Uol e até num certo O Sul, que não conhecia até ser apresentado por um amigo leitor voraz), é que essas novas edições virão um tiquinho diferente. A linguagem considerada racista – e, por conseguinte, ofensiva – será expurgada das páginas de Fleming. Um expurgo suave, prometem família/editores, ficando tudo o mais próximo possível do original e da época em que os romances foram escritos e originalmente publicados. Maravilha! Em princípio…

De fato, a coisa – falo dos expurgos realizados nas novas edições – já gerou debates.

Primeiramente, há a questão em si da alteração do original. Se para pior ou para melhor (e acredito que a intenção aqui foi “melhorar” o texto), o fato é que “buliram” no texto de Fleming. Texto esse que deve sempre ser lido e sopesado – e criticado, por óbvio – levando em consideração as circunstâncias da época.

Ademais, no Reino Unido, fala-se até em censura à obra de Fleming. Não acho que seja tecnicamente o caso, afinal as demais edições dos romances de James Bond, inúmeras, fiéis aos originais, continuarão a circular por lá, produzidas, vendidas, emprestadas e lidas, como de praxe. A nova edição de que falamos é apenas um Bond alternativo.

De toda sorte, Christine Lehnen nos traz uma observação bastante interessante sob o ponto de vista do tratamento igualitário às demais visões de mundo: “Enquanto para alguns as mudanças planejadas vão longe demais, para outros elas não são suficientes. O jornal britânico Independent apontou que, embora a representação de pessoas negras seja alterada, a linguagem condescendente em relação às figuras do leste asiático e da Coreia permaneceria. Descrições misóginas e homofóbicas também continuam no romance, informou o jornal britânico Daily Telegraph, incluindo comentários como ‘o doce cheiro de estupro’ ou a descrição da homossexualidade como uma ‘deficiência teimosa’”. E há ainda coisas mais sutis, como o sex appeal de Bond, visivelmente dominante (ou mesmo sexista) em relação às mulheres – em especial para com as belíssimas Bond Girls –, que, devemos assumir, faz parte do seu “charme” e que seria muito difícil de se expurgar da obra sem desnaturar a própria coisa.

O Reino Unido tem dessas coisas. Eu mesmo já fui “vítima” de uma espécie de pegadinha na busca por um dos títulos mais famosos da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), “Ten Little Niggers”, de 1939, cujo versão em português, lida na minha adolescência, chama-se “O caso dos dez negrinhos”. Ele ganhou ares de obra polêmica em tempos do politicamente correto. A questão aqui está mais no título, é verdade, e menos no seu conteúdo, que também teve de ser ligeiramente alterado, o que causou a indignação dos defensores da liberdade de expressão. Inspirado em antiga canção inglesa/americana, o título foi considerado racialmente ofensivo e teve de ser mudado (sob pena de não ser mais indicado em escolas, universidades, etc.), primeiramente, nos EUA e, em seguida, no Reino Unido, para “And Then There Were None” (tendo sido ainda adotados os títulos “Ten Little Indians” e “The Nursery Rhyme Murders”).

Na verdade, acho que o mundo inteiro (o mundo ocidental, pelo menos) tem dessas coisas em tempos do politicamente correto. Acho uma preocupação válida. Crucial, aliás. Mas também perigosa se tratada sem cuidado. Afinal, como alertado em “120 Banned Books: Censorship Histories of World Literature” (Checkmark Books, 2011), de Nicholas J. Karolides, Margaret Bald e Dawn B. Sova, “por séculos, livros têm sido banidos, suprimidos e censurados por razões políticas, religiosas, sexuais e sociais, segundo os gostos e as crenças de uma era particular ou de uma localidade”. E isso é bem mais do que perigoso.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 12/03/2023 - 04:10h

Nau esperança

Por Carlos Santos

Rua Jerônimo Rosado, um marzão que parecia não ter fim, em 1974 (Acervo do Relembrando Mossoró)

Rua Jerônimo Rosado, um marzão que parecia não ter fim, em 1974 (Acervo do Relembrando Mossoró)

Relembro o poeta Gonçalves Dias em “Juca Pirama” para proclamar: “Meninos, eu vi”. Testemunhei duas enchentes épicas em Mossoró. Dois quadros, duas visões.

Em uma delas fui desalojado pela enxurrada; de outra resultou meu alojamento, de forma indireta, numa paixão: o jornalismo.

Vou contar o primeiro caso. Depois, quem sabe, abordo o outro, acontecido em 1985.

Situo-me em 1974. Estou nos arrabaldes do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Centro de Mossoró. Assisto o rio Mossoró banhar lentamente a rua Jerônimo Rosado, escalar as escadarias do adro desse templo e ocupar nossa casa sem resistência.

Sua água barrenta e devastadora produzia cenas incomuns aos meus olhos infantis: homens com calças arregaçadas, outras crianças a nado, caminhões ou simples carroças transportando móveis e picuás da vizinhança.

A chuva incessante que engordou o rio nos empurrou para fora com a força de quem manda, sem pedir licença. Um poder onipotente. Mesmo assim, a água que quase batia à cintura de muitos ali bem em frente, me divertia, sem que eu soubesse medir os estragos ou pressentir os desdobramentos da cheia.

Sapos apareciam aos montes, como se fora reprodução de uma das dez pragas do Egito. Multiplicavam-se aos milhares, fazendo do enorme quintal uma Normandia no Dia D, só para anfíbios. Uma cena grotesca que nunca mais vi se repetir.

Canoas e pequenas lanchas navegavam à nossa frente; o rádio ligado noticiava a ampliação territorial do rio Mossoró. Estávamos ilhados, acuados, a cada dia.

O burburinho na rua e o alagamento continuado não me afligiam. A imagem diluviana era acima de tudo encantadora à minha avaliação limitada. Cinematográfica. Estimulava a imaginação cheia de aventuras e super-heróis da TV e quadrinhos.

Ruas, praças e avenidas estavam transformadas num marzão. Uma via só. Fluvial. Quase amazônica.

Só me toquei do pior com a convocação final: “Arrume suas coisas. Amanhã cedinho a gente vai embora”. Partimos para nunca mais voltarmos àquele endereço.

Lá ficou uma parte de minha infância e inocência: a pequena pracinha de seu João Cantídio, nosso Colégio Dom Bosco a tão poucos passos.

Para trás o presépio de Maria de Uriel, miniatura bíblica cheia de vida em todo Natal; a casa acolhedora de dona Fefita e seus netos, todos meus amigos, que vez por outra me convocavam para tumultuar seu sossego.

A padaria de seu Eliseu Costa e dona Julita nunca mais seriam meu endereço de fim de tarde. Seus pães e bolos deliciosos, enrolados com técnica apurada em papel madeira, continuam em meus olhos, olfato e paladar. Memória sensorial.

As confrarias noturnas à calçada, com o tititi do dia, quase sempre vetadas à presença de crianças curiosas, continuam gravadas. As famílias pareciam uma só, sem o temor da violência urbana, sem as aflições psicossociais deste século XXI.

Vários nomes e lugares mantêm-se memorizados, outros se dispersaram com o tempo, mesmo que a imagem deles, ainda turva, pulule até hoje em minha mente.

Vejo o casal Izete-Raílton; Moisés dos Portões, padre Américo Simonetti e suas concorridas missas no Coração de Jesus; o tenente e delegado Clodoaldo Meira aboletado num Jeep aterrorizando quem teimava em jogar bola na área, pronto para picotar a pelota.

A senhora Júlia Menezes absorta; as irmãs Ilná e Alaíde Nascimento; minha “Maura” sempre loquaz, festiva e amante da prosa com Nadir Brasil e tantos amigos e amigas. A professora exemplar Dagmar Filgueira e a serenidade do senhor Trajano Filgueira.

O sítio “Pica-pau” no beiço do rio; o Cine Cid tão perto e a lenda de que em seu subsolo existia uma baleia. Com chuva ou sol, enchente ou não, o barulho que vinha de lá nos fazia acreditar nesse “Moby Dick” subterrâneo. O enredo caberia numa aventura escrita por Herman Melville ou o engenhoso Júlio Verne.

Por aquele pequeno portão gradeado de ferro da casa em que eu morava, de batente alto, soltei meu barquinho tosco, de papel. Vi-o flutuar nas águas por alguns minutos, até que desaparecesse.

Só muito tempo depois descobri que “navegar é preciso”. Minha nau frágil, não tripulada, era também esperança.

Buscava outro porto seguro além-mar.

Carlos Santos é criador e editor do Canal BCS – Blog Carlos Santos

*Texto originalmente publicado nesta página no dia 21 de janeiro de 2011, há mais de 12 anos e dois meses.

*Fotos do acervo do Relembrando Mossoró, de Lindomarcos Faustino, que podem ser ampliadas clicando sobre cada uma.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
quinta-feira - 09/03/2023 - 20:24h
Livro e vida

Para caminharmos juntos

Livro está no catálogo da Editora Viseu (Foto: pessoal)

Livro está no catálogo da Editora Viseu (Foto: pessoal)

Com novo livro de Honório de Medeiros à mão, minha noite será a moldura de uma leitura que vai chegar à madrugada, presumo.

Se a vida nos religou por um fio que tinha se esgarçado e, parecia rompido desde a distante juventude, a proximidade do outono não nos dispersará outra vez.

Há muito a caminhar. Juntos!

Mossoró, na República da São Vicente, 09 de Março de 2023.

*De uma longa e áspera caminhada – Editora Viseu – adquira AQUI.

Acompanhe o Canal BCS (Blog Carlos Santos) pelo Twitter AQUI, Instagram AQUI, Facebook AQUI e YouTube AQUI.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica / Cultura
domingo - 05/03/2023 - 08:52h

Uma nova Casa Branca

Por Marcos Ferreira

Imóvel que foi demolido para que pudesse nascer um lugar habitável...

Imóvel que foi demolido para que pudesse nascer um lugar habitável…

... e decente à vida modesta, mas digna (Fotos: Marcos Ferreira)

… e decente à vida modesta, mas digna (Fotos: Marcos Ferreira)

Tudo começou com o escritor David de Medeiros Leite. Àquela época David estava presidente da Companhia de Habitação do Rio Grande do Norte (Cohab/RN). O filho da saudosa senhora Hilda foi quem me apontou a disponibilidade do imóvel situado no Conjunto Walfredo Gurgel, no Alto de São Manoel.

Eu contava com um cargo miúdo na Prefeitura de Mossoró, e fomos (eu, David Leite e o também escritor Clauder Arcanjo) dar uma olhada na casa, que encontramos em escombros. Assim mesmo, com o apoio de David e Clauder, conseguimos tornar aquelas ruínas em algo habitável. Esse, portanto, foi o início.

Depois de vários anos, sempre entremeados de incontáveis apuros, não pude mais realizar nenhum benefício na residência, e esta foi estiolando-se rapidamente. Decorridos cerca de quinze anos, portanto, a situação se agravou. A ponto de eu colocar uma placa de venda, buscando assim adquirir outro imóvel noutro subúrbio mais distante deste município. Ressalto que o Walfredo Gurgel, exceto por alguns problemas estruturais, ainda é um bairro bem familiar, de cadeiras nas calçadas.

Ao saber da placa de venda, meu amigo petroleiro Elias Epaminondas bateu os coturnos e se opôs com veemência à venda de meu endereço. Sim. Eu costumava dizer que não tinha uma casa, mas somente um endereço. A placa de venda foi retirada. Miriam Ferreira, esposa de Elias, elaborou um simples e belo projeto para minha nova habitação e Elias deu início a um mutirão entre nossos amigos.

Agora, extremamente grato, eu me sinto na obrigação de relacionar aqui os nomes daqueles que se sensibilizaram e contribuíram, de maneira relevante, para tornar meu sonho e o projeto de Miriam Ferreira em realidade.

De largada, cito o amigo Clauder Arcanjo, que prontamente se comprometeu em adquirir todas as telhas. A seguir, embora sempre discretos, vêm Túlio Ratto e José Antero dos Santos, responsáveis por grande parte do cimento. Na sequência, em ordem aleatória, vou citando o restante dos nomes. Torço que isso não lhes pareça maçante ou enjoativo, tendo em vista que o nobre leitor sempre espera encontrar neste espaço o mínimo possível de literatura, sobretudo no gênero crônica.

Mas, repito, eis os bons samaritanos em ordem aleatória: Luiza Maria Freire de Medeiros, Raimundo Antonio, Fabrício Caymon, Raimundo César Barbosa, Odemirton Filho, Zilene Medeiros, Dr. Dirceu Lopes, João Bezerra de Castro, Aluísio Barros, Francisco Wanderley, Cristiane Reis, Marconi Amorim.

Acho que isto, com perdão do leitor, não se trata de prestação de contas ou cabotinismo imobiliário. Não é isso. Também não é subserviência, servilismo púbico. Quero apenas, no breve espaço de uma crônica, quiçá duas páginas, exibir, de maneira honesta, minha gratidão a essas pessoas que venho citando. Porque a gente não tem rédeas no instante de fazer determinadas críticas a terceiros, todavia se omite no momento de tornar notório aquilo de bom que lhe foi feito. Aqui eu falo de gratidão. E gratidão não está nem nunca esteve fora de moda. É algo bom a se praticar.

Contei, entre outros, com figuras como Rogério Dias, Flávio Quadrado, Ranniere Ferreira, Sandro Jorge, Jessé de Andrade Alexandria, Alexsandro Lopes Pinto, Laélio Ferreira, André Luís, Carlos Silva, Antonio Alvino, Dr. Lúcio Leopoldino, Francisco Nolasco, Francisco Amaral Campina, Gildemar Condados, Elder Nolasco, Anchieta Albuquerque, além do meu culto Editor Carlos Santos.

Não paramos por aqui. O mutirão prossegue. A velha choupana foi inteiramente demolida e uma nova casa branca (que não é a dos americanos) ergueu-se bela e majestosa sob as mãos dos pedreiros Jailson Batista, Rogério Cordeiro e Wellington Azevedo. “Agora não tem mais volta”, falei comigo mesmo.

Vamos aos demais: Francinaldo Rafael, Honório de Medeiros, Cid Augusto, Elisabete Stradiotto, Valdemar Siqueira, Ênio Souza, Luzia Praxedes Arcanjo, João Helder Alves Arcanjo, José Anchieta de Oliveira, Afrânio Melo, João Maria Souza da Silva, Antônio Railton, Marquinhos Rebouças, Nilson Rebouças, Jorge Alves, Vanda Maia, Arlete Jácome, Dr. Diego Dantas e Alexandre Miranda. Creio que não esqueci ninguém, isto graças a Natália Maia e às suas planilhas cheias de nomes e números. Também agradeço àqueles que, por um motivo ou outro, não puderam ajudar. Sei que muitos torceram pelo êxito desta empreitada construída graças a várias doações.

Não tenho, pois, o menor embaraço em escrever expondo meu agradecimento a todos esses amigos de primeira e de última hora. Porque a gratidão, repito, faz parte do meu DNA, da minha constituição e personalidade.

Todos são bem-vindos para um cafezinho.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • San Valle Rodape GIF
quarta-feira - 22/02/2023 - 22:28h
Café e livro

Meu reencontro com Márquez

Doze contos peregrinosPor muitos anos, não 100, bem menos do que isso, fiquei distante de Gabriel Garcia Márquez. Ele que foi minha companhia em solidão e na memória de um moço triste, na depressão, bate à minha porta de novo.

Na prosa à mesa, regada a café, com o amigo Aílson Teodoro, rebobinamos a vida e experiências pessoais entrelaçadas com a obra do autor.

Daí me aparece Doze contos peregrinos. “Como é insaciável e abrasivo o vicio de escrever”, diz o escritor, jornalista, político e editor colombiano, Prêmio Nobel de Literatura (1982).

Peregrino.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
quarta-feira - 22/02/2023 - 16:44h
Começou

Declaro oficialmente aberto o Inverno 2023

Um homem com um rodo não quer guerra com ninguém (Foto: pessoal)

Um homem com um rodo não quer guerra com ninguém (Foto: pessoal)

Declaro oficialmente aberto o Inverno 2023 em Mossoró.

Solenemente, tomei meu primeiro banho de chuva do ano nesta quarta-feira (22), enquanto usava rodo (lembrei de uma campanha…) e desentupia ralo para evacuar água.

Apesar de trovões e relâmpagos, comemorei muito.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 19/02/2023 - 08:22h

Bandeira branca

Por Marcos Ferreira

Algumas vezes eu te ofendi com palavras duras e afiadas como um disco de diamante. Sim, eu te maldisse em momentos incontáveis. Pisei nos teus calos, cuspi no teu chão com revolta e desprezo. Eu tinha (talvez ainda possua) vários motivos para te cobrir de impropérios. Nossa relação nunca foi fácil. Na verdade, a bem da verdade, vivemos um amor às avessas, um amor entre a ternura e o desgosto. Esperei de ti um mínimo afago, contudo só recebi pancadas, desdém, escárnio.Ilustração Bandeira branca 1

Ainda assim não me considero vítima de coisa alguma. Percorri os sombrios abismos de teu coração de olhos bem abertos. Eu sempre soube que, a qualquer momento, tu me cravarias uma faca nas costas. Jamais me enganaste. Não foi por inocência ou descuido que caí nos teus charcos, nos teus pântanos de mutismo, desprezo, descaso. Muitos me alertaram: toma cuidado com ela! É ardilosa.

Volta e meia alguém me dizia algo desse tipo a teu respeito. Todavia eu tinha plena consciência de onde estava pisando. Ou sendo pisado. Exatamente. Talvez eu tenha sido espezinhado mais do que pisei. Houve até um tempo, imagine só, em que eu te dediquei versos ingênuos, honestos, piegas. Por sua vez, claro, não deste a mínima para aqueles poemas açucarados, tão repletos de poeticidade quanto uma bigorna. Sim. Durante determinado tempo te levei a sério e te bendisse.

O tempo foi passando, e minha frustração ofertou espaço a um sentimento revoltoso. Fui me cansando de viver a teus pés, mendigando atenção, reconhecimento. Nada disso me foi oferecido. Quebrei a cara, perdi o encanto e me tornei um sujeito amargo e pouco receptivo à “vida em rebanho”, como diria Antonio Alvino. Bem lá no fundo, porém, guardei alguns resquícios de empatia por ti.

Embalde. Nossa relação de amor e ódio jamais nos permitiu viver outra coisa exceto uma tácita inveja um do outro. Apequenamos todas as nossas conquistas, fizemos pouco-caso de nossas vitórias, desdenhamos de tudo de positivo e admirável que possuíamos. Eu, mergulhado no ressentimento. Tu, cega de inveja dos meus pequenos sucessos neste ringue das palavras supostamente artísticas. Não nos respeitamos. Só dissimulamos, fingimos o tempo inteiro não nos enxergarmos.

Hoje, enfim, em nome de tudo que poderíamos ter sido e que não fomos, quero te propor uma trégua, levanto uma bandeira branca para simbolizar um armistício entre nós. Que tal? Imagino que nenhum dos lados tem nada a perder com isso. Até porque, na minha opinião, já perdemos muito tempo e muitas coisas durante todo esse arraigado e não discutido mal-estar entre nós. Tu sabes disso.

Estou farto desse bangue-bangue sem chumbo nem cheiro de pólvora. Quero novamente andar entre as tuas ruas, becos, avenidas e vielas sem me sentir uma espécie de escavadeira de tuas pedras e do teu asfalto. Até te perdoo (momentaneamente) por tantas árvores que foram ceifadas bem debaixo do teu nariz. E o que dizer do nosso poluído e agonizante rio? Tu fizeste muitas concessões a elementos caça-níqueis, a grileiros urbanos. Hoje se apoderaram de ti como de uma messalina.

Enquanto isso, diante deste velho notebook, eu também tento me vender por homem de letras. Ao menos um escriba dominical, arremedo de cronista com excesso de ego e pouco talento. De resto, portanto, ergo uma bandeira branca em nome de uma paz que já deveríamos ter adquirido desde o tempo em que éramos jovens e cheios de esperança no futuro desta cidade sem honra nem glória.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 12/02/2023 - 07:34h

Shakespeare nas estrelas

Por Marcelo Alves

Na mesma trilha das últimas semanas, vamos novamente de ficção científica. Como fã desse gênero literário/cinematográfico/televisivo, faço hoje um paralelo entre uma das suas mais badaladas franquias – “Star Trek” ou “Jornada nas Estrelas” – e o grande Shakespeare (1564-1616).Jornada nas Estrelas

Shakespeare, todo mundo – pelo menos o mundo interessado em literatura, arte dramática e coisas que tais – conhece ou dele já ouviu falar. É o criador de uma obra que transcende época e lugar e não pertence a qualquer religião, filosofia ou profissão.

Um gênio que representa o que há de mais sublime na literatura universal ou mesmo na natureza humana. “Romeu e Julieta” (1592), “Júlio César” (1599), “Hamlet” (1599), “Otelo” (1604), “Rei Lear” (1605), “Macbeth” (1606), “Antônio e Cleópatra” (1607), apenas para citar algumas de suas tragédias, já que de uma de suas comédias eu tratarei adiante, são tudo e algo mais. Poucos – na literatura ninguém mais do que ele – conheceram a alma humana como o bardo inglês.

Já “Star Trek”, entre nós chamada “Jornada nas Estrelas”, é uma franquia estadunidense do tipo “viagem espacial”, originalmente criada por Gene Roddenberry (1921-1991), mas composta por várias séries que se sucedem no tempo. A primeira série foi ao ar em 1966. Desde então vieram “Star Trek: the Next Generation”, “Star Trek: Deep Space Nine”, “Star Trek: Voyager”, para ficar nas minhas sequências preferidas, e por aí vai.

Da série original, William Shatner como o Capitão Kirk, Leonard Nimoy como o Sr. Spock e DeForest Kelley como o Dr. McCoy são rostos inesquecíveis. Da nova geração, o capitão Jean-Luc Picard (papel de Patrick Stewart) está entre meus heróis. A nave espacial Enterprise, a tão discutida viagem em dobra espacial e o inusitado teletransporte nos fazem sonhar com novos mundos. As aventuras viraram livros, quadrinhos, jogos e, claro, foram bater no cinema: os primeiros filmes, com os atores da série original, estão entre os meus queridinhos.

São décadas de estelar encantamento. Não acredito haver franquia mais longeva. E são inúmeros prêmios: Hugo, Saturno, Emmy, Oscar, por anos e anos. O impacto cultural de “Star Trek”, dos seus fãs à NASA e ao espaço sideral, é cósmico.

O paralelo que faço entre o cânone shakespeariano e as estórias de “Star Trek” tem por inspiração uma observação que li em um livro perfeito para os “juristas trekianos” (traduzo: juristas fãs de “Jornada nas Estrelas”): “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003). Dele consta: “Especialistas em estudos transdisciplinares shakespearianos nas ciências humanas gostam de enfatizar que, se alguém lê Shakespeare, essa pessoa irá encontrar na obra do bardo todos os tipos de seres humanos. Similarmente, se alguém assiste à Star Trek, essa pessoa irá achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em Star Trek. Este é o problema acadêmico de Start Trek; ela não se encaixa perfeitamente em qualquer das ciências. Ela é uma extrapolação das ciências puras, como a física, a biologia ou a química. Ela é uma análise crítica tanto das ciências sociais em geral como da nossa história. Ela é uma literatura visual da filosofia, da ética e da arte. Start Trek, no seu melhor, pode inspirar pessoas a buscarem ser melhores sendo seres humanos; ela pode ser tanto um púlpito ameaçador quanto inspiradora poesia. Ela pode também ser, e frequentemente o é, apenas uma série/novela divertida”.

A observação transcrita confirma o que venho defendendo: a ficção científica, sublinhada aqui a ficção “Star Trek”, é o mais filosófico dos gêneros literários/cinematográficos/televisivos. E entre as “filosofias” objeto da franquia “Star Trek” está a filosofia política e a subespécie filosofia do direito. De fato, relendo “Star Trek Visions of Law & Justice”, reafirmo: “Star Trek” trata, de forma profunda, de aspectos fundamentais da filosofia do direito. Em vários dos seus episódios se discute, com grande implicação para o enredo, temas como: o conceito de soberania, federação e constituição; o direito internacional (e interstelar, como o livro chama), seus tratados e o direito interno; a jurisdição extraterritorial, a extradição e o asilo; o direito de guerra; o combate ao terrorismo; a pena de morte e as outras formas de punição; o direito e a questão do gênero; e conceitos mais abstratos, como os de Justiça e Moral e as ideias de direito e de equidade.

Bom, para os mais céticos – no duplo sentido, seja porque não gostam de ficção cientifica, seja porque só acreditam vendo ou lendo –, vou dar um exemplo típico, misturando com a obra shakespeariana, da filosofia do direito de “Star Trek”. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 12/02/2023 - 04:30h

Boêmio sem boemia

Por Marcos Ferreira

Nunca fui de fato um boêmio. Não ao menos por natureza. Embora tenha ido a certos lugares etílicos por um determinado tempo. Isto em companhia dos notívagos Caio César Muniz, Túlio Ratto e Cid Augusto. Eu frequentava os bares e alguns outros endereços onde se adquiria bebida alcoólica, no entanto nunca passei de uma garrafinha ou duas de refrigerante.

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Hoje, por respeito à saúde, não bebo nem mais isso. Só uma vez por ano sucumbo à tentação de uma KS geladinha.

Há outras coisas que mudaram. Refém da Netflix, costumo assistir a vários filmes. O mais recente que vi foi “O Pálido Olho Azul”, longa-metragem bem-bolado que destaca a vida do poeta americano Edgard Allan Poe. Há poucos dias, a propósito, essa película ganhou uma bela resenha de Cid Augusto. Então, quanto a “O Pálido Olho Azul”, depois da resenha de Cid, não tenho mais nada a declarar.

Com o tempo, em especial quando a literatura “se fez mais forte/ mais sentida”, como na canção do Peninha, tornei-me recluso. Durante determinada parte do dia, embora não seja aposentado, eu me dedico ao exercício da palavra escrita, feito agora acontece. À noite, para descontrair, armo uma rede e vou me entreter com a sétima arte. A essa altura, porém, já tenho tomado meu arsenal de remedinhos e aí acontece de eu deixar cerca da metade das cenas para a noite seguinte.

É isto. Não mais me sinto confortável ou à vontade nesses espaços muitas vezes barulhentos, com música ao vivo e pessoas falando alto ao mesmo tempo. É por essas e por outras razões que não boto meus pés na praia de Tibau nessa época do ano. Um empresário ricaço deste município chegou a me oferecer duzentos mil reais para que eu passasse o final de semana em Tibau, porém recusei.

Como dizia Camões: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Além de não mais ir a bares, lugares que se encontram cheios de homens vazios, segundo afirmou Vinicius de Moraes, habituei-me a viver só e a ter uma vida social mínima, com um pequeno número de amigos de fato verdadeiros.

Com isto não pretendo dizer que as pessoas que frequentam os referidos bares sejam inferiores ou vazias. Não. Tal frase, a meu ver, não passa de uma boutade do autor de “Pátria Minha”.

No momento, para que ninguém diga que veio a esta casa e não bebeu coisa nenhuma, tenho a oferecer um bom café numa residência novinha. Como a obra está nos acabamentos, não entrarei em detalhes. Mas Carlos Santos e Elias Epaminondas já cantaram a bola e disseram que devemos (regado a café) promover um sarau para inaugurarmos a casa.

Concordo e todos serão bem-vindos.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 05/02/2023 - 08:42h

Pequeno ensaio sobre a bondade

Por Marcos Ferreira

Vamos brincar de ser gentis?! Sim, gentis. Todos estão convidados. Não importa a cor da pessoa, a orientação sexual, a idade nem o poder aquisitivo. Quem sabe incorporemos a brincadeira e, sem que notemos, isso se instale em nossa alma como uma tatuagem invisível.

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Aprendamos, portanto, a ser mais fraternos e afetuosos com nossos semelhantes. Eu diria até que não somente com nossos semelhantes. Não. Pois há tantos animaizinhos por aí sofrendo, vagando nas ruas sem um lar, sem um tutor que lhes ofereça a mínima proteção e carinho. Brinquemos de ser amáveis. Provoco você a fazer parte dessa brincadeira inclusiva. Fazer o bem é tão salutar!

Por não possuir muita audiência nas redes sociais, uso este Canal BCS para propagar a minha mensagem agregativa. Que este Blog do Carlos Santos seja um fio condutor. Ultimamente eu me sinto assim: propenso a praticar a bondade, tornar minha existência uma ponte em vez de um abismo. Sinto a mais absoluta obrigação de ser benévolo com tudo e com todos à minha volta. Não é difícil, não custa nada ser amável, fraterno. E se custa é tão pouco que nem vale a pena calcular.

Venha! Não se deixe barrar pela inação ou timidez. Como antigas crianças que um dia todos nós fomos, embora alguns continuem crianças, troquemos nossa carranca, nosso ar sisudo por um sorriso de orelha a orelha. Sorrir também faz parte do processo de pacificação do espírito e do despertar daquilo que há de bom em nós. Eu mesmo, para ser franco, estou surpreso com minha repentina atitude em prol da paz e do amor entre todos os indivíduos. Pois é, nem sempre fui assim, voltado à resignação e à concórdia. Minha origem, minha fama, é de espadachim do verbo, atirador infalível sob a camuflagem das palavras de aço e fogo. Hoje, enfim, brinquemos dessa maneira. Porque isto, creiam, é algo bom, que infunde bonomia em cada um de nós.

Não tenhamos nojo, repulsa, àqueles que se encontram à noite dormindo sobre pedaços de papelão, rifados nas madrugadas de chuva ou de Lua, de estômagos vazios e cheios desesperança. Não joguemos, por exemplo, óleo quente sobre tais indivíduos. Não é desse tipo de banho que os sem-teto carecem. Não façamos tal barbaridade a ninguém. Abracemos seriamente a bondade. Experimente!

Aposto que você, tão logo pratique a caridade, há de se sentir mais leve, decerto livre daquele arraigado espírito de chumbo que nos torna cabisbaixos perante nossos irmãos, diante daqueles pobres-diabos que suplicam por nossa atenção, nossa misericórdia. Exercitar a bondade, ser ameno, repito, é algo possível, mesmo que a maior parte das pessoas desconfie do palavreado deste cronista e prefira não tomar parte nesse exercício que busca seriamente tornar a existência de outras pessoas menos sofrida.

Que sejamos benévolos sem tirar fotografias ajudando alguém com o celular na mão, fotografando tudo. Mas, se você não consegue realizar o bem sem expor essas pessoas, siga postando suas selfies nas vitrines do Facebook e do Instagram.

O importante, apesar da ostentação, é matar a fome dos necessitados, daqueles que certamente atravessam noites inteiras sem nenhuma comida. Brinquemos de ser justos, afáveis. A gentileza engrandece mais o cidadão bondoso do que a pessoa em situação de miséria. A vida, reparem bem, é muito bela e boa para todos nós que temos um teto, que podemos contar com amigos nas horas difíceis, pessoas que estão do nosso lado nos momentos alegres e nas situações mais complicadas.

— Isso é realmente uma crônica ou literatura de autoajuda?! — talvez alguém assim me fustigue no espaço reservado à opinião dos leitores. Que seja! Não tem problema. Pois se neste exato momento minha escrita for de autoajuda e ela ajudar alguém de algum modo, senhoras e senhores, eu já me sentirei recompensado. Isso, todavia, não vem ao caso. O que de fato proponho, aqui e agora, é que brinquemos seriamente de ser bons, que pratiquemos a gentileza sem olhar a quem, conforme está nas Escrituras. Pois há poucos com tanto e muitos sem nada (perdoem o jogo de palavras). Às vezes me pergunto por que tamanha desigualdade e falta de comunhão. Não pensemos que no apagar das luzes levaremos alguma fortuna para o sepulcro.

A frase não é minha, aviso logo, porém “gentileza gera gentileza”. Agradeçamos a dádiva de sermos o que somos e possuirmos um coração e uma mente que nos tornam superiores a certos animais. Mas não somos melhores, por exemplo, que um beija-flor ou um cãozinho abandonado. Apesar de tudo, graças ao Altíssimo, somos a espécie dominante. Apenas carecemos de praticar mais a bondade.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
segunda-feira - 30/01/2023 - 09:10h
Reflexão

Vida boa não é a dos outros

Carlos Santos olhando para página do Blog Carlos Santos no Notebook - madrugada de 02-04-20Ao contrário do que diz a sabedoria popular, vida boa não é a dos outros.

É a minha.

Amém!

Acompanhe o Canal BCS (Blog Carlos Santos) pelo Twitter AQUI, Instagram AQUI, Facebook AQUI e YouTube AQUI.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 29/01/2023 - 09:50h

Retalhos sentimentais

Por Marcos Ferreira

Centro de Mossoró (Foto de Manuelito/Arquivo)

Centro de Mossoró (Foto de Manuelito/Arquivo)

Hoje eu gostaria de dizer, apesar do esforço do nosso imberbe prefeito, que nossa província vai de mal a pior. Claro que o rapaz trabalha incansavelmente (o senhor prefeito), contudo é muita coisa errada para um só cristão consertar. Meus conterrâneos, juntamente com aqueles que esta cidade adotou e que aqui fazem desordem e fortuna, embora sejam minoria, transformaram nossa poética terra do sal e petróleo numa casa de recurso, num randevu onde muitos se relacionam promiscuamente.

Lamento trazer este assunto nevrálgico para este domingo azul e ensolarado.

As ruas continuam repletas de buracos. Os paralelepípedos do Conjunto Walfredo Gurgel, onde resido, por exemplo, estão na maior parte revirados. O Executivo passou o asfalto em uma determinada rua do bairro (não sei dizer qual foi o critério), porém o resto é uma buraqueira lunar, exibindo crateras do tamanho da Rússia, do Canadá ou China. Os governos pretéritos, é bom que se diga, deixaram uma batata quente nas mãos do atual prefeito, um abacaxi nada fácil para descascar.

Então, unindo nossa histórica desordem administrativa à vocação depredatória do povo (tanto os necessitados quantos os novos-ricos) esta comuna sofre nas mãos e sob os pés dos seus insensíveis habitantes, salvo exceções. O nosso rio, de tão massacrado pela poluição, é outra personagem desta aldeia que agoniza ante a inação dos políticos aboletados na Câmara Municipal. Até o novo prefeito, embora bem-intencionado, parece fazer vistas grossas a calamidade do velho rio. O município possui um aeroporto quase inoperante, utilizado bem mais por corujas e urubus.

Como diria Vinícius de Moraes, os bares estão cheios de homens vazios. As noites deste cafundó perderam a poética do histórico Cine Pax e entraram em cena os desfiles de carrões disputando estacionamento nos arredores de casas de pasto e no Partagem Shopping.

Somos, volto a frisar que há exceções, uma população que não se interessa por livros de fato literários. Até porque só restou em nosso meio cultural uma única e modesta livraria, instalada justamente no tal shopping.

Rapazes e moças de cabelos estilizados, a exemplo de gente de meia-idade, todos muito prafrentex, exibem as melhores roupas e assessórios nos bares e restaurantes mais badalados. À volta desses endereços está a tropa de flanelinhas auxiliando os motoristas a estacionarem seus possantes. Fico a imaginar o que seria de certos condutores não fosse o imprescindível papel dos guardadores de carros, todos na expectativa de descolar um trocadinho quando seus “clientes” decidirem voltar para suas residências absolutamente bem diversas daquelas dos referidos flanelinhas.

Nossa terra, como falei, já foi mais poética, prosaica, pitoresca. Agora, à maneira de grandes municípios, está semelhante a uma espécie de porco-espinho de alvenaria, isto a julgar pelo constante aparecimento de arranha-céus que brotam do chão perfurando nuvens e reduzindo a população de árvores, de edifícios históricos, tornando as fotografias do mestre Manuelito em retalhos sentimentais de um tempo oculto sob concreto armado.

Saudades daquele tempo que sequer vivenciei.

Mas nem tudo nesta crônica melancólica são choro e ranger de dentes. Também enxergo prosperidade. Há muita coisa positiva em meio ao capitalismo selvagem. Apesar das rasteiras e pancadas que já levei, amo este berço natal. Ainda tenho esperança de que os nossos políticos, entre os quais se encontram indivíduos de boa índole e comprometidos com o bem desta Macondo do semiárido, façam jus aos votos que receberam e trabalhem por um progresso igualitário para todos. A começar, quem sabe, tomando medidas efetivas para que salvemos o nosso padecido rio.

Espero verdadeiramente que esta terra encontre o seu ideal. Como na canção do Chico Buarque. Não podemos restaurar o passado, impiedosamente destruído, todavia é possível construir um futuro menos insensível e solidário.

Que plantemos outras árvores para compensar tantas que ceifamos em benefício do ferro e do concreto. Este município, cujo nome faço questão de omitir, todo mundo conhece e sabe que não estou aqui contando nenhuma lorota. Ao menos presumo que não.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 22/01/2023 - 13:34h

Confidências a Ferreira

Por Clauder Arcanjo

Foto de Marcos Ferreira (Revista Papangu)

Foto de Marcos Ferreira (Revista Papangu)

Agora habita o meu olhar 

noturno este vazio estranho, 

esta memória de chuva 

que descolore o pôr do sol, 

que emudece as palavras 

e silencia o chocalho das horas. 

Noturnos, os poetas se emudecem no silêncio das madrugadas, a fim de encontrarem a raiz poética, (re)encarnada na cumeeira do vazio.

Enquanto a cidade dorme, a poesia se apresenta, antes do nascer do sol, como oferenda legítima e mundana do (des)colorido atormentado da vida.

Pois não sou este espírito a esmo 

Que me busca entre sombras e abalos 

Na infinita procura de si mesmo. 

&&&

Os passos 

no corredor, 

a luz acesa. 

O perfume 

da inocência 

brincando 

entre as mãos 

pervertidas 

do vento. 

— Poeta Marcos Ferreira, há sempre em nós uma confissão tardia! — Assombra-se Carlos Meireles, entre palavras de pecado e farta remissão.

Eu olho para a parede alta e nua à nossa frente. Um fero obstáculo a nos usurpar da liberdade de flertar com a arquitetura das nuvens, de antever o bulício dadivoso dos arrebóis.

Apenas o céu 

emoldurado 

na janela, 

a tia nas orações 

— tateando 

o paraíso 

nas contas 

encardidas 

do rosário. 

&&&

Perdi meu romantismo. Não sou mais 

O amante, o cavalheiro, o menestrel 

— O ingênuo cantador de madrigais. 

O que se perde, Poeta, mais se nos (re)define. Defino-me mais pelo que abandonei, desrespeitoso com meus despojos, do que pelo que levo na algibeira das minhas certezas vãs.

Hoje, neste ranzinza habitáculo em que meu corpo habita, quero recobrar os meus românticos perdidos, mas o mundo, cruel engenho, já cuidou dos seus funerais.

A poesia só me encontra quando me perco, pecador por palavras, nos seus cruentos madrigais.

Estremeço à tua passagem 

e meu olhar de chumbo 

se afunda na ilusão movediça 

do teu colo de aromas. 

A tarde boceja envolta 

num pijama de arrebol 

e as últimas cardigueiras 

desaparecem na linha 

ensanguentada do horizonte. 

&&&

Ontem voltei à rua dos 

meus tempos de criança… 

O fantasma do amor imberbe 

atravessou-me num abraço diáfano. 

Sobre a laje negra do asfalto 

brincava o doido esqueleto 

do meu cavalinho de pau. 

A infância usurpa o nosso presente. De quando em vez, joga seus espectros em nossa frente. E, cabisbaixos e saudosos do ontem, caqueticamente, nos tornamos fantasmas do nosso passado.

Hoje, Poeta, esperarei a assombração do eu-menino com a roupa de homem, em frente à porta da frente. Se ele passar por mim e entrar… Bendito seja eu, Ferreira!

&&&

Acho que a velha casa 

dos meus sonhos mirins 

ameaçou um sorriso de janelas. 

Ainda hoje sonho com a velha casa de Licânia. Entre os meus, colhido pelos tipos da rua, recebi as minhas lições de maior valia. Na nossa rua, não havia pobres nem ricos, existiam amigos e amigas. Gente boa, gente crédula, gente simples.

Cresci e me formei. E o mundo, Poeta, depois de Licânia, só me deseducou; e, hoje, não sonho mais com o sorriso do nosso janelão da frente. Lições de menos-valia.

— E quando retornarás a Licânia?, você me indaga.

E Licânia algum dia saiu de mim?! Se tu te referes a este meu esqueleto, ele será plantado na terra que me viu chorar, e muito sorrir no peito.

Mesmo que a luz 

de nossas almas 

se apague e o tempo 

nos arraste para 

o mundo das sombras 

e da saudade, 

haverá sempre esta 

candeia de esperança 

ardendo na solidão 

lacrimosa do meu peito. 

&&&

Ontem concebi 

um poema 

bastardo. 

Cumpre-me agora 

escrevê-lo, 

pois larguei-o 

entre as águas 

do banho 

e ele se afogou 

na garganta 

escura do ralo 

Há versos concebidos na antevéspera do escarro; outros, na comunhão de um afago; alguns, não raros, no lusco-fusco da esperança. São raros os que resistem ao tempo, juiz cruel de muito enfado.

Não adianta te cercares das lições comezinhas dos vates de outrora, nem das homilias poéticas dos modernosos de agora, pois o poema, aprendiz de poeta, só se entrega (e se revela) a quem nunca o espera, e dele se torna um fiel escravo.

Um sopro de angústia vai movendo 

as dobradiças do silêncio. 

As teias do tempo se espalharam 

por todos os cômodos e móveis. 

Sequer o velho relógio de pêndulo 

reagiu à minha súbita presença. 

Vê, em frente ao teu espelho, o sopro lívido da tua última quimera se esvair por entre as nesgas do silêncio, e se acomodar nas engrenagens das horas extremas.

O mais é tudo sombra e frialdade. 

&&&

É tarde… Um galo canta no vizinho. 

Então ele retorna e continua 

Os versos que deixou pelo caminho. 

Levanta, Marcos, os raros leitores de poesia aguardam o recital do teu soneto esquecido na última tarde. O primeiro quarteto, em alexandrinos perfeitos, ultrajava a dor que te tornara forte; o segundo, rimado e bem urdido, decantava a flor que tu havias tido; o primeiro terceto, arejado e reverente, tecia a família que, de ti, se orgulhava. Já a última estrofe, Poeta, toma cuidado!, pois daqui antevejo o traquinas Chico de Neco Carteiro a tentar escandir-lhe os versos, com sua voz rascante de augusta e rutilante matraca.

É de lábios 

e línguas 

este anseio 

que deriva 

da curva 

do teu medo 

e se gruda 

nos fios 

do silêncio. 

Na curva do arremedo, os poetastros cevaram os espectros dos seus pretensos poemas. De paletó e gravata, cercados de muitos festejos, eles se esqueceram de convidar a musa humilde.

Acharam, por certo, que, para eles, não havia segredo. Cumularam-se de saberes, outorgaram-se detentores de uma fama de araque… e se defrontaram, fatal desencanto, com o “poema” oco, perdido na tepidez funérea do vazio.

Abracei-a com força, mas não creio 

Ter podido prendê-la muito assim… 

Ela foi e eu fiquei ali no meio 

Do silêncio noturno do jardim. 

No silêncio da noite, sem a algaravia dos falsos arpejos, aprendi que a graça da poesia só nos alumbrará se riscada em laivos transparentes, pendidos, com a força solfejante da cola de uma mísera rima, sob a platitude lírica do abismo.

Não te maldigas pela sorte escassa 

Nem pela vida muita vez tão dura… 

Aqui no mundo nada sai de graça, 

Ainda mais quando se tem ternura. 

Quando a última ternura me caiu no colo opresso, nem percebi quando se deu tão sublime esmola, obrou-se o milagre de me ver em festa, quando todos lá fora se consumiam em desenganos.

E, se ao fim e ao cabo, tu, ternura, me tornares imprestável para a lida cotidiana, só me restará a lira… e a sina malsinada de me fazer poeta.

Hoje amanheceu bonito 

Como fosse primavera… 

Sem metáforas de sombra, 

Nem pedaços de quimera. 

&&&

Declaro, para todos 

os fins que se fizerem 

necessários, que não possuo 

bem algum neste mundo 

em que os homens 

declaram a guerra 

e sonegam a paz 

E tu, Marcos Ferreira, cuida de assinar o teu último armistício poético; eu, por aqui, rabiscarei o testamento do meu degredo.

Entre os fulgores da morte, as sonegações da paz, nós, tortos poetinhas, finalizaremos o nosso espólio, declarando fé no amanhã, apesar do risco de sermos fuzilados por isso.

No coração da noite segue uma tristeza 

Com passos muito lentos e desmotivados 

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro A hora azul do silêncio, de Marcos Ferreira. — 2ª edição — Mossoró: Editora Verboletras, 2016.

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras

*Texto originalmente publicado na revista Papangu

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 22/01/2023 - 11:24h

O nível do policial

Por Marcelo Alves

Arte: Breaker Maximus

Arte: Breaker Maximus

Vou tratar hoje de dois assuntos controversos nas letras. A questão do gênero ou da tipologia da literatura, que é bastante controversa. Grandes obras normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Eu já acho que essa classificação é possível. Reconheço que uma das minhas literaturas preferidas, a literatura policial ou detetivesca, como literatura de massa, é um gênero bem definido. E aqui eu chego à segunda controvérsia, na qual me deterei amiúde: a literatura de massa, popular, como a dos romances policiais, pode ser uma “alta” literatura?

Houve um tempo em que a divisão entre “alta” e “baixa” literatura era visível ou ao menos reconhecida/propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), é “possível traçar uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função. O comum mesmo é citar, a título de fundamentação, as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade e são caracterizadas pela trivialidade do texto. Pode acrescentar-se, no entanto, a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção. Mas são critérios incertos e discutíveis. (…) O fato é que as pegadas das obras arroladas nesse gênero podem ser acompanhadas a partir do século XVIII. A evidente divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Todavia, sobretudo a partir do começo do século XX, os territórios da “alta” e da “baixa” literatura se expandiram causando uma mistura entre os seus conjuntos. Como explica Szabolcsi, “de um lado, porque a vanguarda destrói os limites estabelecidos entre a arte ‘elevada’ (de elite) e a ‘inferior’ (popular), de outro, porque, em função de causas técnicas e comerciais, cresce o número de obras culturais modernas que, empregando as conquistas da literatura ‘superior’ e assimilando-lhe a cosmovisão e as técnicas, passam a prometer leitura rápida e leve, diversão e esquecimento. O best seller, o êxito de livraria, não é simplesmente uma leitura soporífera e dissuasiva. Frequentemente, representa correntes formativas e excitantes, que conquistam grande parcela de leitores-consumidores”.

Já tratei até desse tema e citei Graham Greene, Morris West e John Le Carré, escrevendo aventuras, thrillers, policiais ou romances de espionagem, como perfeitos casos de best-sellers que realmente escreviam bem.

O que dizer da qualidade dos precursores do romance policial? De Edgar Allan Poe, por exemplo, “com sua reconstrução intelectual dos crimes”? Na verdade, depois de outros precursores do século XIX, como Émile Gaboriau e Maurice Leblanc, a leitura do policial assiste “ao surgimento de clássicos como Conan Doyle e Edgar Wallace e, a partir dos anos 30, com Agatha Christie e Georges Simenon. Tornam-se parte integrante da literatura, em face das exigências de um amplo círculo de leitores, que deseja a sobrevivência do romantismo dos bandidos e mostra-se ávido da investigação e das emoções da adivinhação dos enigmas.  Tanto é verdade que, a seguir, instalam-se profundamente na estrutura literária, a ponto de obras ‘elevadas’ passarem a fazer uso dos recursos e das máscaras do romance policial. Primeiro, com G.K. Chesterton; depois, com Grahan Greene, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch e o nouveau roman francês, a ponto de diluir, aqui também, as fronteiras entre os dois estilos”.

E podemos citar outras referências do século XX, como Dashiel Hammett e Raymand Chandler, suprassumos do policial noir, ou Erle Stanley Gardner, que nos dá o tipo jurídico do advogado-detetive, com o seu Perry Mason. E por aí vai.

Na verdade, para mim, não existe uma barreira intransponível à literatura de massas, em especial à literatura policial/detetivesca, ao país da “alta” literatura. Desconfio de Tzvetan Todorov quando afirma (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003): “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”.

Acredito que faz os dois. E dou como exemplo definitivo Umberto Eco. Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 22/01/2023 - 10:24h

Poema do bicho gente

homem e macaco - site provérbio e frasePor François Silvestre

Não há bicho mais sabido

do que gente.

Não há bicho mais estúpido

do que gente.

Não há bicho mais covarde

do que gente.

Não há bicho mais valente

do que gente.

Não há bicho mais odioso

do que gente.

Não há bicho mais amoroso

do que gente.

Não há bicho mais parecido com bicho

do que gente.

Não há bicho mais diferente de bicho

do que gente.

 

De tantas diferenças e semelhanças

por que não imitar os bichos,

No que eles têm de copiar?

 

Imitar formigas,

carregando em grupo folhas para os bivaques.

Imitar abelhas,

inventando o doce no sabor do mel.

Imitar borboletas,

no voo livre de vida breve.

 

Se for pedir demais,

imitar o jumento.

E rinchar de ira, sem perdão,

Nas grotas sangrentas da civilização.

François Silvestre é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Poesia
domingo - 22/01/2023 - 09:46h

A velhinha de bicicleta

Por Marcos FerreiraA velhinha de bicicleta

Algumas vezes me lamentei, no mais de forma íntima, por não possuir certas coisas e precisar me expor a certas situações. Todavia, por comodismo ou trapaça do destino, sempre vivi monasticamente, porém com o mínimo de dignidade. Disponho de uma saúde claudicante, é verdade, mas a minha dieta de psicotrópicos me mantém nos trilhos, apesar do efeito colateral do sobrepeso. De um modo ou de outro, enfim, pude contar em muitas ocasiões com a mão amiga de várias pessoas, figuras que considero irmãos de espírito e de coração. Nem todos podem contar com isso.

No Centro de Mossoró, como se estivesse indo em direção ao Alto de São Manoel, avistei aquela senhora de óculos e cabelos totalmente brancos em sua bicicleta, uma Monark verde-claro com para-lamas vermelhos, cujo ano não ouso presumir. De tão usada, a tal bicicleta pareceu-me ter a mesma idade da sua condutora. Isto é, cerca de setenta anos ou mais. Naquele horário de pico, então, com o trânsito agitado e perigoso, a brava mulher se deteve no semáforo na lateral da Riachuelo.

Eu batia pernas pelo comércio em busca de orçamentos para a aquisição de materiais hidráulicos para a minha casa (tudo pela hora da morte!) e deparei com essa idosa guiando sua antiga Monark. Isso me desconcertou. Por força da necessidade, obviamente, eis que uma pessoa como Maria do Socorro (vamos chamá-la assim) via-se forçada a se arriscar em meio a carros e motocicletas, exposta à falta de zelo e cuidado para com uma ciclista frágil, e decerto já sem os reflexos e a desenvoltura nos pedais quanto um indivíduo jovem. Maria do Socorro me pareceu ofegante.

De roupas comuns, trajava um short ou saia azul e uma blusa laranja desgastada, essa anônima personagem em meio ao trânsito feroz me dava a impressão de que seria abatida, derrubada a qualquer momento. Imaginei o quanto melhor seria se ela dispusesse de alguém mais jovem para acompanhá-la (quiçá num veículo motorizado) até o destino de seu interesse. Contudo, infelizmente, ali estava a referida velhinha Maria do Socorro se aventurando, sujeita a qualquer tipo de acidente.

Que Nossa Senhora dos Idosos a proteja!

Seu rosto, o de Maria do Socorro, tinha um aspecto humilde, resignado, cara de quem enfrenta outras privações e riscos em sua vida de mulher pobre e provavelmente integrante de família tão carente quanto ela. Sim. Duvido mesmo que alguém como Maria do Socorro, rifada em meio ao rio metálico de automóveis e motos apressados, estaria pedalando naquelas condições se tivesse outra opção. Eu próprio, que tenho menos futuro que passado, não gostaria de viver tal experiência. Não me vejo aos setenta anos ou mais guiando uma bicicleta em meio a tantos perigos.

Quando criança, por volta dos dez ou doze anos, eu suspirava por uma bicicleta, mesmo que fosse velinha como a senhora Maria do Socorro. Meu coração palpitava, sobretudo quando eu via aquele antigo comercial de televisão que dizia o seguinte: “Não esqueça a minha Caloi!” Quem lembra disso? Mas só pude adquirir uma bicicleta quando comecei a trabalhar de sapateiro, economizando cada tostão, e tive a minha carteira profissional assinada com meus quinze anos de idade.

Quem será Maria do Socorro? Qual o seu verdadeiro nome? Onde será que mora Maria do Socorro? Aquele cabelo de um branco encardido, os braços e pernas já bambos, flácidos, entre outros detalhes, infundiram ao meu coração um súbito sentimento de fraternidade. Por que não a interceptei e não me ofereci para ir guiando sua bicicleta, levá-la ao seu destino? Entretanto estanquei na esquina do extinto Cine Pax e deixei que Maria do Socorro fosse embora sozinha em meio aos carros e motos, correndo o risco de ser atropelada, derrubada no asfalto áspero e quente.

Que Nossa Senhora dos Idosos a proteja!

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 22/01/2023 - 08:44h

Padre Sátiro Dantas, um escravo da causa da educação

Por Marcos Araújo

Hoje, 22 de janeiro, data que a igreja católica venera São Vicente de Saragoza, e o evangelho do dia narra o episódio em que Jesus arregimenta os seus principais apóstolos, a cidade de Mossoró eleva um coro uníssono de preces de louvor e gratidão a Deus pelos 93 anos de vida de Padre Sátiro.Pe. Sátiro comemora 66 anos de Ordenação Sacerdotal

Nascido do casal João Fernandes Dantas e  Erondina Cavalcanti Dantas na cidade de Pau dos Ferros no ano de 1930, pisou em solo mossoroense, no dia 09 de fevereiro de 1943, há quase 80 anos, fazendo desta cidade o seu lar definitivo. Sua prelazia conta-se em décadas, pois foi ainda em 1955 que assumiu a Capela de São Vicente, e o exercício da docência por quartéis de séculos, já se contando quase três o tempo de ensino entre a Universidade e a direção do Colégio Diocesano.

Pode ser dito que ao longo da sua existência foi um escravo – no sentido bíblico da palavra e na exegese sociológica da dedicação – da educação. Desde o chamado “Colégio Normal” (Centro Educacional Jerônimo Rosado), onde lecionou por quase duas décadas (1956-1974),  à UERN, em que se contam quase quatro décadas (1966-2002), sua vocação sacerdotal foi compartilhada pela vivência cristã da formação humana e profissional de milhares de alunos. Eu fui seu aluno, no curso de Direito, da disciplina de Filosofia.

No mesmo passo em que ensinava, se prodigalizava na defesa e empenho de criação de uma dezena de pequenas escolas, a princípio custeada com dinheiro de doações voluntárias, para depois serem incorporadas ao serviço público de ensino. Podem ser citadas a 13 de Junho, o Colégio Centenário, o Instituto Dom Costa, a Creche-escola Erondina Dantas, a Escola Padre Sátiro, transformando pela educação a realidade social adversa da pobreza de centenas de famílias.

NO TEMPO em que se apostava apenas no trabalho como fonte de produção de riquezas, ele defendia a formação como melhoria profissional. Por isso se diz que ele foi um visionário e um revolucionário social neste Estado. Quando a “FURRN” era uma fundação municipal e cada prefeito que assumia se lamentava pelo gasto e a despesas com a formação universitária, ele assumiu a briga pela estadualização. Tinha em mente a frase pronunciada pelo advogado e educador Derek Bok, ex-aluno e ex-presidente da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos: “Se você acha que investir em educação custa caro, experimente o custo da ignorância”.

Até dentro da Igreja ele operou para que os sacerdotes não fossem meros replicadores de orações. A partir de sua influência, Dom José Freire – e depois Dom Mariano – fincaram como propósito administrativo a remessa do nosso clero à Itália em busca de pós-graduações e aperfeiçoamentos do pensamento crítico.

Padre Sátiro é um escravo da causa da educação, sendo ele um tanto paulino (para lembrar o apóstolo Paulo) nesse mister. Na carta à comunidade de Corintos, Paulo confessa que (c1,v19) “embora seja absolutamente livre de todos, fiz-me escravo de todos, para ganhar o maior número possível de pessoas.”                               

Seu valioso contributo como sacerdote e educador ficará registrado na história da Diocese de Mossoró e do Rio Grande do Norte. Nas palavras de Padre João Medeiros, seu fiel e genial amigo, cuja reprodução é necessária, à vida de Padre Sátiro Cavalcanti Dantas cabem bem os versos de Dom Carlos Alberto Navarro, inspirados no Salmo 23/22: “Sou bom pastor, ovelhas guardarei, não tenho outro ofício nem terei, quanta vida eu tiver, eu lhes darei”.

Parabéns, Padre Sátiro, pelos seus 93 anos de vida em favor do próximo e da Igreja de Cristo!

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
sábado - 21/01/2023 - 10:14h
Moderação

As mães são aristotélicas

MÃE-E-FILHONossas mães são aristotélicas e não sabem:

– “Tudo demais é veneno,” Carlinhos.

Tá.

Acompanhe o Canal BCS (Blog Carlos Santos) pelo Twitter AQUI, Instagram AQUI, Facebook AQUI e YouTube AQUI.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 15/01/2023 - 06:52h

Começos arrebatadores

Por Marcos Ferreira

Como você decide qual a primeira palavra a ser escrita? Ouvi esta pergunta recentemente e não me lembro quem me fez tal indagação. Talvez eu a tenha lido em algum lugar. Ou foi por telefone, em conversa com algum amigo ou amiga cujo nome, infelizmente, não me recordo para lhe dar o merecido crédito. Minha memória, repito, é firme quanto um Sonrisal num copo d’água.Livro, escrita, crônica, literatura

O fato é que a primeira palavra, às vezes uma simples letra, um artigo masculino ou feminino, é responsável por todo o texto que está por vir. Sem essa largada, continuamos no zero, a página inteira em branco. Portanto, trata-se do gatilho, da espoleta, da fagulha que vai libertar todo o pensamento represado. No mesmo grau de importância considero o primeiro parágrafo de um texto. Poucos são os leitores que seguem adiante após um início de história ruim ou medíocre.

Como um anzol, digamos, você precisa fisgar o leitor já na largada, no comecinho da sua página. Esta que vemos em curso, por exemplo, também se submete aos ditames em questão: tem que atrair o interesse do leitor logo na saída. Dificilmente, numa livraria qualquer deste país e do planeta, o sujeito levará para casa uma obra que não conheça, a menos que se agrade do princípio.

Claro que isso de fisgar o leitor nas primeiras linhas é muito relativo. Em vários casos, ou na maioria deles, depende do gosto de cada pessoa por determinado estilo ou gênero literário. Mas vamos supor que você acabou de entrar numa livraria e, com grana para comprar apenas um livro, está a fim de adquirir algo novo, um autor e obra desconhecidos. É aí, pois, que o efeito azougue da escrita vai fazer a diferença, seja num romance, livro de contos, crônicas ou poemas.

Tem que ter aquela mensagem imantada, engenhosa, ou no estilo arrasa quarteirão. Seja por meio de uma frase poética, metafórica, ou através do velho recurso de tentar arrebatar o leitor à custa de um introito chocante, por vezes na forma de violência, como num disparo de arma de fogo, alguém que se lança do alto de um arranha-céu ou se enforca. Enfim, um cadáver já no abre-alas.

— Meu Deus! — podem se persignar.

A literatura nos oferece mil e uma possibilidades de narração de uma história utilizando o recurso de impactar o leitor. Sobretudo quando se trata de prosa fictícia, em particular nos romances e contos. Há autores, nacionais quanto estrangeiros, que praticamente escrevem com sangue as suas narrativas carniceiras, como Rubem Fonseca e Stephen King, para citarmos apenas dois. Outros nos atordoam pela surpresa e conteúdo insólito, feito o escritor tcheco Franz Kafka.

Para mim, que tenho verdadeiro horror a baratas, essa largada de A Metamorfose é um dos começos de novelas mais assustadores e inescapáveis da literatura: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Embora sem especificar o tipo de inseto, a descrição da barata é imagética e repugnante.

Um dos começos de livros mais aplaudidos, e merecidamente, é o do clássico Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. Diz ele: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. E quem pode resistir e não seguir em frente na leitura após se deparar com as primeiras linhas de romances como Insônia e São Bernardo, do mestre Graciliano Ramos?

Não terem dado um Nobel a Graciliano foi uma grande injustiça, posto que tantos autores discutíveis levaram tal prêmio da academia sueca. Temos aqui, em solo tupiniquim, inclusive entre meus contemporâneos, literatura de alto nível. Outro gênio da prosa de ficção, o nosso insuperável Machado de Assis, abre o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas com um parágrafo arrebatador:

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo”. Simplesmente genial!

Assim como o romancista, o contista e até o poeta, o cronista precisa fazer valer o seu reflexo de pescador. O peixe a ser fisgado, claro, é o leitor. A crônica deve ser atraente desde o título, que é o coadjuvante da isca, ou seja, as primeiras linhas. Ao contrário do que se dá com os livros nas livrarias, as crônicas expostas nos periódicos não contam com o chamariz de uma capa bonita.

— Mas ilustramos — dirá meu editor.

Sim. Porém o prezado leitor e a gentil leitora, que nem sempre concordam que uma imagem vale por mil palavras, esperam um texto que lhes salve o domingo (eis o nosso compromisso) da banalidade das páginas meramente jornalísticas, tão difundidas ao longo da semana. Deseja-se, então, que o cronista tenha algo de invulgar a oferecer, uma mensagem ou história (nem precisa ser real) que caia suave como os primeiros goles daquele café escoteiro tomado bem cedinho.

Daí a importância, num espaço tão eclético e ilustrado quanto o Canal BCS (Blog Carlos Santos) de nós cronistas botarmos a cara aqui todo domingo com uma narrativa capaz de atrair e manter o leitor interessado no que temos a contar. Tal conquista, volto a recordar, parte desde o título, mas, principalmente, ganha impulso a partir de um primeiro parágrafo de fato sedutor, cativante.

Isto significa que o final nem carece ser tão apoteótico ou estrondoso como um toque de gongo, contudo o leitor não costuma abrir mão de um começo arrebatador, envolvente. É aí, no mais das vezes, que está o sucesso ou fracasso do seu texto, seja ele um romance, um conto, uma crônica e até um poema mais longo. Você, por uma razão ou por outra, permaneceu comigo até este momento, e há de concordar com o meu raciocínio. Acredito, portanto, que iniciamos bem.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 08/01/2023 - 09:30h

Sábio Francisco

Por Marcelo Alvesdo argueiro no olho do próximo e da trave no nosso - hipocrisia, leviandade, julgamento, injustiça

Outro dia, em Natal/RN, cascavilhando as livrarias católicas da Cidade Alta, acabei adquirindo uma edição de bolso de “Filoteia, ou introdução à vida devota” (Editora Vozes, 2021), do grande São Francisco de Sales. Ando, vez por outra, xeretando o pequeno grande livro.

Para quem não sabe – e é fundamental não confundir os vários santos Franciscos, o de Assis, o de Paula, o Xavier e por aí vai –, “São Francisco de Sales nasceu aos 21 de agosto de 1567. Foi ordenado sacerdote em 1593 e em 1602 foi consagrado bispo de Genebra, onde trabalhou até sua morte. Faleceu em 1622, com 55 anos de idade. Foi canonizado em 1665 pelo Papa Alexandre VII, e nomeado Doutor da Igreja por Pio IX. Em 1923 Pio XI o declarou Padroeiro da Boa Imprensa e dos jornalistas católicos”. Li isso já na contracapa do meu exemplar.

Filoteia é um livro que carrega muita sabedoria, embora escrito há vários séculos e por um homem cuja fé em seu Deus condicionava sempre o sentido dos seus próprios juízos. É um livro que devemos ler hoje adaptando às nossas circunstâncias de tempo e lugar, claro.

Peguemos logo dele um exemplo marcadamente jurídico, que gira em torno da passagem bíblica “Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados” (Lucas 6:37). Quanto a ela, afirma São Francisco de Sales: “Oh! Quantos juízos temerários desagradam a Deus! São temerários os juízos dos filhos dos homens, porque não são juízes uns dos outros, e, julgando, arrogam-se o direito e o ofício do Nosso Senhor”. E mais até: “Então nunca podemos julgar o próximo? Nunca, Filoteia; mesmo nas sentenças do tribunal humano é Deus quem julga. É verdade que são os juízes que aí aparecem e fulminam a sentença, mas eles são apenas os ministros e intérpretes de Deus e nunca devem pronunciar um juízo que não seja segundo a sua lei, e suas sentenças são os seus próprios oráculos”.

Esses “juízes dos tribunais humanos” nunca devem se afastar da lei de Deus, “seguindo suas paixões”, é o que recomenda o santo, até para não serem, eles próprios, os juízes, também julgados. Se substituirmos Deus por Constituição/Legislação, que lição de direito temos. Meditemos! Todos!

Eis mais um trecho de Filoteia, que também se relaciona com o direito, desta feita interpretando a passagem bíblica “do argueiro no olho do próximo e da trave no nosso” (Mateus 7:3-5), uma das famosas denúncias à hipocrisia/injustiça humana:

“Nós costumamos acusar o próximo pelas menores faltas cometidas e a nós mesmos nos escusamos de outras muito grandes. Queremos vender muito caro e comprar o mais barato possível. Queremos que se faça injustiça a outros e que se façam graças a nós. Queremos que interpretem as nossas palavras benevolentemente e com o que nos dizem somos suscetíveis em excesso. (…). Defendemos com acurada exatidão os nossos direitos e queremos que os outros, quanto aos seus, sejam muito condescendentes. Mantemos os nossos lugares caprichosamente e queremos que os outros cedam os seus humildemente. Queixamo-nos facilmente de tudo e não queremos que ninguém se queixe de nós. Os benefícios ao próximo sempre nos parecem muitos, mas os que os outros nos fazem reputamos em nada. Numa palavra: nós temos dois corações, como as perdizes da Plafagônia; um, doce, caridoso e complacente para tudo que nos diz respeito, e outro – duro, severo e rigoroso para com o próximo. Temos duas medidas, uma para medir as nossas comodidades em nosso proveito e outra para medir as do próximo, igualmente em nosso proveito”.

E, para superar essa hipocrisia ou injustiça, São Francisco de Sales vaticina: “Filoteia, sê igual e justa em todas suas ações. Toma o lugar do próximo e põe-no no teu, e sempre julgarás com equidade. Ao comprares, põe-te no lugar do vendedor, e, em vendendo, no lugar do comprador, e teu negócio será sempre justo”.

O Santo, mesmo que de forma rudimentar, antecipa o imperativo categórico kantiano (que é mais sofisticado, em explicação, âmbito e consequências, por óbvio), imperativo esse que relutamos, todos, até hoje, a razoavelmente exercer. E eu assim apenas repito: sobre a Bíblia, São Francisco de Sales e Kant, meditemos! Todos!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
  • San Valle Rodape GIF
domingo - 08/01/2023 - 09:00h

Paulo Maia

Por Honório de Medeiros

Da esquerda para a direita de quem olha: Fred, Paulo Maia, Hélton, eu, Fernando Negreiros, Segundo Paula, Lenilson, Anchieta, Delevan, Jânio Rêgo. Turma da Quarta Série Ginasial, 1972, Colégio Diocesano Santa Luzia, reunidos em 2011 (Foto: arquivo do autor)

Da esquerda para a direita de quem olha: Fred, Paulo Maia, Hélton, eu, Fernando Negreiros, Segundo Paula, Lenilson, Anchieta, Delevan, Jânio Rêgo. Turma da Quarta Série Ginasial, 1972, Colégio Diocesano Santa Luzia, reunidos em 2011 (Foto: arquivo do autor)

Paulo Maia dizia que era baixinho por minha culpa: eu tinha roubado o leite dele, quando recém-nascido.

Tudo porque eu nasci três dias depois do 23 de abril de 1958, no qual ele veio ao mundo, ambos na Maternidade Almeida Castro, em Mossoró.

Como mamãe não conseguia matar minha fome com seu pouco leite, valeu-se da generosidade da mãe dele, Manolita Pereira, que nos alimentou.

Manolita diz que é minha mãe de leite. Eu respondo, sempre respondi, que eu e Paulo tínhamos que ser irmãos, estava escrito no livro da vida, e beijo a mão dela, reverente.

Entre idas e vindas, altos e baixos, seguimos próximos vida afora, sempre próximos. Amigos desde a maternidade.

Ontem (05/01/2023 – veja AQUI), eu lá pelas bandas de São João do Sabugi, muito longe, em busca das misteriosas raízes genealógicas do meu avô paterno, acordo cedo, abro o celular, e leio a notícia de sua morte.

Um baque. Boto o carro na estrada e venho mudo, de lá até Mossoró, rasgando o centro do Estado, percorrendo um mundão de terra.

Uma espécie de solidão amarga, ensimesmada, uma onda de tristeza que teima em vir, toma conta da gente. Sensação de impotência. Solidão, tristeza e impotência.

Falam que há conforto na partida de alguém que lutou bravamente por dois anos contra essa maldita doença cujo nome, amedronta tanto, que o abreviaram.

Pode ser. Sei que lutou ele, a esposa, filhos, a família toda, os amigos, os amigos dos amigos. Rezamos muito. Luta vã. Que seja feita a vontade de Deus.

Descansou, então, e por fim.

E a saudade?

Paulo, você se lembra daquele dia no qual Antônio de Bé nos levou em sua jangada, começo da madrugada, para além da última visão de terra, como companheiros de pescaria?

Lembra das tardes de cerveja e Belchior, lá no Asfarn, em Natal?

Lembra dos veraneios em Tibau? Do jipe, das meninas, dos amigos comuns, das pescarias no Arrombado?

Do Diocesano e da turma da quarta série ginasial de 1972?

Lembra como decidimos, junto com Delevam, quem seria o padrinho de Paulinha?

Lembra daquele dia no qual fomos barrados na ACDP?

Lembra daquele dia… melhor não contar, não é?

Ê Paulo, são tantas e tantas memórias. Um dia eu conto para meus sobrinhos! As que eu puder, claro.

Ei, Paulo, aguarde aí. Um dia, chego.

Descanse em paz, meu irmão.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
domingo - 08/01/2023 - 08:22h

Incômodo retrato

Por Marcos Ferreira

Já bati nessa tecla. Creio que umas três ou quatro vezes. Sim, escrevi sobre este velho tema, incômodo retrato que muitos fingem que não existe, que não enxergamos. Miopia esta, cegueira social, que se verifica com menor gravidade ou exceção quando estamos às portas do Natal ou às vésperas do ano-novo. Aí um cristão ou outro amolece o pétreo coração e estende a mão aos necessitados.

Ilustração Incômodo Retrato 1Noite dessas, debaixo de uma chuvarada, avistei aquele farrapo humano com a filha miúda sob a rala folhagem das árvores do canteiro defronte ao Cemitério São Sebastião. A mulher se aventurava a pedir algum tipo de auxílio aos motoristas em seus carros de luxo quando o semáforo vermelhava. Dificilmente um condutor baixava a janela para ofertar um trocadinho ou migalha de comida àquela desvalida tragada pela desigualdade social que grassa por este suposto país do futebol, pátria de beócios podres de ricos que se dão ao acinte de comer bife com pó de outro.

“Ah, mas os imbecis podres de ricos não têm nada a ver com a desigualdade social desta pátria de contrastes gritantes”. Alguém dirá algo assim com o nariz empinado. Nariz merecedor de um punho com cinco dedos bem fechados. E reparem que não sou propenso a esse tipo de rompante. Bom, mas os boçais não precisam afrontar nem fazer pouco-caso das barrigas que mendigam um pedaço de pão.

Há quem diga, imaginem só, que esses indivíduos em situação de rua ou abaixo da linha de miséria estão nessa vida porque querem ou, pior ainda, porque fizeram por merecer. Talvez alguns indivíduos com tendências autodestrutivas afundem na sarjeta por livre e espontânea vontade, contudo não é essa a realidade dos milhões de brasileiros que passam fome nesta nação, gente sem um teto, dormindo sobre bancos de praça, sob marquises e viadutos. Não, senhoras e senhores bem-nascidos, bem de vida. Ninguém, em sã consciência, degenera e escolhe o fundo do poço.

— Mas a culpa não é dos nossos craques.

Todavia não custa nada, e se custa isso representa não mais que uma merreca, que esses senhores futebolistas podres de ricos, insensíveis à penúria dos brasileiros (salvo exceções) sejam menos escrotos e assumam um mínimo papel no combate à miséria que degrada tantos indivíduos que, inclusive, os enxergam como ídolos, como mitos. É isto. Grande parte do povo idolatra quem os despreza.

Então, por volta das vinte horas, sob a chuva, lá estava a jovem mãe com sua filha pequenina, ambas expostas ao frio e à humilhação que a aguda pobreza as submetia. Um motociclista parou a moto, desceu e entregou uma cédula de não sei quanto à mendiga. O semáforo ficou verde logo em seguida e alguém num carrão chique atrás do motociclista buzinou todo irritado porque a moto do jovem estava à sua frente obstruindo a passagem. O motorista deu ré no possante e foi embora cantando pneus. Não duvido de que seu desejo fosse o de atropelar o rapaz benfeitor.

Portanto, senhoras e senhores, eu não sei fazer de conta que essas histórias não acontecem diariamente por aí, bem debaixo dos nossos narizes empinados, e fingir que nada estou enxergando. Da minha parte, como eu não posso fazer muita coisa em favor dessas pessoas, exponho aqui, embora para o desgosto de poucos leitores, pois há exceções, esse incômodo retrato da vida como ela é.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica
Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.