domingo - 21/08/2011 - 08:55h

O “esperto” na politiquinha

Por Honório de Medeiros

Meu amigo Fulano me disse que tinha se aposentado da política. “Como assim?”, perguntei-lhe. “Quer dizer que não vai mais exercer qualquer cargo público?” “E se seu candidato voltar ao Governo?” Meu amigo, que foi do segundo ou terceiro escalão do governo de um dos estados vizinhos (claro!) abriu um sorriso matreiro e respondeu condescendente: “eu não quero mais cargo nenhum, mas vou ajudar meus amigos porque você sabe como é, tenho filhos para criar, e no nosso mundinho só vai p’ra frente quem se dá bem com os ômi”.

Meu amigo Fulano é um homem esperto, dentro daquela categoria que o finado ex-padre Zé Luiz genialmente criou lá pelo começo dos anos 80. Dizia Zé Luiz, e ele nunca aceitou essa história de ex-padre – “uma vez padre, sempre padre” – que há dois tipos de homens, que merecem atenção: os inteligentes e os espertos. E para ilustrar sua tese elencou, em sua coluna dominical no Poti, de um lado os espertos, do outro, os inteligentes. Não é preciso dizer o rebuliço que essa crônica causou na província.

Pois bem, meu amigo Fulano é um homem esperto. Não tem o vôo dos condores, quando muito dos galináceos, mas sabe evitar uma panela e enxerga bem além dos seus passos curtos. Em certo sentido, jamais admitido nem por ele, nem por quem lhe fornece o meio para sobreviver, é alguém que vive de expedientes: ajeita aqui, ajeita acolá, facilita p’ra um, dificulta p’ra outro, se torna da cozinha do poderoso, na qual chega na hora do café-da-manhã trazendo as últimas novidades e os próximos pedidos.

Duvido que na atual estrutura de Poder na qual vivemos a política nossa de cada dia, em tudo e por tudo idêntica a dos nossos ancestrais, se diferenciando apenas quanto à aparelhagem tecnológica utilizada – antes era a cavalo que a informação seguia, hoje é via Email – o coronel com saias ou sem elas possa viver sem esse tipo de agregado.

Ele é imprescindível para as pequenas coisas: pequenos delitos – é incapaz de pensar os grandes; aliás, é incapaz de pensar, quando muito reage: seu destino é pequenas confidências, pequenos favores, pequenas difamações e/ou injúrias, algumas torpezas, cumplicidade nos vícios, solidariedade nos acidentes de percurso, desde que não afetem sua sobrevivência…

É capaz de grandes bajulações, aceita ser o bobo-da-corte do seu senhor feudal – se considera até honrado em ser alvo de brincadeiras nas quais sua intimidade é exposta publicamente -, quando não, é capaz de desforço físico na defesa da bandeira que empunhou o que o tornará, sem sobra de dúvidas, alvo de muitas e variadas homenagens prestadas nas hostes do “exército” ao qual pertence. Não por outra razão meu amigo Fulano está fadado a morrer feliz posto que realizado na medida em que encaminhar, através de sua rede de amigos granjeados a partir da troca de favores recíprocos, e da benção do chefe político, os seus rebentos.

Não lhe digam que hoje só é possível entrar na administração pública através de concurso. Há sempre um caminho para encontrar uma torneira aberta: cargo em comissão, gratificação, empresa de construção de fundo-de-quintal, licitações manipuladas, consultorias e assessorias. “E os concursos públicos, esses, há, nem lhe conto” me disse ele.

Meu amigo Fulano somente precisa tomar cuidado para não cometer algum erro. Aliás, ele precisa ter muito cuidado para não ser usado como boi-de-piranha: quando ele acerta, o mérito é do chefe; quando o chefe erra, a culpa é dele. E precisa ter cuidado, muito cuidado, mas muito cuidado com a ingratidão e o tal de laço-de-sangue. Porque não é possível ter dúvida: entre ele, o fiel correligionário, e o parente, este sempre vence. É o instinto!

Honório de Medeiros é escritor, professor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 14/08/2011 - 09:48h

A vida dá e a vida tira

Por Bárbara de Medeiros

A vida dá e a vida tira. Não abra a boca para reclamar das situações, das perdas, das ironias do destino. Situações vividas, por pior que sejam nunca serão esquecidas, e todas as experiências vividas nessa vida hão de nos tornar pessoas melhores.

Para cada perda, há um ganho, nem sempre igual ou equivalente, mas um ganho. As ironias do destino, ah, o destino… Aquele filho da mãe que pensa que pode nos convencer a burlar cada uma e todas as regras de Deus…

As ironias do destino são como o hálito de um homem pela manhã após uma noite de festa. Os dissabores da vida, pois, apesar de bela, há dissabores na vida, são o que tornam a vida, na falta de palavra melhor, mais saborosa.

E veja! O destino há de mudar. E não há ninguém melhor para mudá-lo que você, você mesmo. Você, com todos os seus erros e defeitos, com suas causas, culpas e esperanças.

Você é poderoso. Basta acreditar, e, assim, realizar.

Bárbara de Medeiros é estudante secundarista, menina ainda, vinda de boa extração. Isso explica em parte sua habilidade precoce com as palavras: é filha do ex-secretário de Estado e da Prefeitura do Natal, professor e escritor Honório de Medeiros.

P.S – Hoje, ele é referência para identificá-la: é “a filha de doutor Honório”, assinalamos. Um pouco adiante, ele será “o pai de Bárbara”, numa prova da evolução darwiana da espécie. Amém!

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domingo - 31/07/2011 - 09:28h

Assim é se lhe parece

Por Honório de Medeiros

Alexandre, o Grande, tinha duas opções: tentar desatar o famoso “nó Górdio” e, em o tentando, jogar as regras do jogo até então existentes, ou fazer como ele fez: criar novas condições através das quais fosse obtido um resultado aceitável. Não houve hesitação.

Com um golpe de espada o conquistador do mundo cortou o nó ao meio.

Colombo colocou a questão: como fazer para colocar um ovo em pé? Mais uma vez era necessário que as regras do jogo, como postas, fossem transcendidas. Caso contrário, o problema persistiria “ad aeternum”. Ninguém conseguiu, mas ele mostrou como: quebrou o ovo e o colocou em pé.

Se você é convidado a entrar em uma situação na qual as regras do jogo estão definidas e as aceita tal e qual lhe foram apresentadas, do ponto de vista estratégico seu adversário está com a iniciativa e dita o ritmo da partida. Não há como ser diferente.

E essa vantagem é tão significativa, principalmente porque a maioria das vezes ditada por especialistas, que é difícil não acreditar na própria derrota.

No mundo da política os atos e fatos acontecem como se todos os envolvidos estivessem jogando um jogo. Na realidade, é um jogo. E existem profissionais altamente capacitados nesse jogo, como em qualquer outro. E o jogo é tão duro, tão inclemente, tão complexo, que não é para qualquer um.

Em certas situações, os perdedores de um determinado embate eleitoral em pouco tempo assenhoreiam-se da vitória do adversário. É quando o vencedor, embora vitorioso, cai no canto de sereia que seus adversários preparam e em pouco tempo está dançando a música que eles querem, no ritmo que desejam.

Pense bem, amigo webleitor: com a vitória eleitoral de Lula, o que as elites brasileiras perderam? Os tubarões financeiros internacionais deixaram de receber os mega-juros da dívida externa brasileira? Os bancos deixaram de obter lucros estratosféricos?

Os verdadeiramente pilantras endinheirados estão pagando impostos ou na cadeia?

Agora conclua: é ou não é verdade que Lula ganhou a eleição e os tubarães do capital financeiro continuam no Poder?

A saída é agir como Alexandre, o Grande. Ou como Colombo. Embora em casos assim, no concreto, se torne mais difícil realizar esse salto de qualidade porque é preciso ser possuidor – o líder – de uma idéia de onde e como se chegar.

Guardando as proporções, é algo como uma revolução: o líder diria – não aceito que me imponham essas regras, por que o povo me elegeu para criar outras! A verdade é que, no caso de Lula, por exemplo, ele não tem qualquer grandeza. Deram-lhe as roupas de rei, mas em pouco tempo ficou provado que elas eram muito, mas muito maior que a maior das esperanças a seu respeito.

Ele apenas quis o Poder e sequer soube como mantê-lo decentemente.

Lula poderia ter feito as grandes reformas que o Brasil clama há tanto tempo. Mas não. Optou, por um misto de esperteza de botequim misturada com filosofia de para-choque de caminhão, em apoiar uma única política pública consistente – o pagamento dos juros escorchantes da dívida externa.

Mostrou-se pequeno, muito pequeno. Tão pequeno que chega a ser ridícula sua forçada comparação com JK que, para o bem ou para o mal, ousou criar as regras do jogo.

Vamos ver o que dirá a história.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 24/07/2011 - 06:20h

De falsos sabichões

Por Honório de Medeiros

O brasileiro é folgado.

Põe-se a pontificar acerca de qualquer assunto que lhe caia nas mãos. Não todos, evidentemente. Alguns ficam chocados com essa atitude “chopp-com-batata-fritas”.

Como um conhecido meu que observava, aturdido, em uma roda de bebidas, uma discussão travada a respeito de um assunto de natureza jurídica. Questão complexa, de Direito Constitucional. O bate-boca esquentava e esfriava e ele não entendia por que não lhe perguntavam como resolvê-la.

Nada mais óbvio, tratava-se de um professor da disciplina.

No Brasil, com as exceções de praxe, ninguém quer ser tomado por ignorante, mesmo que o seja. Evidente que há as exceções: alguns chegam até a orgulhar-se de jamais ter lido nada, mas essa é a alternativa que lhe sobra para chamar o holofote para si.

Todos sabem tudo. E falam acerca de qualquer assunto com tal ar pontifical que deixaria um transeunte menos avisado perplexo com tamanha sabedoria.

Mecânica quântica? Controle difuso de constitucionalidade? O efeito do príon na interrupção do processo sináptico no Mal de Alzheimer? Favas contadas! Cada um dos integrantes da roda é capaz de falar horas acerca do assunto.

É bem verdade que esse mal acomete com mais profundidade bacharéis em Direito, políticos e jornalistas. Não os publicitários – o problema deles é outro, é acreditarem que são inteligentes.

Tanto uns quanto outros, insignes leitores de capas de livros, desenvolvem, ao longo do tempo, uma rara capacidade de pontificar tudo acerca de nada. Uma palavra aqui, outra acolá, ambíguas, de conteúdo indeterminado, engatadas vagamente através de silogismos de pé quebrado, e eis o discurso pronto. E não adianta a contestação. Ela não é bem vinda.

Pode até levar o contestador ao isolamento sob a pecha de chatice. O máximo que se pode fazer, e o que todo mundo faz, é manter fixo o olhar sobre o pontificador enquanto a mente divaga. Evidente que esse discurso é secundado por uma perfomance corporal. E por testemunhos de ausentes.

Leitor de capa de livro exige platéia. Quer ser o centro das atenções. Quer o holofote totalmente voltado para si. E assume, ao falar, os trejeitos próprios, naquilo que eles têm de caricaturesco, dos grandes mestres. E tome citação.

Pegam uma frase de Shakespeare, colhida no “Dicionário de Citações”, tirada do seu contexto, e vão embora com ela enfadar os outros. Alguns não sabem, sequer, o título do drama ou comédia de onde a frase foi pinçada.

Assim foi que certa vez um amigo meu conhecido por seu sarcasmo se aproximoue de uma roda de Bacharéis quando um pontificador citava Lênin – ora vejam só, Lênin – e uma sua obra denominada “Teses de Abril”. Meu amigo interrompeu: “você leu?”

“Claro!”, respondeu o sabichão.

“Naquela edição volumosa, de quase quinhentas páginas, traduzida do alemão?”, tornou a perguntar. “Exatamente ela.”

“Bem que eu desconfiava”, disse, e se afastou com um sorriso irônico.

Para quem percebeu o sorriso e lhe procurou depois ele explicou: “nosso colega deve ter se enganado; o livro é fino, não fica em pé, e a tradução é do francês”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 17/07/2011 - 08:45h

História da vida real

Por Honório de Medeiros

Nas Seleções do Reader Digest que meu pai colecionara na década de 40 eu lia, entre menino e adolescente, uma seção cujo título era “Histórias da Vida Real”.

Uma história eu nunca esqueci: durante a Segunda Guerra Mundial, as moças americanas eram incentivadas a participarem do esforço comum escrevendo para seus compatriotas combatentes mundo afora.

Um desses rapazes começou a se corresponder com uma jovem do interior remoto do Oeste americano.

Passaram-se os anos e as cartas, que começaram cordiais, mas distantes, assumiram um teor cada vez íntimo, com troca de confidências, sonhos, planos e tudo quanto diz respeito a uma correspondência amorosa.

Tudo corria perfeitamente exceto pela recusa obstinada da moça em enviar, para seu correspondente, uma fotografia e o nome da cidadezinha na qual morava. Todas suas cartas eram enviadas da Estação Central de Trem da capital do seu Estado.

Ele argumentava dizendo que gostaria de ter, perto de si, não apenas suas cartas e tudo quanto de bom elas lhe transmitiam, mas, também, uma imagem para a qual pudesse olhar naqueles momentos terríveis pelo qual estava passando.

Ela lhe respondia, se justificando, que o amor entre eles começara pelo espírito, e assim deveria continuar até o momento em que, finalmente, pudessem se encontrar frente a frente, e uma fotografia poderia lhe dar uma falsa impressão que a realidade viria a desmascarar.

Finalmente a guerra terminou. Ele lhe escreveu para combinar o encontro e ela lhe pediu que estivesse no dia e hora marcados, na Estação Central de Trem da capital do seu Estado, quando seria reconhecida por trazer, nas mãos, um ramo de rosas vermelhas.

Esta era a única forma de reconhecê-la que ele dispunha: não sabia como ela era e em qual cidade vivia, e, muito menos, se seu nome era real ou fictício.

Meio-dia em ponto. Exatamente na hora marcada. O trem para. Ele salta e olha ansioso no seu entorno. Há poucos transeuntes na Estação. Ninguém que aparente ser uma moça desacompanhada portando um ramo de rosas vermelhas nas mãos.

Começa a frustração. Será que foi enganado, pergunta-se, ao longo de todos os anos? Tudo quanto ela lhe dissera carta após carta, o amor que entre eles nascera, os planos construídos, seria mentira?

Parado, a maleta aos pés, a expressão ansiosa, ele olhava em todas as direções tentando justificar um possível atraso, se dizendo que talvez algum acontecimento de última hora, um obstáculo inesperado a tivesse retido…

O tempo passou.

Uma hora depois, convicto que tinha sido iludido, ele começou a se dirigir para o guichê de vendas de passagens. Pretendia ir embora o mais rápido possível.

Quando se aproximou do guichê viu, sentada, próxima ao local, uma senhora de aproximadamente cinqüenta anos trazendo, em suas mãos, um buquê de flores vermelhas. “Então é ela?”, se perguntou. “Ela é esta senhora, e por essa razão não teve coragem de me enviar uma fotografia sua?”

Parado, perplexo, pensou em se esconder – não era possível que aquela senhora de meia-idade fosse sua amada. E agora, pensou, deveria honrar o amor espiritual com o qual se comprometera e que independia de idade ou poderia justificar a si mesmo sua fuga alegando ter sido manipulado?

Passaram-se alguns minutos. Cada carta que ele recebera veio a sua memória. Não resistiu. Aproximou-se.

“Senhora, boa tarde, seu nome é Lucy?”

“Não, ela me pediu para ficar aqui algum tempo, com essas rosas na mão, aguardando que alguém viesse a sua procura. Ela está ali”, e apontou.

Um pouco além, vindo em sua direção, com outro buquê de rosas vermelhas nas mãos, uma belíssima mulher, muito além do que ousara imaginar, lhe sorria discretamente.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 10/07/2011 - 08:36h

Quem era o homem de olhos acesos?

Por Honório de Medeiros

O pai de minha sogra tinha mais de noventa e seis anos quando ocorreu esta história.

Andar curvado, pele curtida, mãos nodosas, cabelos finos e totalmente brancos, de uma magreza ascética. Homem de poucas palavras, que um começo de senilidade acentuou ao longo dos últimos anos, embora não lhe tenha feito perder totalmente o senso.

Tipicamente rural, daquela estirpe de nordestinos como já não há mais, cuja palavra empenhada vale mais que qualquer cheque em branco, seu código de honra era imutável; uma vez tomada uma posição qualquer, não havia possibilidade de mudança; seus valores eram “preto no branco”: tradição herdade dos avós que os tinham iguais, bem como os pais, e deveria ser assim por que assim o era e deveria ser desde que o mundo é mundo.

Sucede que um dos seus muitos filhos, o primeiro, por sinal, suscetível, em termos de honra, tanto quanto o pai, depois de uma desavença qualquer onde não faltaram palavras ásperas de lado-a-lado, foi-se embora jurando nunca mais voltar.

Ele sentiu o golpe, mas não o acusou. Ano após ano, mesmo as lágrimas de mãe que sua esposa derramava escondido e ele pressentia não lhe fez sequer murmurar o nome daquele que ousara levantar a voz e desrespeitar sua autoridade paterna.

Era como se o filho não existisse, e as notícias esparsas, trazidas pelos outros até o seio da família não lhe eram comunicadas, circulando sem o seu conhecimento por entre mãe, irmãos e sobrinhos.

Dias antes de uma eleição municipal a ligação da desconhecida esposa do filho ausente comunicou sua doença: entubado, inconsciente, comatoso, jazia na unidade de tratamento intensivo de um grande hospital em uma cidade distante, no norte do País. Criou-se uma sincronia macabra entre a expectativa do dia da eleição e o de sua morte, nesta altura, já esperada.

Enquanto isso, embora todos, em casa, soubessem da situação, e poupassem o pai por temor de um agravamento da sua fragilidade de idoso, a ansiedade pelo desfecho, tanto da eleição, quanto da morte, esta agravada pela dificuldade de se obter informações, aumentava cada vez mais.

No dia anterior ao da eleição, às oito horas da manhã, uma das suas filhas, como de costume, foi acordá-lo para o café da manhã e o encontrou falando como se estivesse se dirigindo a alguém.

Perguntou-lhe: “com quem está falando, papai?”

“Com esse homem de olhos acesos que não para de me olhar.”

“Quem, papai? Aqui não tem ninguém.”

“Você pensa que eu sou doido; o que ele queria aqui no meu quarto?”

A filha teve imediatamente um palpite, e, angustiada, se sentou lentamente na cama. “Papai, esse homem era novo ou velho?”

“Era novo, ainda.”

Nesse instante, o telefone toca estridentemente lá fora. Ela corre para atender. Do outro lado da linha, a informação agora confirmada: “seu irmão acabou de falecer.”

Malgrado tudo isso, ainda não acabara o inexplicável. À noite, enquanto era acomodado em sua cama, véspera tumultuada de eleição, o pai se virou para a filha e resmungou.

Atenta, ela lhe indaga: “o que é papai?”

“Essas almas”, responde, “hoje está cheio delas aqui”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 03/07/2011 - 13:44h

Se não fosse o anel…

Por Honório de Medeiros

Como se encarnasse um sonho irreal de adolescente, na terceira ou quarta volta em torno do salão onde casais dançavam ao ritmo das músicas daqueles loucos anos 70 ela lhe apareceu. Em um gesto instintivo você levantou o copo de rum Montilla com coca-cola como que oferecendo enquanto a avaliava.

Ali estava uma mulher bonita, muito bonita, pelo menos para o seu padrão: cabelos longos, crespos, cheios, displicentemente soltos e partidos ao meio, emoldurando um rosto oval perfeito no qual pontificavam um nariz diminuto acima de uma boca carmim/carnudo-vermelha e olhos sempre meio escondidos por longos e abundantes cílios; o corpo magro quase oculto por um daqueles vestidos longos, típicos da época, terminava nos tornozelos pousados em sandálias das quais saiam finas tiras de couro que subiam pernas acima.

O copo foi aos lábios dela e sem trocarem qualquer palavra se dirigiram a um batente meio afastado que circundava a área onde ficavam as mesas. Então conversaram. Não se sabe se o primeiro beijo veio logo ou demorou. Não se sabe acerca do que falaram, mas o passado e o futuro se fizeram presente.

Na ânsia de conhecê-la você mergulhou seus olhos nos dela querendo alcançar os fatos e pensamentos mais remotos gravados em sua memória. A noite adquiriu contornos mágicos: seu perfume, discreto, suave, era único; o bulício longínquo da festa, um pano-de-fundo perfeito para os silêncios intermitentes; a música estava dentro de cada um.

Já no final, ainda desatento ao fato de que a encontrara vagando sozinha e não fora procurada, até então, por quem quer que seja, enquanto a multidão se dispersava você perguntou onde ela morava. Ela lhe disse, vagamente, que no Centro. E como iria para casa? Não houve resposta.

Àquela hora somente havia táxi. Ou carona, já que carro era um luxo distante. Poderiam ir a pé, você propôs, afinal não ficava tão distante, e as ruas e bairros seriam atravessados lentamente enquanto o sentimento fluía mundo afora e saudava a manhã nascente. Não ocorrera, ainda, a você, quão estranho era a solidão que a cercava.

Se você não estivesse ali – era o caso de se pensar – ela teria ido sozinha enfrentando a madrugada, para casa? Assim, foram. Mãos dadas. Silêncios interrompidos por brincadeiras. As ruas silenciosas por testemunha. A manhã possuindo a noite.

Na altura do velho cinema ela parou e lhe disse que ali precisariam se separar. Não era possível deixá-la em frente à sua casa. Não houve questionamento. Sua relutância não a oprimiu. Beijou-a e lembrou-lhe o compromisso de telefonar no momento que acordasse.

Pegou o caminho da volta. Antes da esquina que a tiraria de seu ângulo de visão olhou para trás. Ela estava lá esperando esse gesto. Beijou a palma da mão, apontou-a para você e soprou. E seu coração adolescente, feliz, exultou. Foi a última vez que a viu. Ao longo do dia a espera foi interminável, opressiva.

O toque do telefone fazia o coração disparar. O livro, sequer folheado, jazia pousado no chão ao lado do sofá. Passaram-se os dias. Nada. Nenhum rastro. As pessoas que moravam no entorno do lugar onde você a deixara talvez tenham estranhado seu vai-e-vem incessante, nos primeiros dias, quando ainda havia a esperança de encontrá-la saindo de algum lugar.

Todo tipo de pergunta, a si mesmo, foi feita. Não houve resposta. Nunca houve. Não haverá. Poderia parecer algo sobrenatural não fosse, passados todos esses anos, aquela bijuteria – um anel – que teima em lhe deixar pensativo e um pouco melancólico quando você o põe na palma da mão, e o lenço – naquele tempo ainda se usava – no qual resiste ao tempo a lembrança de um perfume.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 26/06/2011 - 07:50h

Um herói mossoroense (Manoel Duarte)

Por Honório de Medeiros

Um preciso tiro de fuzil ecoou no final de tarde nublado do dia 13 de junho de 1927 e, aproximadamente cem metros além, a bala atingiu o meio-da-testa de um caboclo puxado para o negro aparamentado com a indumentária típica do cangaceiro, prostando-o na terra nua, de barriga para cima, a olhos fixos e vazios voltados para o céu acima, bem ali onde a Avenida Rio Branco cruza a Rua Alfredo Fernandes, onde, na esquina, fica a famosa Igreja de São Vicente cuja imagem, do seu nicho decenal, tudo contemplava.

Era o começo do fim.

No alto da casa do Prefeito Municipal – o líder que começara a epopéia -, no telhado, o atirador viu quando outro cangaceiro, de um trigueiro carregado se aproximou, rastejando e disparando, da vítima, e começou a rapiná-lo, retirando freneticamente, de seus bolsos, munição, dinheiro e jóias. Calmamente, mirou e aguardou.

Pressentindo o perigo iminente o bandido ergueu o tronco elevando os olhos até o telhado da casa cuja frente fora tomada por fardos de algodão prensados para servirem de barreira. Foi apenas um momento, mas foi fatal.

Outro tiro de fuzil ecoou e, no mesmo local onde seu companheiro jazia sem vida o cangaceiro foi atingido.

O violento impacto da bala derrubara-o momentaneamente e desenhara, em seu tórax, uma rosa de sangue. Seus parceiros, paralisados, perplexos, observavam incrédulos. Começou a debandada.

Enquanto os resistentes percebiam que a ameaça fora sustada e o recuo dos cangaceiros era generalizado, o atirador recolhia o fuzil e fitava a cidade no prumo que tinha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição como limite. Olhava e pensava.

Ele tinha morto um cangaceiro e ferido mortalmente outro. Não havia dúvida quanto à importância desse fato para a vitória. Mas cangaceiros são vingativos, cangaceiros são ferozes, cangaceiros são cruéis. Cangaceiros são dissimulados e não esquecem nunca, matutava ele com seus botões.

Se ele aceitasse passivamente as homenagens que lhe seriam tributadas a partir daquele momento tudo poderia, no futuro, desandar no gosto amargo causado pela retaliação de algum anônimo, talvez até mesmo em algum parente, como era prática comum na vida cangaceira. Não que fosse medroso. Ao contrário.

Todos quantos lhe conheciam podiam atestar sua coragem e perícia com as armas, que já ficavam lendárias. Mas era melhor se precaver. Era melhor silenciar. Não seria o caso de negar veementemente, por que não era homem para esse tipo de extroversão mentirosa. Mas ia silenciar. Não ia comentar nada.

Duarte, um herói de verdade

O que estava feito, estava feito, e era de acordo com seu temperamento reservado. Se lhe perguntassem, mudaria de assunto. Se comentassem em alguma roda da qual estivesse fazendo parte, sairia de mansinho. Guardaria a verdade consigo, por muito e muito tempo, e a contaria apenas para alguns escolhidos.

Naquele dia banal, muito tempo depois, sozinho com seu neto de dez anos de idade, sentiu vontade de contar aquilo que nunca contara a ninguém. Era uma necessidade da alma, um anseio de perpetuar um feito honroso, um gesto de heroísmo que o mostrava tão diferente dos que tinham fugido em direção ao mar quando os cangaceiros ciscavam nas portas de Mossoró, um gesto que lhe orgulhava por que defendera sua família e sua cidade a um custo alto, que era o de tirar a vida de alguém.

Olhou para o neto e compreendeu que ali estava o interlocutor perfeito. Não questionaria, não interromperia, não esqueceria. Guardaria a lembrança do dia e do relato. Assim sendo começou a lhe contar todo o episódio, detalhe por detalhe.

O neto apenas olhava intensamente e sentia que estava sendo transmitido, para ele, algo muito importante e que somente no futuro seria plenamente entendido. Acalmou sua inquietude de menino. Não desgrudou o olho do seu avô, aquele homem reservado e pouco propenso a confidências.

No final, quando toda a história havia sido contada, compreendeu que devia guardá-la consigo, até mesmo esquecida, por algum tempo. Em um final de tarde tipicamente mossoroense, de muito calor, em um café, o neto se aproximou de uma roda de estudiosos do cangaço e percebeu que discutiam a participação do seu avô na invasão da cidade pelo bando de Lampião. Uns diziam que havia sido ele o autor dos disparos. Outros negavam e apontavam nomes.

Quase oitenta anos haviam se passado do episódio. O neto, agora, era cinqüentão. Sentiu que ali estava o momento certo para contar a história, a sua história, a história do seu avô. Aquela platéia saberia ouvi-lo e entenderia plenamente as razões do silêncio da família.

Contou tudo.

Fechou-se o ciclo.

Dezenas de anos depois já não há mais dúvidas. O atirador postado no alto da casa de Rodolpho Fernandes, o homem que praticamente abortara a invasão lampiônica, o herói entre heróis fora Manoel Duarte. Esta é a verdade, como o sabe sua família e a contou seu neto, Carlos Duarte, jornalista, muitos anos depois, a mim, que registro, aqui, a história, e a Kydelmir Dantas e Paulo de Medeiros Gastão, estes últimos dirigentes da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário do Estado do RN e da Prefeitura do Natal

P.S – Décadas depois desse feito, ele foi homenageado com o nome de um largo à Avenida Rio Branco, além de busto, de frente onde fora sua casa. Mas na construção da chamada “Praça da Convivência” no primeiro governo Fátima Rosado (DEM),  o busto foi retirado.

A peça de bronze foi localizada semanas depois num depósito de ferro velho, pronta para ser derretida. A intervenção de sua família e do então “Jornal Página Certa” fez com que o governo municipal arranjasse um meio de reparar o crime à história e à cultura de Mossoró, doando outro espaço à fixação do busto.

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domingo - 19/06/2011 - 06:39h

Governo x Servidores Públicos

Por Honório de Medeiros

O que se percebe hoje, no Rio Grande do Norte, no que diz respeito ao embate entre categorias de servidores públicos e Governo, não é uma crise no Estado, entendido este, na percepção do senso comum, como “lugar” no qual ocorrem acontecimentos sócio-políticos.

O Estado, na verdade, é uma cristalização, uma “formalização” de como a Sociedade se auto-organiza e, nesse aspecto, continua incólume: funciona o Poder Legislativo; funciona o Poder Judiciário; até mesmo funciona o Poder Executivo; e a vida real, concreta, o dia-a-dia no campo social, as relações de produção fluem normalmente.

Mas há uma crise no Governo, e esta é grave.

As raízes do embate entre o atual Governo e algumas categorias de servidores públicos são antigas e profundas. Aqui não é o local apropriado para esmiuçar todas elas, muito embora seja possível detectar, como nexo a lhes dar unidade, a contínua e ancestral espoliação dos servidores públicos, via apropriação de sua força de trabalho.

Um exemplo situa o abstrato no concreto: os tributos que sobem indiscriminadamente enquanto o poder de compra dos servidores públicos cai. No que diz respeito ao servidor público há, inclusive, um epifenômeno específico: enquanto outros segmentos da classe média têm como limite para seu crescimento econômico-financeiro as leis do mercado, o barnabé, ao longo dos anos, sente na pele os efeitos do congelamento artificial de sua remuneração, ao travar a luta diária contra as gôndolas dos supermercados, os preços da educação particular, os cutos da medicina privada.

Entretanto é necessário analisar uma dessas raízes exposta pela circunstância político-institucional vivida em nosso Estado pelos servidores públicos, expondo suas causas e suas conseqüências.

E qual é ela?

Quanto a este Governo, embora pudéssemos abarcar os anteriores, a histórica postura da elite dirigente que o compõe em estimular as negociações com os servidores públicos por categorias. O objetivo da estratégia ancestral é maquiavélico: dividir para reinar. E o que era para ser uma vitória estratégica, se revelou um erro histórico.

Na medida em que a discussão é encetada por categorias, separadamente, e especificamente com aquelas que têm poder de barganha, como os auditores fiscais, a polícia militar, ou os médicos, todo o restante dos servidores públicos – e é uma imensa maioria – é deixada de lado e condenada à submissão: aqui convém lembrar os ASGs, os Técnicos de Nível Superior e Médio, e assim por diante.

Perdem, assim, ambos: Governo e categorias. O Governo, governabilidade; as categorias, legitimidade.

Até recentemente essa estratégia surtiu aparentes efeitos favoráveis e, mesmo equivocada, garantiu sobrevida. Todos os governos, desde as capitanias hereditárias em sua essência conservadores, até mesmo reacionários, constituídos que foram pela mesma elite que há séculos se apropriou dos aparelhos do Estado – embora às vezes aparentemente dividida por cores, bandeiras e músicas -, têm como seus uma “memória” no trato com a “coisa pública” que induz a mesma conduta, a mesma ação, o mesmo procedimento, ano após ano, em relação aos servidores públicos.

Mas um dia a casa – mal construída – cai, e a causa é claramente perceptível: as contradições inerentes à postura conservadora de governar, que se materializa por intermédio do exacerbamento radical da tentativa de implantar um modelo financista de gestão, ou seja, fazer caixa para obras (a face perversa da “Teoria do Bolo Econômico”), e a conseqüente necessidade de “enquadrar” as categorias de servidores públicos que ameaçam tal modelo gerencial via crescimento da folha de pagamento do Estado.

E como “fazer caixa” equivocadamente, sem atacar os chamados “nós estruturais” como, por exemplo, o número de Secretarias, de cargos em comissão, o déficit previdenciário, o repasse para os outros Poderes, a gestão do patrimônio do Estado, origina, em curto prazo, um déficit de legitimidade, eis a conseqüência: o Governo não conta com as categorias com as quais litiga porque não conseguiu atraí-las para seu plano de gestão; e não conta com a maioria submissa do restante dos servidores públicos por que sequer percebe sua existência; não conta com a Sociedade por que seu discurso, contraditório, conseqüência de sua percepção autoritária de gestão, confunde e suscita antipatia.

Esse modelo conservador de gestão e suas conseqüências, radicalizado ao extremo em sua face mais perversa, a de confrontar as categorias “fortes”, e relevar a massa “fraca”, de servidores públicos, e suas entranhas ocultas, secundado por uma mídia obsequiosa e/ou incapaz de perceber o pano-de-fundo dos acontecimentos, parte dela a esgrimir com o olho no descalabro dos governos anteriores, alheia ao fato de que as elites governantes historicamente são as mesmas, e parte a exibir seu desnorteio ante o que realmente está acontecendo, conseguiu reunir, como adversários internos, embora ainda separados entre si, as categorias enganadas pelos artifícios eleitoreiros dos personagens políticos locais que se revezam no Poder desde sempre.

E em que erraram as categorias ao longo do tempo?

Erraram por caírem no canto de sereia das elites governantes aceitando discussões remuneratórias unilaterais, confiando em seu poder individual de pressão. Agora, quando precisam da maioria dos servidores públicos para dar legitimidade às suas pretensões, não são capazes de mobilizá-la, e como não o são, não se legitimam ante a Sociedade. Sociedade cansada da mesma prática encampada tantas e tantas e que somente lhe trás prejuízos.

Pagam o preço de seu erro histórico: ao encontrarem um Governo disposto a radicalizar sua opção ideológica cuja face exposta é o modelo de gestão “fazer caixa para tocar obra”, e disposto a destruir, ainda mais, a imagem do servidor público ante a Sociedade, apresentando-o como ganancioso, estão passíveis de saírem derrotados nesse enfrentamento, “perdendo a parada”.

Agora, a conseqüência para a Sociedade.

Suponhamos que o Governo consiga dobrar as categorias. Qual o resultado concreto dessa vitória de Pirro?

O “caixa” melhora, substancialmente. O Governo vai “tocar obras”, repetindo a mesma toada de sempre, desde as Capitanias Hereditárias e a construção do Forte dos Reis Magos.

E dificilmente avançaremos quanto às políticas publicas.

Políticas públicas, para se concretizarem, necessitam de servidores públicos treinados, bem remunerados, e, principalmente, fundamentalmente, persuadidos a darem o melhor de si.

Políticas públicas não se concretizam com servidores ressentidos.

E existe um ressentimento histórico nos servidores públicos do RN, em sua imensa maioria, com exceção de algumas castas privilegiadas, que já construíram, para si, um ambiente “legal” apropriado no qual se mantêm, distantes das agruras pelas quais passam os professores, os médicos, os policiais, os técnicos de nível médio, os ASGs…

Com servidores ressentidos, nada funciona no serviço público. O exemplo nem sempre lembrado é o Governo Geraldo Melo.

Nada funciona em decorrência da “greve branca” que, insidiosa, não declarada, se instala. É um desânimo geral: os processos administrativos não andam, ou passam a andar em círculos. Ações não se concretizam; programas definham; políticas públicas passam a ser pura retórica governamental. Tudo isso, como se sabe, gera conseqüências eleitorais.

E a grande vítima, claro, é a Sociedade, que paga o preço por estar entre o touro enfurecido e o abismo.

Por fim: o que faltou ao atual Governo em sua relação com os servidores públicos?

Uma percepção não autoritária de gestão pública, com o desdobramento óbvio: respeito no trato com quem está do outro lado da mesa de negociação e compõe essencialmente a Administração Pública. Compreender a premência de uma Reforma do Estado, sempre postergada, legitimada pela Sociedade, da qual participem os outros Poderes e os Servidores Públicos. Ações que sinalizem claramente uma firmeza de propósitos, como a extinção de Secretarias, cargos em comissão, revisão dos repasses financeiros aos outros Poderes, déficit previdenciário, e assim por diante.

O servidor público, que juntamente com os fornecedores do Estado, foram as primeiras vítimas desse modelo financista de gestão implantado pelos atuais governantes, como não estão sujeitos ativos de sua história, a esta altura dos acontecimentos, salvo uma mudança de mentalidade quase impossível de acontecer, já consolidou a percepção de que a Governadora é seu inimigo. Isso é terrível.

Assim ocorre, também, com a linha de frente do Governo e sua ingênua tática de “morde e assopra”. Está ela sendo moída, lentamente, no “moinho ideológico” do qual fazem parte enquanto inocentes úteis, no capital simbólico que é sua imagem pública.

A se manter este estado de coisas, outras moendas virão. A roda do moinho continua girando, e como o tempo passa muito rápido, e o senso comum muda lentamente de opinião depois que consolida sua imagem das coisas e dos fenômenos, talvez, em breve, não haja mais condições de lidar com o futuro sem concebê-lo a partir do passado e presente. Ou seja: o amanhã somente será percebido a partir do ruim que nossa memória evoca.

E o Estado, essa excrescência que a Sociedade vê, perplexa, trabalhar contra si, na medida em que nada funciona no que diz respeito ao essencial, passa a ser sinônimo de algoz, e seus protagonistas, supondo deterem as rédeas dos acontecimentos, responsabilizados, muito embora, pelo seu lado, sejam também meras vítimas das próprias armadilhas que ajudaram a construir.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do Estado do RN

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domingo - 12/06/2011 - 02:02h

“Discurso sobre a servidão voluntária”, por La Boétie

Por Honório de Medeiros

Honório de MedeirosLeiam isso: “Aqueles a quem o povo deu o poder deveriam ser mais suportáveis; e sê-lo-iam, a meu ver, se, desde o momento em se vêem colocados em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidissem ocupa-lo para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. Ora, tão depressa tomam essa decisão, por estranho que pareçam, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para conservarem a nova tirania, não acham melhor meio que aumentar a servidão, afastando tanto dos súditos a idéia de liberdade que estes, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela”.

E isso: “Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, (…) as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, o preço da liberdade que perdiam, as ferramentas da tirania”.

Parece recente? Não o é.

Trata-se, tanto um quanto o outro, de excertos da excepcional obra “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”, de La Boétie, escrita entre 1546-1548.

Esse francês,  nascido em 1º de novembro de 1530, no condado de Périgord, França, e morto em 1563, perto de Bordéus, aos trinta e três anos, foi o maior dos amigos de Montaigne, que lhe era mais novo dois anos. Dessa amizade o próprio Montaigne deixou registro emocionante: “Vindo a durar tão pouco e tendo começado tão tarde, pois éramos ambos homens feitos e ele mais velho do que eu alguns anos, não tínhamos tempo a perder, nem tivemos de nos ater aos modelos de amizade moles e regulares que necessitam de precauções e conversações prévias”.

Quanto à genialidade de La Boétie é bastante o depoimento do seu tradutor, o português Manuel João Gomes na edição Antígona, de Lisboa, Portugal, 1997: “Para La Boétie é ilegítimo o poder que um só homem exerce sobre os outros; (…) O Discurso afirma a liberdade e a igualdade absolutas de todos os homens; Indo mais longe do que Maquiavel (o primeiro que reconheceu o poder efetivo das massas), La Boétie incita os povos a desobedecerem aos príncipes (governantes) e, com uma clareza até então nunca vista, põe em evidência a força da opinião pública”.

Tudo isso aos dezoito anos de idade! Ler La Boétie é, principalmente, perceber quão antiga permanece a luta do homem para não ser completamente subjugado pelo Estado.

Ela começou na longínqua Idade Antiga, quando os maravilhosos gregos inventaram a Democracia. Prossegue até hoje, apesar dos percalços. Mas está cada dia mais difícil: no Oriente Médio disputa-se o poder à custa do sangue de inocentes. Israel, secundado pelos Estados Unidos e sua doutrina da “guerra preventiva”, mata, como os nazistas faziam aos serem atacados pela resistência, a dez por um.

E assim vamos marchando rumo à barbárie, inexoravelmente, e à tirania, sob o pretexto de combater o terrorismo, como quem está com um encontro marcado com o final de tudo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário de Estado e da Prefeitura do Natal.

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