domingo - 06/12/2020 - 14:30h

De um amigo que encontrou a fé

Por Honório de Medeiros

Certo amigo meu, até recentemente ateu, me contou acerca de sua conversão.

Disse-me ele que na meia-idade do conhecimento, na qual chegou por caminhos tortuosos, após perambulações de toda a ordem no universo dos livros, deu-se conta que era o momento de fazer um balanço em regra de sua vida passada e fazer um planejamento, mesmo que capenga, para o resto dos seus dias.

Um assunto, em especial, assim pensava ele, clamava por atenção: sua relação com a Fé.

Após esse primeiro ponto firmado, pôs-se a examinar o tema por um viés, digamos assim, oblíquo: entendeu que o importante era pensar acerca do mundo tal qual o estava encontrando, naquele momento. Colocou as mãos à obra.

Em sua procura, olhando para os lados, para trás e em frente, por todos os ângulos, de todas as formas, somente encontrou o horror, a escuridão mais negra, uma história de sangue e dor, excetuando-se um ou outro ponto de luz a sobreviver sabe-se lá como, nem por quê.

Explicou-me fazendo um paralelo: imagine, disse ele, o milagre da sobrevivência da Igreja no auge da Alta Idade Média, após a queda de Roma, quando iniciou o período que os historiadores antigos chamavam de “Idade das Trevas”.

O mundo se transformara, então, em um caos. Mas a Igreja sobreviveu graças aos monges irlandeses, que no silêncio e na solidão de seus monastérios, copistas que eram, crentes integrais, legaram ao futuro a doutrina de Cristo.

É como se hoje em dia vivêssemos um período semelhante. Horror e escuridão, novamente, ou sempre, e o mal lutando com unhas-e-dentes para dominar, para ser hegemônico. Guerras, genocídios, estupros, roubos, torturas, infanticídios… A lista é infindável.

Se há o mal, disse-me ele, à guisa de conclusão, então há o Bem. Se há o Bem, então há Deus.

E, assim, por intermédio dessa estranha conclusão, de forma alguma absurda, ele chegou à Fé.

Deus o tenha.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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Categoria(s): Artigo
domingo - 29/11/2020 - 10:14h

A negação da morte

Por Honório de Medeiros

Adolescente, recém-chegado a Natal, apaixonado por livros, não sabia por onde começar na biblioteca de minha tia, que me acolhera em seu apartamento lá pelo início da década de 70.

Li muito, ali. Alguns livros, várias vezes. Naquele tempo não havia celular, e a televisão ainda engatinhava.

Dia desses me perguntei quais daqueles livros, alguns ainda em minha posse, me marcaram. Não precisei procurar tanto nos desvãos já meio empoeirados da memória. Foram três, não tenho dúvida.

Igreja de São Jesus do Monte, Braga, Portugal, 2013 (Foto do autor)

Um deles é um clássico: O Meio é a Mensagem, de Marshall McLuhan. Na época, quando o li, não compreendi quase nada, mas o conceito de “Aldeia Global”, um meme de McLuhan, fixou residência definitiva em meu cérebro.

Outro foi um romance de Rabindranath Tagore, A Casa e o Mundo. Uma estória de amor vivida na Índia, escrito com uma sutileza incomum, e uma prosa densamente poética.

Mas o fundamental, aquele que me marcou para sempre, foi A Negação da Morte, de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974.

É traumatizante a leitura de A Negação da Morte para um adolescente, quase rapaz. Pelo menos para mim, foi.

Muito do que li, na primeira vez, também foi incompreensível. A custo, entretanto, de relê-lo, e ir em busca, na obra de Freud, que jazia completa nas estantes de minha tia à minha disposição, dos conceitos-chaves utilizados por Becker, terminei entendendo o núcleo de sua argumentação.

Platão põe na boca de Codro, no Banquete: “Supondo acaso que Alcestes… ou Aquiles… ou o próprio Codro teriam buscado a morte – afim de salvar o reino para seus filhos – se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pelo qual, em verdade os recordamos?”

Para Becker, é isso que há de fundamental no ser humano: o medo da morte. Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde o início, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia.

Agimos, em consequência, para reprimir esse medo, construindo “mentiras vitais” que nos permitam enfrentá-lo sob a ilusão de imortalidade histórica, e explicam, assim, a conduta do homem.

Uma dessas condutas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permita sobreviver na memória dos outros.

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu Power: A New Social Analysis, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder.

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todos os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência da busca pelo Poder, para Russel, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. A glória de quem a alcança, essa “mentira vital”, que supostamente iludiria a morte, por sobreviver na memória dos homens.

Se o homem não ansiasse pela glória, não buscaria o Poder. Infinita é essa busca, posto que o desejo humano não conhece limites.

Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer, e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual.

Como isso não é possível, surge a instabilidade e a violência. Em tempos mais modernos, nos quais a ideia de heroísmo e glória pessoal parece ultrapassada, foi substituída pela incessante busca por notoriedade.

Talvez haja uma forte distinção entre uma e outra, calcada no caráter moral. No primeiro caso parece haver o anseio de passar para a história pelos feitos realizados a partir de uma concepção do Bem, em oposição ao Mal. No segundo, as ações parecem determinadas puramente pelo narcisismo.

O certo é que Becker criou raízes fundas em mim, seja pelo impacto de uma teoria que tudo explicava no que diz respeito à conduta dos homens, seja pela angústia e prazer intensos que a tentativa de voar alto, nas coisas do espírito, originou. Nunca mais fui o mesmo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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segunda-feira - 05/10/2020 - 12:52h
Leitura

“Jesuíno Brilhante” – o primeiro dos grandes cangaceiros

Novo livro (Foto: BCS)

O escritor Honório de Medeiros oferta-nos um novo trabalho que mexe com as entranhas do sertão, poder, cangaço e coronelismo.

Dessa feita, a sua viagem mergulha no século XIX, para investigar a vida de Jesuíno Brilhante, personagem controvertido da caatinga paraibano-potiguar.

Sem rodeios, escapando de estereótipos e duelando contra o lugar-comum da deificação do personagem-título, Honório de Medeiros nos leva a conhecê-lo, seu tempo e lugar: nosso sertão.

É minha leitura especial da semana.

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Categoria(s): Cultura
quinta-feira - 01/10/2020 - 21:36h
Livro

“Poder Político e Direito” discute tema bastante delicado

Livro é outra vertente temática do autor (Foto: divulgação)

O professor e escritor Honório de Medeiros está com mais um livro à disposição dos amantes da leitura. “Aí está: não somente de história do coronelismo e cangaço vivo eu. Também há espaço para a Filosofia do Direito”, exprime o autor.

Lançado virtualmente também em setembro, pela Editora Dialética, “Poder Político e Direito” pretende discutir a pouco trabalhada questão da instrumentalização política da interpretação jurídica constitucional.

Ocorre essa instrumentalização? É legítima? É legal? Quais seus fundamentos lógico-filosóficos?

O livro apresenta uma ousada teoria acerca do tema, com fulcro no entendimento de que o Direito é sempre instaurado pelo Poder Político, que o instrumentaliza de acordo com suas conveniências políticas.

Adquira já o seu livro físico no site da Editora Dialética (veja AQUI) e em breve também nos maiores marketplaces.

Outros livros

Honório de Medeiros é autor de uma trilogia literária com a temática do poder no sertão nordestino, no binômio coronelismo-cangaço. Esse ano, ele já lançou “Jesuíno Brilhante – O primeiro dos grandes cangaceiros“.

Mas, antes, já apresentara “Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins” e “Histórias de cangaceiros e coronéis”.

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Categoria(s): Cultura / Política
  • Repet
domingo - 23/08/2020 - 09:34h

Tirania e servidão

Por Honório de Medeiros

Finalmente expulsos da Terra Santa pelos Sarracenos em 1302 d.c., os Templários passaram a ter sua imensa riqueza cobiçada no Ocidente por soberanos e nobres, e seu prestígio e privilégios, assegurados até então pelos papas, invejados pelo clero.

Dentre eles, entretanto, nenhum chegou ao extremo de Filipe, o Belo, neto de São Luis, Rei da França.

Com o tesouro esgotado pelas lutas contra os barões feudais na tentativa de fortalecer seu reino e impor sua vontade, Filipe, para muitos o precursor do Estado-Nação, percebeu que muito próximo de si havia riqueza suficiente para saciar sua ambição e desenvolver seus projetos hegemônicos.O primeiro grande obstáculo a vencer era a Igreja, no seio da qual fora criada a Ordem do Templo, sob as bênçãos de Honório II. Conta Charles G. Addison, historiador inglês, em seu acurado A História dos Cavaleiros Templários e do Templo, que “quando da morte do papa Bento IX (em 1304), ele conseguiu, por meio das intrigas do Cardeal Dupré, elevar o arcebispo de Bordéus, uma criatura sua, ao trono pontifical.

O novo papa transferiu a Santa Sé de Roma para a França; convocou todos os cardeais a Lyon e ali foi consagrado (1305 d.c.), com o nome de Clemente V, na presença do Rei Filipe e seus nobres.”

O primeiro passo fora dado. A seguir o papa convocou os cavaleiros templários a Bordéus. Em 1307 o Grão Mestre do Templo e sessenta cavaleiros desembarcam na França e depositam o tesouro da Ordem no Templo de Paris. Jamais sairiam de lá.

Entrementes o Rei francês fazia circular diversos boatos sinistros e notícias odiosas a respeito dos Templários por toda a Europa, acusando-os de terem perdido a Terra Santa por não serem bons cristãos.

Depois, com base no depoimento de um cidadão condenado que viria a receber, posteriormente, o perdão real, mandou capturar, no reino, secretamente, todos os membros da Ordem, ao mesmo tempo em que determinava uma devassa nos bens dos Templários. Finalmente, Filipe endereçou correspondência aos reis europeus exortando-os a acompanhar seu exemplo.

E, então, os acusou dos mais esdrúxulos e inverossímeis crimes, tais como satanismo, sodomia, depravação herética e outros mais. Esses mesmos Cavaleiros Templários que durante centenas de anos derramaram seu sangue nas areias escaldantes da Palestina a serviço da Igreja, com as bênçãos e reverências dos reis da cristandade…

O resto pertence à história. Torturados, espoliados, dizimados, os templários desapareceram de cena enquanto Filipe de França, e Eduardo, da Inglaterra, bem como o papa Clemente, passaram a mão em sua riqueza. Saliente-se que o Rei de Portugal, à época, não somente se recusou a fazer o mesmo, como deu guarida aos templários fugitivos que para lá se dirigiram.

Em tempos mais recentes, nos famosos expurgos realizados na União Soviética, a criação de crimes imaginários por parte da máquina do Estado a serviço de Stalin conduziu milhares de russos ao pelotão de fuzilamento ou aos campos de concentração.

Quem desejar ler acerca do “modus faciendi” da máquina de acusação recomendo O Zero e o Infinito, do hoje esquecido ex-comunista Arthur Koestler, uma crítica contundente ao despotismo estalinista.

Esses fatos demonstram algo: em primeiro lugar, no que diz respeito à luta pelo Poder e sua manutenção, nada é novo, tudo é contemporâneo da existência do Homo Sapiens na face da terra; em segundo, não podemos permitir a concentração de Poder nas mãos de quem quer que seja; e, em terceiro, seja qual seja o credo ou ideologia, se favorecemos a concentração de Poder nas mãos de um,  ou de alguns, muitos irão sofrer as consequências no futuro.

Tais afirmações dizem respeito a qualquer agrupamento no qual o Homem viva em Sociedade. Tanto pode ser em família quanto, por exemplo, em uma Sociedade como a dos Estados Unidos da América, onde os métodos utilizados pelos seus serviços secretos, hoje em dia, aos poucos vão estrangulando as liberdades civis sob o falso argumento de proteção da segurança do País e seus habitantes.

Na verdade, o grande profeta dos últimos tempos acerca do exercício do Poder e suas decorrências foi George Orwell, com seu A Revolução dos Bichos; quanto à falta de legitimidade dos que o exercem, é de se render homenagens a Étienne de la Boétie e seu fabuloso Discurso Acerca da Servidão Voluntária, um dos raros momentos em que o Homem se aproxima dos deuses.

Quão imensa é a vocação do Homem para a tirania e a servidão…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo
quinta-feira - 13/08/2020 - 14:30h
Livro

A verdadeira face de “Jesuíno Brilhante”

Livro completa trilogia do cangaço (Foto: divulgação)

O escritor Honório de Medeiros lança novo livro. Em tempos de pandemia, ele evita frissons e aglomerações próprios dos lançamentos formais, a chamada ‘noite de autógrafos.

Com o título “Jesuíno Brilhante – O primeiro dos grandes cangaceiros“, Honório apresenta o resultado de um mergulho na vida de Jesuíno Alves de Melo Calado (Patu-RN, 1844; Belém do Brejo do Cruz-PB, 1879), visto como um dos precursores do cangaço – fenômeno do banditismo no Nordeste do Brasil.

O autor foge à reprodução continuada de enredo romanceado sobre a vida de Jesuíno Brilhante, o que tem sido muito comum nas narrativas sobre esse personagem, ao longo de quase um século e meio. Também evita o maniqueísmo narrativo de bem x mal, ou mesmo o julgamento sentencial do biografado.

Trilogia

A publicação tem 309 páginas, arte de capa de Etelânio Figueiredo, prefácio de Vicente Serejo, revisão de Bárbara Lima de Medeiros, ilustração de Gustavo Sobral, projeto gráfico e diagramação de Waldelino Duarte, capa de Heverton R., além de possuir selo da 8 Gráfica e impressão na Offset Gráfica de Natal.

Honório de Medeiros já lançou dois livros anteriormente, com foco na mesma temática, que mistura coronéis e cangaceiros, poder político e das armas no sertão nordestino: “Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins” e “Histórias de cangaceiros e coronéis”. O mais novo livro fecha uma trilogia.

Contato para aquisição do livro: e-mail – mariasenna1958@gmail.com

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Categoria(s): Cultura
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domingo - 09/08/2020 - 08:44h

A banalidade e decadência da cultura atual

Por Honório de Medeiros

Em 23 de novembro de 2015, causou celeuma uma “performance”, denominada “Macaquinhos”, na qual os atores exploravam os ânus uns dos outros, apresentada em uma unidade do Sesc em Juazeiro do Norte, no Ceará. Foi notícia nacional.

“A performance mostrava um grupo composto por homens e mulheres totalmente nus, em círculo, explorando com as mãos o ânus do companheiro a frente. De acordo com os artistas Caio, Mavi Veloso e Yang Dallas, idealizadores do projeto, a apresentação tem o intuito de ‘ensinar que existe ânus, ensinar a ir para o ânus e ensinar a partir do ânus e com o ânus’.”

Em agosto de 2017, o Santander Cultural abriu suas portas para a primeira exposição “queer” realizada no Brasil. De origem inglesa, o termo é utilizado para designar pessoas que não seguem o padrão da heterossexualidade ou de gênero definido – notadamente gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.Choveram denúncias nas redes sociais de pedofilia e zoofilia, principalmente para duas obras em especial: “Cenas do Interior II” (1994), de Adriana Varejão, que teve uma cena em que um homem penetra uma cabra, e “Travesti da Lambada e Deusa das Águas” (2013), de Bia Leite, que faz referência ao meme da internet “criança viada”.

Também há menção a um vídeo que mostrava um homem recebendo um jato de sêmen no rosto. A obra é intitulada “Come/Cry” e é assinada pelo “artista” Maurício Ianes. O nome do artista consta na lista entregue ao Ministério da Cultura como um dos autores das obras expostas no Queermuseu.

Mais recentemente, em uma performance na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, o artista fluminense Wagner Schwartz se apresentou nu, no centro de um tablado. Em vídeo que circula nas redes sociais, sob fortes críticas, uma menina que aparenta ter cerca de quatro anos aparece interagindo com o homem, que estava deitado de barriga para cima, com a genitália à mostra.

Agora, recordo Bárbara Tuchman, em A Prática da História:

– “O maior recurso, e a realização mais duradoura da humanidade, é a arte. O domínio da linguagem demonstrado por Shakespeare e seu conhecimento da alma humana; a complicada ordem de Bach, o encantamento de Mozart”.

Serão, esses, sintomas da decadência da cultura? O decadente, na arte, o banal, o medíocre, o aviltante, exerce sua tirania destruidora tanto quanto a proibição da liberdade de expressão estética.

Entretanto não é somente a possibilidade da presença permanente do fenômeno da decadência, a ser questionado. É sua banalização. A banalização da decadência.

O livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo, cujo título foi calcado no A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, deixa confortável quem procura um texto, de melhor qualidade, que dê respaldo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão, vivenciada por muitos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje. Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos.

Há, de fato, um progressivo e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendidos como pressupostos da construção do processo civilizatório. Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em Notas para uma definição de cultura, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe:

– “E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como A civilização do espetáculo, e Breve discurso sobre a cultura, Vargas Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse fenômeno, muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força motriz que que conduz o processo de destruição da cultura tradicional.

Llosa não nos oferece uma teoria que explique tudo. Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é “a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.”. Trata-se de uma constatação.

COMO NÃO LEMBRAR do personagem de O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, em seu permanente solilóquio:

– “O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?”

Entendo, embora possa estar enganado, que Zygmunt Bauman em sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, também não o conseguiu. Sua preocupação era descrever um fato, ou melhor, um fenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje.

Bauman disse:

– “A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”; nas quais “as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades.”

Eu me pergunto, então, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa “vida precária” em “condições de incerteza constante” uma fase do processo evolucionário acerca do qual teorizou Darwin?

Somos hoje, ainda, devedores, nesse aspecto de tentar entender o padrão oculto que rege os fenômenos, de Freud, Marx e Darwin, por assim dizer. Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui.

Aqui apenas registro o alívio em constatar que não estamos errados quando nos sentimos órfãos de uma cultura, uma “Paideia” que, desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás. Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea.

É a banalização da cultura…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo / Cultura
domingo - 02/08/2020 - 08:04h

Dizer sim, dizer não

Por Honório de Medeiros

O que levou e leva alguns homens a tomarem as rédeas do seu destino, não se conformando com o papel que lhes foi destinado pelas circunstâncias nas quais nasceram e viviam ou vivem, e construírem suas próprias histórias?

Como explicar a história desses homens surgidos ao longo do tempo, que adquiriram brilho próprio escrevendo páginas inigualáveis durante suas existências, quando e se comparadas com as dos seus anônimos contemporâneos?

Homens que não esquecemos, talvez nunca esqueçamos, situados entre a santidade e o banditismo, como São Francisco de Assis e Hitler, Padre Cícero do Juazeiro e Lampião?Teria razão Bertrand Russell, quando afirmou que os movia uma ânsia de grandeza, seguida do consequente impulso à revolta pessoal?[1]

“Ao passo que os animais se contentam com a existência e a reprodução, o homem quer ainda a grandeza, e os seus desejos neste assunto só têm o limite da sua própria imaginação. Todos os homens desejariam ser deuses, se fosse possível, e alguns poucos chegam mesmo a achar incompreensível essa impossibilidade. Este são os modelados, segundo o Satanás de Milton, e combinam, como ele, a nobreza com a impiedade. “Impiedade” não se refere aqui à crença religiosa: significa apenas a recusa de aceitar as limitações do poder humano individual. Essa combinação titânica de nobreza e de impiedade é mais evidente nos grandes conquistadores, mas pode ser encontrada, até um certo grau, em qualquer homem. Ela é que torna difícil a cooperação social, pois cada um desejaria entender essa cooperação como a de um Deus com os seus adoradores, sendo ele mesmo o Deus. Daí as rivalidades, a necessidade de transigências e de leis e o impulso à revolta, donde a falha na estabilidade e, periodicamente, a violência. E, também, a necessidade de uma moral que reprima as anarquias individuais”.

Colocado de outra forma, outro não foi o argumento de Hobbes contra a liberdade absoluta: a defesa do Estado contra as anarquias individuais.

Tal impulso à revolta pessoal, do qual nos dá conta Russel, é o mesmo que levou Albert Camus a se perguntar e responder a si mesmo: “Que é um homem revoltado? Um homem que diz não”.[2]

Mas o que é esse “não”? Camus responde:

“Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’. Em suma, este “não” afirma a existência de uma fronteira.

(…)

Dessa forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’”.[3]

Recusa em aceitar as limitações ao poder humano individual, e, consequentemente, revolta pessoal: inconformação, por fim. Algo que pode ser encontrado, até certo grau, em qualquer homem, segundo Russel. Até no mais humilde de todos. Mesmo na mais prosaica das circunstâncias. Para o bem ou para o mal.

Inconformação que somente é sufocada quando, dentro de si, ou no confronto com o(s) outro(s), opta-se por ceder às pressões, abrindo-se o caminho para os que forçam a passagem, tão inconformados quanto, ou ainda mais, e bem mais fortes, mais impiedosos.

Inconformados aos quais Howard S. Becker nominou de “outsiders”, ou seja, aqueles de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo.[4]

Transgressores. Desviantes. Excêntricos ou portadores de pensamento divergente, diz Mlodinow, enquanto aponta para uma área específica da neurociência, que estuda os padrões de suas condutas.[5]

Poderíamos denominá-los gauches, em homenagem a Carlos Drummond de Andrade:

“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

“Outsiders”, assim também os nominou o sociólogo alemão Norbert Elias, autor de O Processo Civilizatório, que reintroduziu na discussão intelectual moderna a importância da ação individual na história, bem como a crítica à demasiada ênfase na estrutura sobre o indivíduo, em vigor até então.[6]

Enfim, outsiders[7], divergentes[8], inconformados[9], revoltados[10], transgressores[11], desviantes[12]. Os outsiders, divergentes, não se conformam e se revoltam (o inconformismo é o fermento da revolta), e a revolta os leva à transgressão, ao desvio.

Existentes em qualquer tempo ou lugar, os “outsiders”, esses inconformados, revoltados de todos os tipos e modelos, seja qual seja o credo ou a ideologia, contribuíram para o avanço do processo civilizatório mesmo quando a humanidade sofria em suas mãos, pois aparentemente ainda assim crescemos qualitativamente, e esse é o legado que eles deixaram e deixam para a história: podemos e devemos aprender com nossos erros.

Às vezes até mais do que com nossos acertos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] RUSSELL, Bertrand. O Poder. São Paulo: Livraria Martins. 1941. Págs. 6 e segs.

[2] CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 12ª edição. 2018. Pág. 25.

[3] Idem.

[4] BECKER, Howard. S. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar. 1ed. 2008. Pág. 17.

[5] MLODINOW, Leonard. Elastic (Flexible Thinking in a time of Change). Rio de Janeiro: Zahar. 1.ed. 2018. Pág. 212 e segs.

[6] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar. 1. Ed. 1994. 2vs.

[7] “A person who is not liked or accepted as a member of a particular group, organization, or society and who feels different from those people who are accepted as members” (uma pessoa que não é apreciada ou aceita como membro de um grupo, organização ou sociedade em particular e que se sente diferente das pessoas que são aceitas como membros): dictionary.cambridge.org

[8] Que tem opiniões, pontos de vista diferentes; discordante, oposto (sentido figurado).

[9] Tendência, atitude ou procedimento de inconformado, de quem não aceita condições ou situações incômodas ou desfavoráveis. Tendência ou atitude de não se acatar passivamente o modo de agir e de pensar da maioria do grupo em que se vive.

[10] Ato ou efeito de revoltar(-se), grande perturbação; agitação. POR METÁFORA:perturbação, sentimento de raiva, de náusea que se expressa ger. em atitudes, opiniões mais ou menos agressivas; indignação, repulsa.

[11] Transgredir: não cumprir, não observar (ordem, lei, regulamento etc.); infringir, violar.

[12] Afastamento de um padrão de conduta considerado aceitável; erro, falha.

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domingo - 26/07/2020 - 05:44h

Tudo é igual de maneira diferente

Por Honório de Medeiros

(Para Numo Rama)

No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, nós todos, derreados na cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde.

Estamos no Sertão.

A mão esquerda, à distância, direciona a nobre cabeça do cavalo. A direita, terminando no dedo indicador esticado, direciona seus quartos, o “motor”. Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no final de tarde.Ouvem-se as cigarras, os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar, deixando seu registro sonoro. Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco, no qual um idoso “sensei” de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado em todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles.

Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios, pancadas e gritos?

“Uma questão de sinergia”, disse-me ele, logo depois. “A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados.”

Entendo o que ele diz, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. É algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, veste sua indumentária de fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

AS SEQUÊNCIAS COMEÇAM. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, as mesmas pedras onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. Essas imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real.

O claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe um leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens…

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de “GoRin No Sho”, o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura… Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há.

Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a estratégia para combater dez mil. Mas essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada.

O nada…

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Musashi, ele me dissera, antes: “tudo é igual, de maneira diferente…”

Então nos dispersamos. Dias singulares, esses. Cada um de nós percebe de forma muito própria a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf?

Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessa “maneira diferente” de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã é outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam. É hora de ouvir estrelas…

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 19/07/2020 - 08:02h

A tcheca

Por Honório de Medeiros

Nossa guia, em Praga, a quem tínhamos contratado desde o Brasil, via internet, para acompanhar nosso pequeno grupo – éramos nove – sorri algumas vezes, brinca outras, e é bastante acessível, o que a tornava diferente, aos meus olhos, da maioria dos seus compatriotas, bastante carrancudos.

Perguntei-lhe a razão desse estado de espírito. “O clima”, responde, em tom de brincadeira. Decerto aprendeu a brincar no Brasil, onde morou por seis anos, principalmente em Salvador, amou, casou, teve um filho com um baiano, e, em assim sendo, não poderia escapar incólume. Ela confirmou.Em português com pouco sotaque, embora às vezes errado nas declinações mais complexas dos verbos, ela atribui parcela considerável desse estado de espírito do seu povo à transição do comunismo para o capitalismo, e à fragmentação das expectativas dos tchecos em relação à Democracia.

“Antes”, diz ela, ajeitando os óculos “nerd” no nariz delicado, “nós não tínhamos liberdade para decidirmos nossas vidas, mas havia tranquilidade quanto ao presente e futuro: saúde, educação, moradia, trabalho…”  “Penso que as gerações anteriores sonharam com um mundo melhor no qual a ‘quase’ igualdade permanecesse, mas houvesse uma melhoria para todos nas condições gerais e, ainda por cima, liberdade”.

“O tcheco, de uma forma geral, é invejoso”, continua, assumindo um pouco o “physique du rôle” da antropóloga que disse ser, com diploma fornecido pela mais prestigiosa instituição universitária de seu País. Faço um parêntese para observar que escutei essa mesma observação, em Lisboa, feita por um português em relação a seus compatriotas.

“Mas é um invejoso justo: ele inveja o que o outro tem, querendo que todos tenham igual.” “Com o capitalismo, aos poucos está surgindo uma sociedade acentuadamente de classes, sem que os problemas mais antigos fossem resolvidos.”

Anete, esse é, em Português, o nome da nossa guia, espana a neve que vai caindo, minúscula, lentamente, por sobre seu elegante casaco azul escuro, nos diz que “no comunismo a divisão de classes era de outra forma, ou seja, a elite partidária possibilitava aos seus acesso à burocracia que lhes assegurava um status diferenciado.”

Já tínhamos feito um círculo em torno de Anete e a escutávamos atentamente. “Havia um contraponto natural à elite partidária comunista: os, digamos assim, intelectuais, que assumiram o controle após a queda do comunismo, e que se disseminavam, por exemplo, nas universidades secretas, onde se debatiam livros proibidos e se propunham alternativas para o modelo político existente.”

“Hoje há muitos saudosistas do comunismo. A Revolução de Veludo, na opinião deles, tirou as vantagens do comunismo e não acrescentou nenhuma do capitalismo…”

NÃO HÁ TEMPO PARA MUITA CONVERSA. Anete tem um trabalho a fazer, e o fez com competência, demonstrando conhecer, com profundidade, a história do seu povo. Levou-nos a lugares muito interessantes e nos contou, detalhadamente, o passado de cada um deles. Mas há sempre a hora de ir.

Quando os dias terminam, ela se vai pegar seu filho levando essa estranheza comovente de ter vivido em um País tão exótico, para os tchecos, quanto o Brasil. É assim que eles nos vêm.

Não somente. Além de ter vivido no Brasil, Anete amou um baiano de Salvador, e, do fruto desse amor, teve um filho que carrega consigo, uma mistura exótica de sangue brasileiro e tcheco, pelas ruas da República Tcheca. É estranho e comovente. Eu gostaria de lhe ter perguntado acerca de como aconteceu sua história de amor. Melhor não, pensei, e me contive.

Entretanto ainda lhe fiz uma última pergunta: você voltaria a morar no Brasil? “Não”, me disse. “O Brasil é muito bagunçado.” “Além do mais, este é meu povo, esta é minha história.” “Vou voltar lá muitas vezes; não quero que meu filho cresça sem conhecer suas raízes.” “Mas, não.” “Eu não voltaria.”

Seguiu Anete, após as despedidas, levando nossos cartões, pois nos disse que viria no final do ano ao Brasil, para as festas de aniversário do seu ex-sogro. Entrará em contato? Duvido. Entretanto, tudo é possível neste mundo de meu Deus. Afinal não aconteceu de uma tcheca vir a Salvador desenvolver um trabalho social, conhecer um baiano, casar-se com ele, e dele ter um filho?

Quem sabe ela não nos surpreenda?

Venha, Anete, é como lhe disse: nós a receberemos com imenso prazer. Quem sabe eu tenha coragem de lhe perguntar como foi sua história de amor no Brasil…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e da

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domingo - 12/07/2020 - 07:00h

Onde houve uma lagoa

Por Honório de Medeiros

Saímos cedo de Pau dos Ferros no rumo de Patos, na Paraíba. Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick. À noite, perguntamos ao recepcionista o porquê esse nome. Com um certo sarcasmo sertanejo ele nos disse: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito.” Franklin Jorge comentou: “se Cascudo tivesse estado aqui escreveria uma crônica com o seguinte título ‘Zurick em pleno Sertão paraibano’; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça”.

Fomos à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das 16h. Arrodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelos curtíssimos, vestido com uma camisa de mangas compridas abotoada nos pulsos, se aproximou maciamente.

Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça, embora não desmesurada, e nos entregou sua mão macia para apertarmos. Padre Francisco foi gentil, delicado.

Patos fica no sertão paraibano e tem aquela circulação intensa de gente no seu espaço comercial (Foto: Alex Costa)

Na livraria da cidade pedimos à vendedora obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local. Nada mais.

Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas… Pessoas iam e vinham rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar específico, para resolver algo.

Não havia pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de pára-brisa, tampouco deficientes físicos. Havia somente uma louca, personagem folclórica, que me abordou na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”. Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” disse-me o caixa da farmácia.

Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos, são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo já possui. Belas, as mulheres de Patos.

Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Belos dentes. Compõem um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupa nossos olhos quando caminhamos pelas ruas da cidade.

Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar há essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupõe uma interação constante entre as pessoas e que se opõe à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.

“Por que Patos?”, pergunto à Virgílio Trindade, a quem seu primo, também Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, procuramos por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, na tentativa de encontrar dois antigos amigos de meu pai, reputa como escritor.

Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, deu-nos, com uma voz característica de fumante e locutor, um seu livro de crônicas, “Relíquias”. Falou-nos do seu programa político: “é complicado”. “Por que?” “A gente está falando com alguém ao telefone e no ar e ele grita: eu voto em Lula! Já pensou?”

“Por que Patos?”, repito. “Havia, aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’” “Onde ficava”, insisti. “Ah, quem quer que tenha um quintal em casa diz que era lá.” E esboça um esgar de sorriso sarcástico no canto da boca.

Lelé: cultura popular (Foto: autor)

Virgílio Trindade nos indica outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos uma moçoila loura tão arrumada quanto decrépito era o prédio da Secretaria. Perguntou-nos se tínhamos marcado hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, pedindo-nos que aguardássemos o término de uma reunião.

Sentamo-nos durante breves cinco minutos e nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos, enfaticamente, a leitura dos discursos completos de José Sarney, apropriadíssima para moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.

Passamos no “troca-troca”. Um galpão aberto para todos os lados onde quem quiser, chega, e expõe sua mercadoria para vender ou trocar. Seu Antônio, um sertanejo idoso, mas rijo, nos acolhe com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede de pescar em açudes até rádios antigos.

“Troca-se qualquer coisa aqui, Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o troco.” “Você e seu pai são de onde?”, disse ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz que não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio: “ele é muito vaidoso”. Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas: “eu entendo como é…”

Quem nos recebeu à porta da casa simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador que primeiro fez dupla com Seu Chico Honório em sua breve carreira, foi sua esposa, baixinha, magrinha e enrugadinha. Tudo no “inha”. Abriu a porta que dava para uma área que antecedia a salinha de estar, e nos envolveu com um delicioso cheiro de alguma iguaria que estava sendo cozinhada no cominho.

Antônio de Lelé não estava, apesar de Dona Maria dizer que ele nunca saía de casa, fato desmentido diversas vezes ao longo do dia. Haveria algo freudiano nessa negação do óbvio? Finalmente damos com Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro Dantas na nossa frente, sem aquela impaciência que o distingue.

Antônio de Lelé conversa longamente com Seu Chico Honório pelo celular enquanto assediamos Dona Maria com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode no cominho. “O que acompanha?” “Arroz, farofa na gordura, uma saladinha.” “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada. Constrangida pelo cerco implacável, não entregava os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que convidava.”

Renunciamos ao ataque. Terminamos sem provar o bode. Nesse tempo, Antônio de Lelé já se despedia alegando que tinha que ir ao Banco, mas nos aguardava de tarde, e garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou várias vezes, tinha muita mentira.

Eu fiquei me lembrando de Orlando Tejo no meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado na cadeira de balanço a lançar fumaça de um cachimbo preto que empesteava o ambiente, falando acerca da Serra do Teixeira, onde há um marco que fica no meio de tudo, porque fica no meio do nada.

Escrever acerca do Homem e das Coisas e de suas relações. Existirão Coisas ou tudo, além do Homem, nada mais é que um sonho? E se este Universo nada mais for que um átomo dentre ilimitados outros de um Universo inconcebível que, por sua vez, é um átomo de um outro Universo inimaginável, tudo isso em escala infinita?

Virgílio e seus livros (Foto: autor)

Enquanto o carro avançava Sertão adentro, no rumo de Cajazeiras, nossa próxima etapa, ladeado pela vegetação típica do semiárido aqui e acolá matizada por um ipê-roxo, juazeiro ou quixabeira especialmente frondosos, e pelos serrotes despidos e enfeitados com pedras esculpidas aleatoriamente, que faziam ondular a paisagem, divagávamos acerca da relevância da pesquisa que fazíamos e mergulhávamos na Metafísica.

Mas a metafísica cansa e deprime, o mais das vezes, tamanha a vastidão daquilo que ela contém e tamanha nossa incapacidade. Voltamos ao concreto. O oceano bravio de questões que se tornou nosso assunto de viajem fez-nos correr em busca de um Porto Seguro: o dia-a-dia, o cotidiano, o detalhe mágico do andar felino do camponês que se prontificou, sem nos conhecer, a ir conosco em busca de um ex-vereador que, segundo ele, “sabia tudo” de Santa Terezinha, Município acerca de vinte quilômetros de Patos, onde tínhamos ido procurar o rastro de um tio de Massilon.

Nada encontramos. Somente esse andar felino, o português arcaico, a cidadezinha pequeníssima, a sensação de absoluta irrelevância de qualquer pressa. Não por outra razão, ao falar em pressa, diz o sertanejo que “o apressado é agoniado do juízo”. O “sabe-tudo” nada sabia. Ouvira falar que, antigamente… e coçava o rosto, empurrava o chapéu de couro para trás da cabeça e deixava o olhar vagando pelo cercado onde um menino tangia cabras para algum destino incerto.

Até logo, até logo, muito obrigado. Muito obrigado ao pessoal do Cartório que, nada encontrando do que procurávamos, nos fez encontrar outra pista. Muito obrigado a Dona Madalena, da Secretaria da Diocese de Patos. A senhora é tão boa, tão gentil, tão atenciosa, quanto é magra, pequenininha, delicada. E perfumada – a “Alma de Flores” – e elegante, naquela elegância anacrônica de moça velha que dedicou sua vida a secretariar Sua Excelência Reverendíssima, o Bispo Diocesano. E organizada, com seu birô impecável, onde duas caixetas, uma para “recebido”, outra para “devolvido”, cumpria a burocracia  temporal da Igreja, sua face terrena e humana, a “Cidade dos Homens” que se contrapõe à “Cidade de Deus”, da qual nos deu a conhecer Santo Agostinho.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/07/2020 - 09:10h

A estranha Pereiro

Por Honório de Medeiros

No pequeno cemitério localizado no centro da cidade – o antigo – de Pereiro, cidade duas vezes secular que se estende ao comprido e preguiçosamente entre serras, passeei entre os túmulos, as árvores e as flores com sua guardiã, Dona Maria, procurando o jazigo perpétuo de Décio Hollanda, aquele mesmo que quis tomar Apodi, no Rio Grande do Norte, pelas armas, através da valentia de Massilon, no final dos anos 20 do século passado.

Ela apontou os túmulos dos Hollanda: “são três; aqueles dois lá e este aqui, mas eu não sei quem é essa pessoa que o senhor está procurando”.

Voltamos para a entrada naquele caminhar desconexo de quem anda nos cemitérios antigos de cidades pequenas, tomando cuidado para não pisar em algum montículo inesperado que guardasse os restos mortais de alguém.

Eu lhe elogio a limpeza, a arborização, as flores do cemitério. “Obrigada”, diz. “Já faz vinte e cinco anos que estou aqui. Antes de mim era uma senhora com quem aprendi tudo e que também passou vinte e cinco anos.”

“É muito tempo”, falo quase que para mim mesmo. “Para eles, não”, responde, fazendo um arco amplo com o braço e envolvendo toda a área do cemitério.

Casa Grande dos Diógenes em Pereiro-CE, um endereço representativo no início do século passado (Foto: Honório de Medeiros)

Dona Maria é baixinha, moreno-clara, entroncada. Sexagenária, eu diria. Muito limpa e bem arrumada, nela não há sinal de desmazelo. Os cabelos não guardam qualquer fio branco. Seria pintura? Não, observo de perto. Filhos, netos, todos foram criados através do seu labor contínuo e obscuro entres velas, flores frescas ou murchas e os túmulos de seus conterrâneos.

“Qual o fato mais estranho que a senhora presenciou neste cemitério?” Ela para. Não hesita ao responder. Talvez a mesma história já tenha sido contada muitas vezes.

“Uma viúva” – começa, esboçando um olhar distante, “que chega sempre toda de preto para rezar naquele túmulo muito antigo encostado à parede. Ninguém sabe de quem ele é. O tempo já apagou, há muito, suas inscrições. Não temos qualquer documento a respeito. Eu mesma já pesquisei. Ela somente aparece quando não tem ninguém, além de mim, no cemitério. Passa por mim, eu dou bom dia ou boa tarde, respondido com um aceno de cabeça que intimida a gente, vai até o túmulo e reza em pé mesmo. Aí sempre acontece alguma coisa que me distrai e quando olho novamente ela já não está presente.”

“Alguém mais a viu?”

“Não, somente eu.”

Chegamos à entrada. “Espere”, diz. Desaparece por trás de algumas árvores e volta logo depois com uma flor branca entre os dedos. “Tome, é para o senhor”. “Ah, um bogari (jasminumsambac)!” “O senhor conhece?” “Era a flor predileta de minha mãe”.

Eu agradeço, tocado. Ela nota a minha emoção. Vou me afastando, a flor próxima ao nariz, linda, pura, perfumada. Depois, no mesmo dia, eu a ofereci à Castelã da Casa-Grande da Fazenda Trigueiro, onde Frei Damião procedeu ao ritual exorcista próprio para afastar almas penadas, mas isso é outra história…

DO FINAL DO SÉCULO XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, disse Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”.

Pedi à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, daria uma noção do tamanho da janela – bem maior que a cozinheira, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Quase o dobro. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais.

Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida da Suíça na época da construção.

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem porque, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos.

“Naquela época”, disse-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia ‘Campo Santo’ (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.”.

Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, é uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. E o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios” …

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis?”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, digo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.”

“Frei Damião esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.”

Pereiro, no sertão cearense (Foto: Honório de Medeiros)

“Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado acima. “Ficou tudo resolvido?”, pergunto. “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio, era o canto mais limpo.”

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da “Fazenda Trigueiro”. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda “Sabe Muito”, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, salvo engano.

Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela, tronco ancestral da família Fernandes do Rio Grande do Norte, que se espraiou pelo Alto Oeste, em um sentido, Mossoró, depois Natal, em outro.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 05/07/2020 - 04:48h

Não há mais lágrima para chorar

Por Ricardo Lagreca

Sim! Não há mais lágrima para chorar. Há  muita indignação para se mostrar. Sabíamos todos nós que iríamos atravessar um momento diferente  ao que estávamos acostumados a viver, carregado de um grau de complexidade muito acentuado, em todos os aspectos.

Mas, jamais ninguém poderia imaginar o que estava por acontecer.O povo ficar a mercê da sua própria sorte. Não! Isto em saúde, não pode existir.

Saúde pública é uma coisa séria, a primeira exigência que deve ser realizada a um governante, que tem o cargo ocupado,  exatamente para cuidar responsavelmente pelo seu povo. Em saúde, não se pode fazer políticas.

Estas políticas grosseiras, com a mesmice de sempre, que nunca visam o bem estar sustentado da coletividade. Apenas a  enganar a todos, para avançarem adiante, por mais um período de lavagem de ego e para nada de importante realizarem.

Os países que enfrentaram a pandemia, com a seriedade necessária, perderam as vidas próprias do grave processo da doença viral, que afligiu todo o mundo. Todavia, não houve as perdas que resultaram de um outro vírus, tão grave quanto. O desgoverno. Isto é o que vem acontecendo no nosso país. Com um governo sem rumo, desorientado, desagregador, apoiado por políticas mantenedoras do “status quo “.

Não permitiu em nenhum momento, que houvesse a unidade Federativa, tão necessária nesses momentos de tamanha gravidade e que possivelmente teria dado um outro rumo a esta tragédia. Os órgãos de classe, por sua vez, seguem a mesma trilha, fazem a mesma política e lavam as mãos.

A morbimortalidade dos profissionais de saúde observada entre nós, assume uma cifra que ultrapassa o esperado. A cada dia que se passa, sabemos de mais uma morte de um colega médico. Não deve ser assim.

Algo precisa ser feito para maior cuidado de quem por obrigação e uma  boa  dose de altruísmo, é submetido a uma possibilidade de maior  exposição ao vírus.

Precisamos que eles continuem vivos.  Precisamos e  muito, das lágrimas. Não podemos deixar que acabem.

Precisamos chorar de alegria, quando tudo isto passar.

Ricardo Lagreca é médico, professor e ex-secretário de Estado da Saúde Pública do RN

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Categoria(s): Artigo
terça-feira - 23/06/2020 - 12:22h
Aos Vivos!

Honório de Medeiros anuncia 3º livro da trilogia do cangaço

Durante o Carlos Santos – AOS VIVOS! dessa segunda-feira (22), às 21h, em nosso endereço na plataforma do Instagram – //www.instagram.com/blogcarlossantos -, o escritor Honório de Medeiros anunciou seu terceiro livro com a temática do cangaço.

Em breve estará à venda.

Focalizará Jesuíno Brilhante (Jesuíno Alves de Melo Calado, Patu-RN, 1844; Belém do Brejo do Cruz-PB, 1879), cangaceiro romantizado, mas que ele promete revelar por inteiro, em todas as facetas.

“Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins” e “Histórias de cangaceiros e coronéis” foram os outros títulos anteriormente publicados.

Acompanhe a integra do nosso bate-papo no vídeo dessa postagem, em que ele também fala sobre família, política, gestão pública, experiência na docência, adolescência, filosofia, sonhos, direito e jornalismo.

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domingo - 21/06/2020 - 10:48h

À lei, não basta a sua estrita legalidade ou legitimidade

Por Honório de Medeiros

À Lei não basta sua legalidade: tem que ser legítima.

Quando não o é, padece do mesmo vício que arruína a conquista pela força.

Não há distinção entre a mão pesada do indivíduo arrogante e a do Estado.

Assim, não cabe agasalharem-se na capa covarde do estrito legalismo[1], os que o fazem, para justificar interpretações, produções e aplicações da norma jurídica que firam tudo quanto cause repulsa ao cidadão comum, à Sociedade, à história das conquistas civilizatórias da humanidade, portanto.

No âmago da ação de lidar com a norma jurídica, seja no começo, quando a produzem; seja quando a interpretam; seja no fim, quando a aplicam, está o ato de criar próprio do ser humano e estranho a qualquer lógica, que é anterior ao ordenamento jurídico.

No âmago do ato de cria-la está, e não pode ser diferente, tudo quanto constitui o caráter, a história e o destino do ser humano.

Tampouco cabe fundearem, aqueles que lidam com a Lei, sua ignorância ou astúcia solerte, no legitimismo ou garantismo[2] que despreza a norma jurídica, com fulcro em um suposto conhecimento prévio do que seja certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mal, desprezando, assim, os fundamentos básicos da democracia e da vontade popular.

E o que leva algum integrante de um Supremo Tribunal (STF), a crer que essa instituição possa ir além da própria Constituição?

A crença de que o Tribunal tudo pode, pode tudo. Que compete a eles, seus integrantes, dizerem o que seja o melhor para a Sociedade, como se lê do que segue:

Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.” (Ministro Teori Zavaski; AI nos EREsp 644.736/PE, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170).

Tal é o cerne da doutrina do realismo jurídico, sinteticamente expresso na afirmação de Oliver Wendell Holmes, Jr., antigo ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é” (“the law is what the courts say it is”), visceralmente contrário à tradição jurídica nacional e ao que o povo brasileiro, por intermédio de seus constituintes, em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte, escolheu para si, e o expressou no Princípio da Legalidade, inciso II, do artigo 5º, enquanto Cláusula Pétrea: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Cujo desdobramento, em matéria penal, está no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra cláusula pétrea.

Mais claro, impossível.

Celso de Mello já se referiu ao princípio da legalidade como um dos princípios mais importantes no Direito Constitucional; o principio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, e que este é a essência do Estado de Direito, pois lhe dá identidade própria.”

Mas como se nada disso significasse coisa alguma, nossos ministros enveredam pela doutrina do Realismo Jurídico, em sua versão tupiniquim, esgrimida enquanto arma de Poder, e manda um aviso claro ao Congresso e ao Poder Executivo: “mandamos nós; obedece quem tem juízo”.

Pior: ao fazê-lo, ferem, mortalmente, o princípio da soberania da vontade popular, tão importante que se encontra no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal:

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania – pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

“Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral”; (…)

Ao concretizar a ação de sua vontade, produzindo, interpretando ou aplicando a norma jurídica, o operador do Direito se revela ao mundo tal qual é, em seu heroísmo ou vileza.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] Legalismo: teoria jurídica que prega a interpretação fria (“ipsis litteris”) da norma jurídica positiva, ou seja, aquela constante dos códigos e legislações; para o legalista, pau é pau, e pedra é pedra, e não existe nada entre uma coisa e outra; às vezes são denominados, pelos apedeutas, de positivistas, demonstrando, assim, que a estratégia de desconstrução do óbvio, por parte de quem o deseje, não pertence apenas à Política e sua incrível capacidade de demonizar reputações; idolatram Heráclito de Éfeso, um pré-socrático, por ter afirmado que “o povo deve lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade”.

[2] Legitimismo ou Garantismo: confusa teoria jurídica que entende a norma jurídica como uma casca ou invólucro cujo recheio, ao interpretá-la, será composto a partir da noção individual ou particular específica acerca do que seja “O Justo”, “O Certo”, “O Bem Social”, etc., para cada juiz; solipsismo jurídico; crença na onisciência do juiz enquanto alguém capaz de saber, mais que a própria Sociedade, o que é bom ou ruim, justo ou injusto, certo ou errado, para cada um dos outros, ou para todos de uma só vez; desapreço ou descrença oblíqua na capacidade da Sociedade de regular seu próprio Destino.

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Categoria(s): Artigo
quinta-feira - 18/06/2020 - 05:00h
No Instagram

Honório de Medeiros é o próximo nome do “Aos Vivos!”

Na sexta edição do projeto Carlos Santos – AOS VIVOS! teremos outro convidado ilustre.

O professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN Honório de Medeiros estará conosco a partir das 21 horas da próxima segunda-feira (22).Encontro marcado em nosso endereço no Instagram – www.instagram.com/blogcarlossantos para jogarmos conversa fora, não fazer um monte de coisas e sei lá o quê.

Ele terá oportunidade de falar como era o companheiro Matusalém nos quase 900 anos de vida (segundo a Bíblia), qual o último casal de animais a embarcar na arca (de Noé, claro) e se a obra do Zigurate de Ur na Suméria começou mesmo pelo lado Norte, já que era muito amigo do engenheiro responsável.

Anote esse compromisso.

Até lá

Leia também: Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró em 1927? (texto de Honório de Medeiros)

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Categoria(s): Comunicação / Comunicado do Blog
  • Repet
domingo - 14/06/2020 - 05:44h
História

Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró em 1927?

Ataque a Mossoró completa 93 anos, mas têm enredo incompleto, com lacunas que o tempo não sanou

Por Honório de Medeiros

Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró, em 13 junho de 1927 (que nesse sábado – 13 de junho de 2020 – fez 93 anos)? Não o planejador ou o executor, mas o idealizador?

Sabemos que o planejamento coube ao Coronel Isaías Arruda, a Massilon, e a Lampião. A execução, a Massilon e Lampião.

Mas quem foi seu idealizador?

O ponto de partida para respondermos essa pergunta é a análise da participação, no episódio, desses três personagens principais: Lampião, o Coronel Isaías Arruda, e Massilon.

Massilon, coronel Isaías Arruda do Ceará e Lampião fazem parte de um intrincado jogo de poder e crime (Fotomontagem BCS)

A importância deles é tal, que sem qualquer um dos três, não teria havido a invasão. Todos os outros participantes são secundários, embora possam ser importantes.

Entretanto, Lampião pode ser retirado, com alguma segurança, dentre os possíveis idealizadores, por uma razão muito simples: Jararaca, testemunha da conversa entre o cangaceiro e  o Coronel Isaías Arruda, acerca do projeto de ida a Mossoró, foi muito claro quando afirmou que nunca houve a intenção, do bando, de penetrar no Rio Grande do Norte.

Manoel Francisco de Lucena Filho, o “Ferrugem”, Manoel Ferreira, o “Bronzeado”, assim como Francisco Ramos de Almeida, o “Mormaço”, disseram o mesmo.

Três personagens e um ataque improvável

E é praticamente consenso na literatura do cangaceirismo, a resistência inicial de Lampião de levar a frente tal aventura.

Sobram o Coronel Isaías Arruda e Massilon.

O Coronel Isaías Arruda também poderia ser retirado, levando-se em consideração o seguinte: ele não chamou Lampião a Aurora, pois vinha sendo pressionado insistentemente pelo Governador do Estado, José Moreira da Rocha, o “Moreirinha”, seu aliado, para se afastar de cangaceiros e jagunços. “Moreirinha”, por sua vez, sofria intensa pressão do Governo Federal nesse sentido.

Mas é notória a participação do Coronel no ataque a Apodi, em 10 de maio de 1927. Como é notório o viés político desse ataque: Coronéis cearenses, paraibanos e potiguares agiram em conjunto, nas sombras, contra a liderança do Coronel Chico Pinto, em crime executado por Massilon.

Alvo, prefeito fez defesa em sua casa ao lado da São Vicente (Fotomontagem BCS)

Então, é de se supor que o Coronel Isaías Arruda não chamou Lampião, mas aproveitou a oportunidade de sua chegada repentina.

Dizemos que aproveitou a oportunidade porque, aparentemente, o projeto de invadir Mossoró já existia há algum tempo e, para tanto, Massilon já recrutava cangaceiros pelo Sertão paraibano, provavelmente em comum acordo com o Coronel.

Existem dois fatos que asseguram a forte ligação entre o Coronel Isaías Arruda e Massilon, fundada em interesses mútuos:

a)      em junho de 1926, Massilon e José Gonçalves de Figueiredo mataram João Vieira, em uma emboscada cujo objetivo era eliminarem integrantes da família Paulino, inimigos figadais do Coronel Isaías Arruda. Isso significa que Massilon era da mais estrita confiança do Coronel[1];

b)      em maio de 1927, Massilon atacou Apodi, executando projeto do Coronel Isaías Arruda e seu sobrinho José Cardoso, a pedido de Décio Holanda, genro de Tylon Gurgel, chefe da oposição ao Coronel Chico Pinto naquela cidade.

O recrutamento de cangaceiros por Massilon, no intuito de invadir Mossoró, pode ser indiretamente comprovado: antes de Lampião chegar inesperadamente a Aurora, ele não sabia, mas o projeto de invadir Mossoró já existia. É o que se lê às folhas 30, da quarta edição de A Marcha de Lampião[2], Raul Fernandes, no item 2, do 1º Capítulo:

“Em dezembro de 1926, Joaquim Felício de Moura, sócio da firma Monte & Primo, em Mossoró, viajava pelo interior da Paraíba. Na cidade de Misericórdia, encontrou-se com o destacado comerciante e fazendeiro Antônio Pereira de Lima, que lhe falou da acirrada perseguição do bandido Virgulino Ferreira à sua família. Sem maiores rodeios, contou-lhe o plano de Jararaca, Sabino, Massilon e Lampião de assaltarem Mossoró com quatrocentos homens. Adiantou ser impossível reunirem tanta gente. Advertiu-o, porém, sobre o costume de mandarem espiões disfarçados de feirantes, mendigos e cantadores, aos lugares previamente escolhidos. Conversou sobre a possibilidade de defesa da cidade e pediu-lhe levar esses fatos ao conhecimento do Prefeito Rodolpho Fernandes.

Daí por diante os boatos se sucederam. Na última quinzena de abril, 27, a notícia veio à luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal, escreveu ao compadre Rodolpho Fernandes sobre a pretensão do chefe dos bandidos. Dos remotos sertões de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa empreitada”.

Em “Notas” (p. 40) ao 1º Capítulo, Raul Fernandes observou:

“Afonso Freire de Andrade e inúmeras outras pessoas conheceram a carta. Mossoró (RN), 23.12.1971. – Informações prestadas ao autor.

Obs.: Ouvi de meu pai referências à missiva”[3].

Quanto a Argemiro Liberato, no meu Histórias de Cangaceiros e Coronéis[4] (p. 119), transcrevo artigo de Kydelmir Dantas, cofundador e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), intitulado Cartas e Bilhetes Antes de Lampião, no qual se lê o que segue:

“Esta carta[5] foi levada ao conhecimento dos amigos de confiança do prefeito, por este, que estavam preparando a estratégia para a formação das trincheiras nos pontos principais da resistência. Dentre estes, Joaquim Felício de Moura, Afonso Freire de Andrade e outras pessoas mais chegadas confirmaram tê-la visto nas mãos do ‘coronel Rodolpho’.

Argemiro, com sua 2ª esposa, Maria Amorim Mafalda de Alencar, alertou (Reprodução BCS)

Para a família, dias após o ataque, Rodolpho Fernandes fez referências sobre esta missiva do amigo paraibano de Pombal.

Outra confirmação do envio desta carta está no artigo “Major Argemiro Liberato de Alencar: o amigo de Rodolpho Fernandes”, escrito pelo seu neto Geraldo Alves de Alencar, hoje residente em São Luiz do Maranhão, que cita o seguinte sobre o avô:  ‘Era fazendeiro, proprietário da Fazenda Estrelo, situada em sua cidade natal. Exercia também a profissão de comerciante, trazendo da Paraíba algodão transportado em costas de burros e vendido em Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. O principal comprador era a firma cujo maior acionista era seu amigo e compadre o Cel. Rodolfo Fernandes.

Em suas viagens como almocreve retornava a Pombal com sal e outros gêneros. Mesmo tendo um sobrinho nas hostes do cangaço, o qual atendia pelo nome de Ulisses Liberato de Alencar, Argemiro era profundamente contra o banditismo rural, chegando inclusive a avisar ao Cel. Rodolfo Fernandes, quando este era prefeito de Mossoró em 1927, que o cangaceiro tencionava atacar a cidade considerada capital do oeste potiguar.

Declaradamente anti-Lampiônico, Argemiro Liberato de Alencar nunca chegou a ser perseguido pelo “rei do cangaço” porque Lampião sabia da amizade existente entre ele e o Padre Cícero.’

Evidentemente o aviso não era acerca de um futuro ataque de Lampião, mas, sim, de um futuro ataque de cangaceiros”.

Provavelmente Joaquim Felício estivesse errado quanto a José Leite de Santana, o Jararaca. Como nos assevera Frederico Pernambucano de Mello[6], a área de atuação do cangaceiro eram as ribeiras do Moxotó e Pajeú, em Pernambuco. E o próprio Jararaca, declarou, quando preso em Mossoró, além de outros cangaceiros, que Lampião nunca pensara em atacar a cidade[7].

Já Sabino Gomes de Góis, embora atuasse nos arredores do município de Cajazeiras, Paraíba, estava, naquele momento, integrado ao bando de Lampião, desde o ataque à Souza, no mesmo Estado, em 27 de julho de 1924, do qual não se separara até sua morte (dele), em fevereiro de 1928, após o conhecido tiroteio de Piçarra, em Porteiras, Ceará.

Ora, se Sabino tinha intenção de aventurar-se até Mossoró, é evidente que Lampião seria o primeiro a sabê-lo. Repita-se, entretanto: Lampião nunca teve a intenção de invadir o Rio Grande do Norte. Sequer sabia da existência desse projeto. Os escritos acerca da história da invasão de Mossoró são consensuais quanto a isso, a partir dos depoimentos de vários cangaceiros, dentre eles, Jararaca.

Capela de São Vicente simboliza o núcleo da resistência ao ataque do dia 13 de junho de 1927 (Foto: reprodução BCS)

Ainda a favor dessa hipótese, a de que o ataque foi idealizado bem antes de sua realização há, também, além da correspondência de Argemiro Liberato e do recado de Joaquim Felício, a notícia veiculada pelo “O Mossoroense” de 15 de maio de 1927, de que na invasão de Apodi, por Massilon, o projeto de invadir Mossoró já existia, insinuando, sem rodeios, que essa pretensão, a ocorrer em dias vindouros, integrava empreitada de grande vulto, e dele dera conhecimento, ao Coronel Rodolpho Fernandes, a carta de Argemiro Liberato.

Observe-se que essa edição de “O Mossoroense”, jornal dirigido por Rafael Fernandes, primo e correligionário do Coronel Rodolpho Fernandes, veio a lume cinco dias após a invasão de Apodi por Massilon.

Basta, então, darmos a devida importância à ligação entre essa matéria do jornal e a anterior correspondência de Argemiro Liberato encaminhada ao Prefeito, bem como ao recado de Joaquim Felício.

Muitas interrogações

Se assim o é, se de fato o Coronel Isaías Arruda e Massilon trabalharam juntos nessa empreitada antes da chegada de Lampião, desde, pelo menos, meados de 1926, se a ambos podemos atribuir todo o planejamento do projeto, a pergunta, agora passa a ser outra: foram eles que idealizaram (arquitetaram) o projeto da invasão a Mossoró?

É muito difícil acreditar que Massilon recrutasse cangaceiros e jagunços pelo Sertão, sem que disso soubesse o Coronel Isaías Arruda.

Outra questão: por que Mossoró? Por que não Cajazeiras, Souza, Patos ou Pombal, na Paraíba? Caicó, Currais Novos, São Miguel, Pau dos Ferros ou Martins, no Rio Grande do Norte, ou as cidades do Vale do Jaguaribe, no Ceará, se o objetivo fosse meramente arrancar dinheiro?

E se o objetivo era meramente arrancar dinheiro, por que o alvo do ataque foi a residência do Coronel Rodolpho Fernandes, e, não, a agência do Banco do Brasil ou o comércio da cidade?

Então, cabe perguntar: quem, na verdade, idealizou (arquitetou) o ataque a Mossoró?

Qualquer que seja a resposta, de tudo quanto se disse algo fica claro: o Coronel Isaías Arruda e Massilon foram os grandes responsáveis pela invasão de Mossoró. Principalmente Massilon, que planejou com o Coronel, e executou com Lampião.

Ele é o personagem principal desse drama épico, e somente é possível uma história de tudo quanto aconteceu, uma história que tenha causas e efeitos, e não apenas a descrição horizontal do acontecimento em si, se o investigarmos, bem como suas conexões com os coronéis da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, para os quais “jagunçou”, mas sempre como chefe de bando.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] Conforme Vida e Morte de Isaías Arruda; TAVARES CALIXTO JÚNIOR, João. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora; 2019.

[2] Natal: Editora Universitária, 1982.

[3] Raul Fernandes era filho do Coronel Rodolpho Fernandes.

[4] MEDEIROS, Honório de. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

[5] A de Argemiro Liberato para o Coronel Rodolpho Fernandes.

[6] “GUERREIROS DO SOL”; 2a. edição; A Girafa; 2004; São Paulo, SP.

[7] No “Auto de Perguntas” feitas a Jararaca consta, também, a seguinte declaração sua: “que saíram em dias do mês de maio findo, do Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano”. Antes de Lampião, Jararaca, ainda segundo seu depoimento, estava no Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade, com a Coluna Potiguara (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).

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Categoria(s): Artigo / Reportagem Especial
domingo - 17/05/2020 - 07:26h
Política e banditismo

Os estreitos laços entre o cangaço e o coronelismo

Em entrevista, escritor Honório de Medeiros mergulha nas entranhas do poder no sertão nordestino

Um dos articulistas perpétuos do Blog Carlos Santos, o professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN Honório de Medeiros prestou significativo depoimento ao pesquisador do fenômeno do cangaço, como ele, Aderbal Simões Nogueira.

O vídeo constante dessa postagem, na íntegra, é o resultado dessa entrevista concedida por Honório a Aderbal, que trabalha como documentarista, tendo o cangaço como conteúdo predominante.

Conexões entre política, coronéis e cangaceiros, personagens que estão interligados no ataque do bando de Lampião a Mossoró, a produção literária sobre o tema, o aprofundamento científico à temática, memórias do grande estudioso (in memoriam) Paulo Gastão, a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), novo livro que desnudará o cangaceiro Jesuíno Brilhante e outros aspectos subjacentes estão no depoimento.

Não teria havido a invasão de Mossoró se não fosse Massilon (cangaceiro) – dispara.

Honório de Medeiros chegou a escrever um livro tendo esse personagem como foco principal. Porém seu trabalho vai além da historicidade de um bandido, pois avança em outras direções que se interligam.

Formam um quebra-cabeça complexo sobre o poder no sertão nordestino na primeira metade do século passado, bem como os laços entre coronéis e bandos de facínoras.

Aproveite essa ótima entrevista.

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Categoria(s): Cultura / Gerais
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 10/05/2020 - 11:22h

De ser ou não alienado

Por Honório de Medeiros

A verdade é filha da discussão, e não da simpatia” (A Filosofia do Não, Gaston Bachelard)

Ausentar-se de si mesmo e viver a realidade do(s) outro(s), não aquela em-si-mesma (coisas ou fatos), que é extensão do Ser, projeção de como a percebemos, na justa medida em que, no limite último de cada coisa ou fato observado está uma ideia ordenadora da realidade.

“No princípio era o Verbo” (João, 1). Essa ausência de si denominamos alienação.

Se de mim me ausento não apreendo o Outro, apenas percebo nossas sombras a se moverem na parede de uma caverna existencial onde estamos prisioneiros, como na célebre alegoria de Platão em “A República”.

Tudo, então, é aparência.

Não por outra razão o “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates.

Conhecermo-nos a nós mesmo implica em dizer não à aparência, a duvidar daquela sombra na caverna.

Somente estamos livres da ilusão quando ousamos dizer não ao que nos aprisiona, nos acorrenta, nos impede de perceber a realidade como de fato ela é. Ser ou não ser alienado, na verdade, é Conhecer ou não Conhecer, eis a questão, eis o caminho.

Por isso nos provoca Bachelard:

– “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo
domingo - 26/04/2020 - 11:26h

Homem, quem és tu?

Por Honório de Medeiros

Esse homem que o acaso colocou em minha frente é uma incógnita. Nada sei a seu respeito.

Se observo os detalhes que a sua aparência externa coloca ante meus olhos, e concluo algo, posso incidir em um oceano de erros.

Afinal, sob seu verniz de civilização pode se ocultar qualquer ignomínia.Não faz pouco tempo, foi ele gentil com uma criança.

Vi, mesmo, de soslaio, a mãe da criança lhe sorrir complacente, como quem acha muito natural receber, sua cria, as atenções do mundo. O gesto me fez lembrar as contradições do ser humano.

Ele mesmo, o observado, que desarrumou, com um afago, os cachos do cabelo da criança, em outra ocasião, outra circunstância, uma guerra, talvez ordenasse um bombardeio que vitimaria tantos outros sorrisos infantis.

Pode ser que eu não fale a mesma linguagem que ele. Quantas formas há de entender uma só palavra?

Difícil atividade, a dos lógicos, a dos filósofos da linguagem, que pretendem descobrir o meio de diminuir a distância entre aquilo que percebo e o que digo.

Se lhe chamasse a atenção e perguntasse, comentasse algo, poderíamos divergir tanto, e acerca de coisas tão banais…

“Todavia, entre mim e esse homem glacial, sinto todos os espaços vazios que separam os homens”. É como disse Saint-Exupèry, em um artigo para o Paris-Soir, em 1935, contando sua experiência de viajar, à noite, em um trem repleto de mineiros poloneses que voltavam à sua terra natal, expulsos da França pelas contingências da economia.

Vazios semelhantes àqueles expressados por T. S. Elliot, em A Terra Desolada: a angústia da constatação da impossibilidade da comunicação humana; a percepção de sua solidão essencial, primitiva, única. Poderia o amor, esse sentimento tão tipicamente cristão, aproximar os homens?

Desnudar suas almas, lhes fazer não rir, nem chorar, mas compreender, como queria Spinoza?

Dar, a eles, a capacidade de transcender a mesquinha luta pela sobrevivência, que coloca em lados opostos os que deveriam semear juntos?

Ou essa é uma missão utópica, e não há tempo para sentir quando não conseguimos refletir acerca da misteriosa rede de aliciamento e cooptação que nos induz a darmos o pior de nós mesmos em praticamente todos os momentos da vida?

Podemos ter alguma esperança, mesmo depois de tantos milhares de anos de aperfeiçoamento na capacidade de destruir, matar, esmagar, e nenhum progresso quanto a fraternidade humana?

Saint-Exupèry, esse tão injustamente banalizado filósofo da melancolia, da nostalgia, já dissera: “É absolutamente necessário falar aos homens”.

Em sua “Carta ao General X”, escrita em La Marsa, perto de Túnis, julho de 43, para o Le Figaro Littéraire, denunciou: “Ah!, General, só existe um problema, um único, em todo o mundo. Restituir aos homens uma significação espiritual, inquietações espirituais. Não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo?”

Um sentido para a vida.

Teria a vida sentido?

Se nos indagassem: “homem, que és tu?”, teríamos que responder “aquele em cuja biblioteca os livros de poesia perderam seu lugar para os de computação?”.

Meu companheiro anônimo se fora.

Tinha perdido, eu, a chance de lhe falar acerca de tudo isso que poderia nos aproximar ou afastar: a solidão, o sentido da vida…Não seria dessa vez que construiríamos uma ponte entre a clausura de nossas almas.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Mossoró e Governo do RN.

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 19/04/2020 - 08:48h

Seu Chico Piu e a Teoria da Evolução

Por Honório de Medeiros

Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais apareço magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele inesquecível passeio a cavalo, eu e um amigo que me hospedava, até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo.

Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de tristeza toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, diriam os franceses.

Naquela tarde conheci “Seo” Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular.

Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa, cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo ao seu cacique.

“Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que impressionava eram seus pés. Estes, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, foi em tempos muito idos, segundo suas próprias palavras.

Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, e sua família confirmava, descia descalço até mesmo para a cidade, onde raramente ia. E, nos pés, não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura.

“Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Junto a eles, colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as… Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Um general a conduzir seu exército com doçura, mas com firmeza.

Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro, que se espargiam serra abaixo, tendo a Casa Grande como epicentro. Vivesse no Sertão nordestino e nele tivesse aquela terra e todo aquele gado seria um homem de posses, por assim dizer.

No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada a chegar, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida, dos homens e das coisas.

Mas tudo que é bom dura pouco.

Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua, a passo leve, nas trilhas estreitas, para manter a compostura ameaçada pela bebida e a possibilidade de se envolver com a beleza da serra sob o luar.

Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula mansa que me conduzia, apontou para mim e para si próprio, e como que refletindo, me disse para guardar comigo que o tempo havia lhe ensinado ser a vida, acerca da qual tanto havíamos falado, como uma serra de onde cada um descia na justa medida em que outro subia lhe tomando o lugar.

Dito isso, me lembrou que “seu pensamento” se tratava de um presente, assim como a garrafa da mais pura cachaça de sua moenda que me passou às mãos, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros tocados pelo sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, desconhecendo meu conhecimento sorvido dos livros acerca da teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele concluíra somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Mossoró e Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/04/2020 - 08:54h

Dona Efigênia em sua teia

Por Honório de Medeiros

Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei. Muito gorda, um pouco surda – talvez por puro cálculo –, passava o dia sentada em uma cadeira de balanço com espaldar de palhinha na sua ampla sala de estar, que dava para um jardim lateral, onde ficava o portão de ferro batido, pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo.

Casa antiga, senhorial, de esquina.

Sempre perfumada alfazema, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro, tirando as fartas refeições, colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias, na qual reinavam o telefone e o rádio. Tempos antigos.

“Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam”.

Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la quando ia à sua cidade. Que era a nossa. Tenho certeza de que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente.

Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustrava alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente interessante, a revelar um agudo poder de observação e análise.

Pois Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável deixada pelo falecido, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns.

Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia, ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone.

Devo ter esquecido alguma coisa, óbvio, mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela em silêncio escutando, até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo estrategicamente colocado perto da cadeira de balanço, e cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava era dada por encerrada.

Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam que ela era o tipo acabado da velha fofoqueira.

Depois de algum tempo compreendi que criara essa camuflagem. Era assim mesmo que queria ser enxergada. A camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária.

Através da colheita de informações, ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno. Talvez alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado. Pequenas grandes mazelas.

Então entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, e a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar…

E, assim, disfarçadamente, realizava um metódico, complexo e minucioso bordado social. Bordado do bem.

Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor.

Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua.

Paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada na sua cadeira de balanço, abro seu breviário, e me ponho a ler, e essa é a minha oração em louvor de sua memória.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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