domingo - 26/07/2020 - 05:44h

Tudo é igual de maneira diferente

Por Honório de Medeiros

(Para Numo Rama)

No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, nós todos, derreados na cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde.

Estamos no Sertão.

A mão esquerda, à distância, direciona a nobre cabeça do cavalo. A direita, terminando no dedo indicador esticado, direciona seus quartos, o “motor”. Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no final de tarde.Ouvem-se as cigarras, os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar, deixando seu registro sonoro. Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco, no qual um idoso “sensei” de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado em todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles.

Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios, pancadas e gritos?

“Uma questão de sinergia”, disse-me ele, logo depois. “A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados.”

Entendo o que ele diz, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. É algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, veste sua indumentária de fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

AS SEQUÊNCIAS COMEÇAM. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, as mesmas pedras onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. Essas imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real.

O claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe um leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens…

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de “GoRin No Sho”, o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura… Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há.

Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a estratégia para combater dez mil. Mas essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada.

O nada…

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Musashi, ele me dissera, antes: “tudo é igual, de maneira diferente…”

Então nos dispersamos. Dias singulares, esses. Cada um de nós percebe de forma muito própria a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf?

Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessa “maneira diferente” de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã é outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam. É hora de ouvir estrelas…

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/07/2020 - 08:02h

A tcheca

Por Honório de Medeiros

Nossa guia, em Praga, a quem tínhamos contratado desde o Brasil, via internet, para acompanhar nosso pequeno grupo – éramos nove – sorri algumas vezes, brinca outras, e é bastante acessível, o que a tornava diferente, aos meus olhos, da maioria dos seus compatriotas, bastante carrancudos.

Perguntei-lhe a razão desse estado de espírito. “O clima”, responde, em tom de brincadeira. Decerto aprendeu a brincar no Brasil, onde morou por seis anos, principalmente em Salvador, amou, casou, teve um filho com um baiano, e, em assim sendo, não poderia escapar incólume. Ela confirmou.Em português com pouco sotaque, embora às vezes errado nas declinações mais complexas dos verbos, ela atribui parcela considerável desse estado de espírito do seu povo à transição do comunismo para o capitalismo, e à fragmentação das expectativas dos tchecos em relação à Democracia.

“Antes”, diz ela, ajeitando os óculos “nerd” no nariz delicado, “nós não tínhamos liberdade para decidirmos nossas vidas, mas havia tranquilidade quanto ao presente e futuro: saúde, educação, moradia, trabalho…”  “Penso que as gerações anteriores sonharam com um mundo melhor no qual a ‘quase’ igualdade permanecesse, mas houvesse uma melhoria para todos nas condições gerais e, ainda por cima, liberdade”.

“O tcheco, de uma forma geral, é invejoso”, continua, assumindo um pouco o “physique du rôle” da antropóloga que disse ser, com diploma fornecido pela mais prestigiosa instituição universitária de seu País. Faço um parêntese para observar que escutei essa mesma observação, em Lisboa, feita por um português em relação a seus compatriotas.

“Mas é um invejoso justo: ele inveja o que o outro tem, querendo que todos tenham igual.” “Com o capitalismo, aos poucos está surgindo uma sociedade acentuadamente de classes, sem que os problemas mais antigos fossem resolvidos.”

Anete, esse é, em Português, o nome da nossa guia, espana a neve que vai caindo, minúscula, lentamente, por sobre seu elegante casaco azul escuro, nos diz que “no comunismo a divisão de classes era de outra forma, ou seja, a elite partidária possibilitava aos seus acesso à burocracia que lhes assegurava um status diferenciado.”

Já tínhamos feito um círculo em torno de Anete e a escutávamos atentamente. “Havia um contraponto natural à elite partidária comunista: os, digamos assim, intelectuais, que assumiram o controle após a queda do comunismo, e que se disseminavam, por exemplo, nas universidades secretas, onde se debatiam livros proibidos e se propunham alternativas para o modelo político existente.”

“Hoje há muitos saudosistas do comunismo. A Revolução de Veludo, na opinião deles, tirou as vantagens do comunismo e não acrescentou nenhuma do capitalismo…”

NÃO HÁ TEMPO PARA MUITA CONVERSA. Anete tem um trabalho a fazer, e o fez com competência, demonstrando conhecer, com profundidade, a história do seu povo. Levou-nos a lugares muito interessantes e nos contou, detalhadamente, o passado de cada um deles. Mas há sempre a hora de ir.

Quando os dias terminam, ela se vai pegar seu filho levando essa estranheza comovente de ter vivido em um País tão exótico, para os tchecos, quanto o Brasil. É assim que eles nos vêm.

Não somente. Além de ter vivido no Brasil, Anete amou um baiano de Salvador, e, do fruto desse amor, teve um filho que carrega consigo, uma mistura exótica de sangue brasileiro e tcheco, pelas ruas da República Tcheca. É estranho e comovente. Eu gostaria de lhe ter perguntado acerca de como aconteceu sua história de amor. Melhor não, pensei, e me contive.

Entretanto ainda lhe fiz uma última pergunta: você voltaria a morar no Brasil? “Não”, me disse. “O Brasil é muito bagunçado.” “Além do mais, este é meu povo, esta é minha história.” “Vou voltar lá muitas vezes; não quero que meu filho cresça sem conhecer suas raízes.” “Mas, não.” “Eu não voltaria.”

Seguiu Anete, após as despedidas, levando nossos cartões, pois nos disse que viria no final do ano ao Brasil, para as festas de aniversário do seu ex-sogro. Entrará em contato? Duvido. Entretanto, tudo é possível neste mundo de meu Deus. Afinal não aconteceu de uma tcheca vir a Salvador desenvolver um trabalho social, conhecer um baiano, casar-se com ele, e dele ter um filho?

Quem sabe ela não nos surpreenda?

Venha, Anete, é como lhe disse: nós a receberemos com imenso prazer. Quem sabe eu tenha coragem de lhe perguntar como foi sua história de amor no Brasil…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e da

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domingo - 12/07/2020 - 07:00h

Onde houve uma lagoa

Por Honório de Medeiros

Saímos cedo de Pau dos Ferros no rumo de Patos, na Paraíba. Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick. À noite, perguntamos ao recepcionista o porquê esse nome. Com um certo sarcasmo sertanejo ele nos disse: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito.” Franklin Jorge comentou: “se Cascudo tivesse estado aqui escreveria uma crônica com o seguinte título ‘Zurick em pleno Sertão paraibano’; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça”.

Fomos à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das 16h. Arrodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelos curtíssimos, vestido com uma camisa de mangas compridas abotoada nos pulsos, se aproximou maciamente.

Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça, embora não desmesurada, e nos entregou sua mão macia para apertarmos. Padre Francisco foi gentil, delicado.

Patos fica no sertão paraibano e tem aquela circulação intensa de gente no seu espaço comercial (Foto: Alex Costa)

Na livraria da cidade pedimos à vendedora obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local. Nada mais.

Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas… Pessoas iam e vinham rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar específico, para resolver algo.

Não havia pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de pára-brisa, tampouco deficientes físicos. Havia somente uma louca, personagem folclórica, que me abordou na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”. Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” disse-me o caixa da farmácia.

Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos, são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo já possui. Belas, as mulheres de Patos.

Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Belos dentes. Compõem um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupa nossos olhos quando caminhamos pelas ruas da cidade.

Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar há essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupõe uma interação constante entre as pessoas e que se opõe à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.

“Por que Patos?”, pergunto à Virgílio Trindade, a quem seu primo, também Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, procuramos por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, na tentativa de encontrar dois antigos amigos de meu pai, reputa como escritor.

Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, deu-nos, com uma voz característica de fumante e locutor, um seu livro de crônicas, “Relíquias”. Falou-nos do seu programa político: “é complicado”. “Por que?” “A gente está falando com alguém ao telefone e no ar e ele grita: eu voto em Lula! Já pensou?”

“Por que Patos?”, repito. “Havia, aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’” “Onde ficava”, insisti. “Ah, quem quer que tenha um quintal em casa diz que era lá.” E esboça um esgar de sorriso sarcástico no canto da boca.

Lelé: cultura popular (Foto: autor)

Virgílio Trindade nos indica outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos uma moçoila loura tão arrumada quanto decrépito era o prédio da Secretaria. Perguntou-nos se tínhamos marcado hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, pedindo-nos que aguardássemos o término de uma reunião.

Sentamo-nos durante breves cinco minutos e nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos, enfaticamente, a leitura dos discursos completos de José Sarney, apropriadíssima para moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.

Passamos no “troca-troca”. Um galpão aberto para todos os lados onde quem quiser, chega, e expõe sua mercadoria para vender ou trocar. Seu Antônio, um sertanejo idoso, mas rijo, nos acolhe com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede de pescar em açudes até rádios antigos.

“Troca-se qualquer coisa aqui, Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o troco.” “Você e seu pai são de onde?”, disse ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz que não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio: “ele é muito vaidoso”. Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas: “eu entendo como é…”

Quem nos recebeu à porta da casa simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador que primeiro fez dupla com Seu Chico Honório em sua breve carreira, foi sua esposa, baixinha, magrinha e enrugadinha. Tudo no “inha”. Abriu a porta que dava para uma área que antecedia a salinha de estar, e nos envolveu com um delicioso cheiro de alguma iguaria que estava sendo cozinhada no cominho.

Antônio de Lelé não estava, apesar de Dona Maria dizer que ele nunca saía de casa, fato desmentido diversas vezes ao longo do dia. Haveria algo freudiano nessa negação do óbvio? Finalmente damos com Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro Dantas na nossa frente, sem aquela impaciência que o distingue.

Antônio de Lelé conversa longamente com Seu Chico Honório pelo celular enquanto assediamos Dona Maria com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode no cominho. “O que acompanha?” “Arroz, farofa na gordura, uma saladinha.” “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada. Constrangida pelo cerco implacável, não entregava os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que convidava.”

Renunciamos ao ataque. Terminamos sem provar o bode. Nesse tempo, Antônio de Lelé já se despedia alegando que tinha que ir ao Banco, mas nos aguardava de tarde, e garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou várias vezes, tinha muita mentira.

Eu fiquei me lembrando de Orlando Tejo no meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado na cadeira de balanço a lançar fumaça de um cachimbo preto que empesteava o ambiente, falando acerca da Serra do Teixeira, onde há um marco que fica no meio de tudo, porque fica no meio do nada.

Escrever acerca do Homem e das Coisas e de suas relações. Existirão Coisas ou tudo, além do Homem, nada mais é que um sonho? E se este Universo nada mais for que um átomo dentre ilimitados outros de um Universo inconcebível que, por sua vez, é um átomo de um outro Universo inimaginável, tudo isso em escala infinita?

Virgílio e seus livros (Foto: autor)

Enquanto o carro avançava Sertão adentro, no rumo de Cajazeiras, nossa próxima etapa, ladeado pela vegetação típica do semiárido aqui e acolá matizada por um ipê-roxo, juazeiro ou quixabeira especialmente frondosos, e pelos serrotes despidos e enfeitados com pedras esculpidas aleatoriamente, que faziam ondular a paisagem, divagávamos acerca da relevância da pesquisa que fazíamos e mergulhávamos na Metafísica.

Mas a metafísica cansa e deprime, o mais das vezes, tamanha a vastidão daquilo que ela contém e tamanha nossa incapacidade. Voltamos ao concreto. O oceano bravio de questões que se tornou nosso assunto de viajem fez-nos correr em busca de um Porto Seguro: o dia-a-dia, o cotidiano, o detalhe mágico do andar felino do camponês que se prontificou, sem nos conhecer, a ir conosco em busca de um ex-vereador que, segundo ele, “sabia tudo” de Santa Terezinha, Município acerca de vinte quilômetros de Patos, onde tínhamos ido procurar o rastro de um tio de Massilon.

Nada encontramos. Somente esse andar felino, o português arcaico, a cidadezinha pequeníssima, a sensação de absoluta irrelevância de qualquer pressa. Não por outra razão, ao falar em pressa, diz o sertanejo que “o apressado é agoniado do juízo”. O “sabe-tudo” nada sabia. Ouvira falar que, antigamente… e coçava o rosto, empurrava o chapéu de couro para trás da cabeça e deixava o olhar vagando pelo cercado onde um menino tangia cabras para algum destino incerto.

Até logo, até logo, muito obrigado. Muito obrigado ao pessoal do Cartório que, nada encontrando do que procurávamos, nos fez encontrar outra pista. Muito obrigado a Dona Madalena, da Secretaria da Diocese de Patos. A senhora é tão boa, tão gentil, tão atenciosa, quanto é magra, pequenininha, delicada. E perfumada – a “Alma de Flores” – e elegante, naquela elegância anacrônica de moça velha que dedicou sua vida a secretariar Sua Excelência Reverendíssima, o Bispo Diocesano. E organizada, com seu birô impecável, onde duas caixetas, uma para “recebido”, outra para “devolvido”, cumpria a burocracia  temporal da Igreja, sua face terrena e humana, a “Cidade dos Homens” que se contrapõe à “Cidade de Deus”, da qual nos deu a conhecer Santo Agostinho.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/07/2020 - 09:10h

A estranha Pereiro

Por Honório de Medeiros

No pequeno cemitério localizado no centro da cidade – o antigo – de Pereiro, cidade duas vezes secular que se estende ao comprido e preguiçosamente entre serras, passeei entre os túmulos, as árvores e as flores com sua guardiã, Dona Maria, procurando o jazigo perpétuo de Décio Hollanda, aquele mesmo que quis tomar Apodi, no Rio Grande do Norte, pelas armas, através da valentia de Massilon, no final dos anos 20 do século passado.

Ela apontou os túmulos dos Hollanda: “são três; aqueles dois lá e este aqui, mas eu não sei quem é essa pessoa que o senhor está procurando”.

Voltamos para a entrada naquele caminhar desconexo de quem anda nos cemitérios antigos de cidades pequenas, tomando cuidado para não pisar em algum montículo inesperado que guardasse os restos mortais de alguém.

Eu lhe elogio a limpeza, a arborização, as flores do cemitério. “Obrigada”, diz. “Já faz vinte e cinco anos que estou aqui. Antes de mim era uma senhora com quem aprendi tudo e que também passou vinte e cinco anos.”

“É muito tempo”, falo quase que para mim mesmo. “Para eles, não”, responde, fazendo um arco amplo com o braço e envolvendo toda a área do cemitério.

Casa Grande dos Diógenes em Pereiro-CE, um endereço representativo no início do século passado (Foto: Honório de Medeiros)

Dona Maria é baixinha, moreno-clara, entroncada. Sexagenária, eu diria. Muito limpa e bem arrumada, nela não há sinal de desmazelo. Os cabelos não guardam qualquer fio branco. Seria pintura? Não, observo de perto. Filhos, netos, todos foram criados através do seu labor contínuo e obscuro entres velas, flores frescas ou murchas e os túmulos de seus conterrâneos.

“Qual o fato mais estranho que a senhora presenciou neste cemitério?” Ela para. Não hesita ao responder. Talvez a mesma história já tenha sido contada muitas vezes.

“Uma viúva” – começa, esboçando um olhar distante, “que chega sempre toda de preto para rezar naquele túmulo muito antigo encostado à parede. Ninguém sabe de quem ele é. O tempo já apagou, há muito, suas inscrições. Não temos qualquer documento a respeito. Eu mesma já pesquisei. Ela somente aparece quando não tem ninguém, além de mim, no cemitério. Passa por mim, eu dou bom dia ou boa tarde, respondido com um aceno de cabeça que intimida a gente, vai até o túmulo e reza em pé mesmo. Aí sempre acontece alguma coisa que me distrai e quando olho novamente ela já não está presente.”

“Alguém mais a viu?”

“Não, somente eu.”

Chegamos à entrada. “Espere”, diz. Desaparece por trás de algumas árvores e volta logo depois com uma flor branca entre os dedos. “Tome, é para o senhor”. “Ah, um bogari (jasminumsambac)!” “O senhor conhece?” “Era a flor predileta de minha mãe”.

Eu agradeço, tocado. Ela nota a minha emoção. Vou me afastando, a flor próxima ao nariz, linda, pura, perfumada. Depois, no mesmo dia, eu a ofereci à Castelã da Casa-Grande da Fazenda Trigueiro, onde Frei Damião procedeu ao ritual exorcista próprio para afastar almas penadas, mas isso é outra história…

DO FINAL DO SÉCULO XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, disse Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”.

Pedi à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, daria uma noção do tamanho da janela – bem maior que a cozinheira, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Quase o dobro. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais.

Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida da Suíça na época da construção.

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem porque, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos.

“Naquela época”, disse-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia ‘Campo Santo’ (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.”.

Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, é uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. E o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios” …

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis?”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, digo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.”

“Frei Damião esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.”

Pereiro, no sertão cearense (Foto: Honório de Medeiros)

“Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado acima. “Ficou tudo resolvido?”, pergunto. “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio, era o canto mais limpo.”

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da “Fazenda Trigueiro”. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda “Sabe Muito”, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, salvo engano.

Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela, tronco ancestral da família Fernandes do Rio Grande do Norte, que se espraiou pelo Alto Oeste, em um sentido, Mossoró, depois Natal, em outro.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 05/07/2020 - 04:48h

Não há mais lágrima para chorar

Por Ricardo Lagreca

Sim! Não há mais lágrima para chorar. Há  muita indignação para se mostrar. Sabíamos todos nós que iríamos atravessar um momento diferente  ao que estávamos acostumados a viver, carregado de um grau de complexidade muito acentuado, em todos os aspectos.

Mas, jamais ninguém poderia imaginar o que estava por acontecer.O povo ficar a mercê da sua própria sorte. Não! Isto em saúde, não pode existir.

Saúde pública é uma coisa séria, a primeira exigência que deve ser realizada a um governante, que tem o cargo ocupado,  exatamente para cuidar responsavelmente pelo seu povo. Em saúde, não se pode fazer políticas.

Estas políticas grosseiras, com a mesmice de sempre, que nunca visam o bem estar sustentado da coletividade. Apenas a  enganar a todos, para avançarem adiante, por mais um período de lavagem de ego e para nada de importante realizarem.

Os países que enfrentaram a pandemia, com a seriedade necessária, perderam as vidas próprias do grave processo da doença viral, que afligiu todo o mundo. Todavia, não houve as perdas que resultaram de um outro vírus, tão grave quanto. O desgoverno. Isto é o que vem acontecendo no nosso país. Com um governo sem rumo, desorientado, desagregador, apoiado por políticas mantenedoras do “status quo “.

Não permitiu em nenhum momento, que houvesse a unidade Federativa, tão necessária nesses momentos de tamanha gravidade e que possivelmente teria dado um outro rumo a esta tragédia. Os órgãos de classe, por sua vez, seguem a mesma trilha, fazem a mesma política e lavam as mãos.

A morbimortalidade dos profissionais de saúde observada entre nós, assume uma cifra que ultrapassa o esperado. A cada dia que se passa, sabemos de mais uma morte de um colega médico. Não deve ser assim.

Algo precisa ser feito para maior cuidado de quem por obrigação e uma  boa  dose de altruísmo, é submetido a uma possibilidade de maior  exposição ao vírus.

Precisamos que eles continuem vivos.  Precisamos e  muito, das lágrimas. Não podemos deixar que acabem.

Precisamos chorar de alegria, quando tudo isto passar.

Ricardo Lagreca é médico, professor e ex-secretário de Estado da Saúde Pública do RN

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Categoria(s): Artigo
terça-feira - 23/06/2020 - 12:22h
Aos Vivos!

Honório de Medeiros anuncia 3º livro da trilogia do cangaço

Durante o Carlos Santos – AOS VIVOS! dessa segunda-feira (22), às 21h, em nosso endereço na plataforma do Instagram – //www.instagram.com/blogcarlossantos -, o escritor Honório de Medeiros anunciou seu terceiro livro com a temática do cangaço.

Em breve estará à venda.

Focalizará Jesuíno Brilhante (Jesuíno Alves de Melo Calado, Patu-RN, 1844; Belém do Brejo do Cruz-PB, 1879), cangaceiro romantizado, mas que ele promete revelar por inteiro, em todas as facetas.

“Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins” e “Histórias de cangaceiros e coronéis” foram os outros títulos anteriormente publicados.

Acompanhe a integra do nosso bate-papo no vídeo dessa postagem, em que ele também fala sobre família, política, gestão pública, experiência na docência, adolescência, filosofia, sonhos, direito e jornalismo.

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Categoria(s): Comunicação / Comunicado do Blog / Cultura
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domingo - 21/06/2020 - 10:48h

À lei, não basta a sua estrita legalidade ou legitimidade

Por Honório de Medeiros

À Lei não basta sua legalidade: tem que ser legítima.

Quando não o é, padece do mesmo vício que arruína a conquista pela força.

Não há distinção entre a mão pesada do indivíduo arrogante e a do Estado.

Assim, não cabe agasalharem-se na capa covarde do estrito legalismo[1], os que o fazem, para justificar interpretações, produções e aplicações da norma jurídica que firam tudo quanto cause repulsa ao cidadão comum, à Sociedade, à história das conquistas civilizatórias da humanidade, portanto.

No âmago da ação de lidar com a norma jurídica, seja no começo, quando a produzem; seja quando a interpretam; seja no fim, quando a aplicam, está o ato de criar próprio do ser humano e estranho a qualquer lógica, que é anterior ao ordenamento jurídico.

No âmago do ato de cria-la está, e não pode ser diferente, tudo quanto constitui o caráter, a história e o destino do ser humano.

Tampouco cabe fundearem, aqueles que lidam com a Lei, sua ignorância ou astúcia solerte, no legitimismo ou garantismo[2] que despreza a norma jurídica, com fulcro em um suposto conhecimento prévio do que seja certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mal, desprezando, assim, os fundamentos básicos da democracia e da vontade popular.

E o que leva algum integrante de um Supremo Tribunal (STF), a crer que essa instituição possa ir além da própria Constituição?

A crença de que o Tribunal tudo pode, pode tudo. Que compete a eles, seus integrantes, dizerem o que seja o melhor para a Sociedade, como se lê do que segue:

Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.” (Ministro Teori Zavaski; AI nos EREsp 644.736/PE, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170).

Tal é o cerne da doutrina do realismo jurídico, sinteticamente expresso na afirmação de Oliver Wendell Holmes, Jr., antigo ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é” (“the law is what the courts say it is”), visceralmente contrário à tradição jurídica nacional e ao que o povo brasileiro, por intermédio de seus constituintes, em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte, escolheu para si, e o expressou no Princípio da Legalidade, inciso II, do artigo 5º, enquanto Cláusula Pétrea: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Cujo desdobramento, em matéria penal, está no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra cláusula pétrea.

Mais claro, impossível.

Celso de Mello já se referiu ao princípio da legalidade como um dos princípios mais importantes no Direito Constitucional; o principio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, e que este é a essência do Estado de Direito, pois lhe dá identidade própria.”

Mas como se nada disso significasse coisa alguma, nossos ministros enveredam pela doutrina do Realismo Jurídico, em sua versão tupiniquim, esgrimida enquanto arma de Poder, e manda um aviso claro ao Congresso e ao Poder Executivo: “mandamos nós; obedece quem tem juízo”.

Pior: ao fazê-lo, ferem, mortalmente, o princípio da soberania da vontade popular, tão importante que se encontra no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal:

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania – pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

“Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral”; (…)

Ao concretizar a ação de sua vontade, produzindo, interpretando ou aplicando a norma jurídica, o operador do Direito se revela ao mundo tal qual é, em seu heroísmo ou vileza.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] Legalismo: teoria jurídica que prega a interpretação fria (“ipsis litteris”) da norma jurídica positiva, ou seja, aquela constante dos códigos e legislações; para o legalista, pau é pau, e pedra é pedra, e não existe nada entre uma coisa e outra; às vezes são denominados, pelos apedeutas, de positivistas, demonstrando, assim, que a estratégia de desconstrução do óbvio, por parte de quem o deseje, não pertence apenas à Política e sua incrível capacidade de demonizar reputações; idolatram Heráclito de Éfeso, um pré-socrático, por ter afirmado que “o povo deve lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade”.

[2] Legitimismo ou Garantismo: confusa teoria jurídica que entende a norma jurídica como uma casca ou invólucro cujo recheio, ao interpretá-la, será composto a partir da noção individual ou particular específica acerca do que seja “O Justo”, “O Certo”, “O Bem Social”, etc., para cada juiz; solipsismo jurídico; crença na onisciência do juiz enquanto alguém capaz de saber, mais que a própria Sociedade, o que é bom ou ruim, justo ou injusto, certo ou errado, para cada um dos outros, ou para todos de uma só vez; desapreço ou descrença oblíqua na capacidade da Sociedade de regular seu próprio Destino.

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Categoria(s): Artigo
quinta-feira - 18/06/2020 - 05:00h
No Instagram

Honório de Medeiros é o próximo nome do “Aos Vivos!”

Na sexta edição do projeto Carlos Santos – AOS VIVOS! teremos outro convidado ilustre.

O professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN Honório de Medeiros estará conosco a partir das 21 horas da próxima segunda-feira (22).Encontro marcado em nosso endereço no Instagram – www.instagram.com/blogcarlossantos para jogarmos conversa fora, não fazer um monte de coisas e sei lá o quê.

Ele terá oportunidade de falar como era o companheiro Matusalém nos quase 900 anos de vida (segundo a Bíblia), qual o último casal de animais a embarcar na arca (de Noé, claro) e se a obra do Zigurate de Ur na Suméria começou mesmo pelo lado Norte, já que era muito amigo do engenheiro responsável.

Anote esse compromisso.

Até lá

Leia também: Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró em 1927? (texto de Honório de Medeiros)

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Categoria(s): Comunicação / Comunicado do Blog
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domingo - 14/06/2020 - 05:44h
História

Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró em 1927?

Ataque a Mossoró completa 93 anos, mas têm enredo incompleto, com lacunas que o tempo não sanou

Por Honório de Medeiros

Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró, em 13 junho de 1927 (que nesse sábado – 13 de junho de 2020 – fez 93 anos)? Não o planejador ou o executor, mas o idealizador?

Sabemos que o planejamento coube ao Coronel Isaías Arruda, a Massilon, e a Lampião. A execução, a Massilon e Lampião.

Mas quem foi seu idealizador?

O ponto de partida para respondermos essa pergunta é a análise da participação, no episódio, desses três personagens principais: Lampião, o Coronel Isaías Arruda, e Massilon.

Massilon, coronel Isaías Arruda do Ceará e Lampião fazem parte de um intrincado jogo de poder e crime (Fotomontagem BCS)

A importância deles é tal, que sem qualquer um dos três, não teria havido a invasão. Todos os outros participantes são secundários, embora possam ser importantes.

Entretanto, Lampião pode ser retirado, com alguma segurança, dentre os possíveis idealizadores, por uma razão muito simples: Jararaca, testemunha da conversa entre o cangaceiro e  o Coronel Isaías Arruda, acerca do projeto de ida a Mossoró, foi muito claro quando afirmou que nunca houve a intenção, do bando, de penetrar no Rio Grande do Norte.

Manoel Francisco de Lucena Filho, o “Ferrugem”, Manoel Ferreira, o “Bronzeado”, assim como Francisco Ramos de Almeida, o “Mormaço”, disseram o mesmo.

Três personagens e um ataque improvável

E é praticamente consenso na literatura do cangaceirismo, a resistência inicial de Lampião de levar a frente tal aventura.

Sobram o Coronel Isaías Arruda e Massilon.

O Coronel Isaías Arruda também poderia ser retirado, levando-se em consideração o seguinte: ele não chamou Lampião a Aurora, pois vinha sendo pressionado insistentemente pelo Governador do Estado, José Moreira da Rocha, o “Moreirinha”, seu aliado, para se afastar de cangaceiros e jagunços. “Moreirinha”, por sua vez, sofria intensa pressão do Governo Federal nesse sentido.

Mas é notória a participação do Coronel no ataque a Apodi, em 10 de maio de 1927. Como é notório o viés político desse ataque: Coronéis cearenses, paraibanos e potiguares agiram em conjunto, nas sombras, contra a liderança do Coronel Chico Pinto, em crime executado por Massilon.

Alvo, prefeito fez defesa em sua casa ao lado da São Vicente (Fotomontagem BCS)

Então, é de se supor que o Coronel Isaías Arruda não chamou Lampião, mas aproveitou a oportunidade de sua chegada repentina.

Dizemos que aproveitou a oportunidade porque, aparentemente, o projeto de invadir Mossoró já existia há algum tempo e, para tanto, Massilon já recrutava cangaceiros pelo Sertão paraibano, provavelmente em comum acordo com o Coronel.

Existem dois fatos que asseguram a forte ligação entre o Coronel Isaías Arruda e Massilon, fundada em interesses mútuos:

a)      em junho de 1926, Massilon e José Gonçalves de Figueiredo mataram João Vieira, em uma emboscada cujo objetivo era eliminarem integrantes da família Paulino, inimigos figadais do Coronel Isaías Arruda. Isso significa que Massilon era da mais estrita confiança do Coronel[1];

b)      em maio de 1927, Massilon atacou Apodi, executando projeto do Coronel Isaías Arruda e seu sobrinho José Cardoso, a pedido de Décio Holanda, genro de Tylon Gurgel, chefe da oposição ao Coronel Chico Pinto naquela cidade.

O recrutamento de cangaceiros por Massilon, no intuito de invadir Mossoró, pode ser indiretamente comprovado: antes de Lampião chegar inesperadamente a Aurora, ele não sabia, mas o projeto de invadir Mossoró já existia. É o que se lê às folhas 30, da quarta edição de A Marcha de Lampião[2], Raul Fernandes, no item 2, do 1º Capítulo:

“Em dezembro de 1926, Joaquim Felício de Moura, sócio da firma Monte & Primo, em Mossoró, viajava pelo interior da Paraíba. Na cidade de Misericórdia, encontrou-se com o destacado comerciante e fazendeiro Antônio Pereira de Lima, que lhe falou da acirrada perseguição do bandido Virgulino Ferreira à sua família. Sem maiores rodeios, contou-lhe o plano de Jararaca, Sabino, Massilon e Lampião de assaltarem Mossoró com quatrocentos homens. Adiantou ser impossível reunirem tanta gente. Advertiu-o, porém, sobre o costume de mandarem espiões disfarçados de feirantes, mendigos e cantadores, aos lugares previamente escolhidos. Conversou sobre a possibilidade de defesa da cidade e pediu-lhe levar esses fatos ao conhecimento do Prefeito Rodolpho Fernandes.

Daí por diante os boatos se sucederam. Na última quinzena de abril, 27, a notícia veio à luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal, escreveu ao compadre Rodolpho Fernandes sobre a pretensão do chefe dos bandidos. Dos remotos sertões de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa empreitada”.

Em “Notas” (p. 40) ao 1º Capítulo, Raul Fernandes observou:

“Afonso Freire de Andrade e inúmeras outras pessoas conheceram a carta. Mossoró (RN), 23.12.1971. – Informações prestadas ao autor.

Obs.: Ouvi de meu pai referências à missiva”[3].

Quanto a Argemiro Liberato, no meu Histórias de Cangaceiros e Coronéis[4] (p. 119), transcrevo artigo de Kydelmir Dantas, cofundador e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), intitulado Cartas e Bilhetes Antes de Lampião, no qual se lê o que segue:

“Esta carta[5] foi levada ao conhecimento dos amigos de confiança do prefeito, por este, que estavam preparando a estratégia para a formação das trincheiras nos pontos principais da resistência. Dentre estes, Joaquim Felício de Moura, Afonso Freire de Andrade e outras pessoas mais chegadas confirmaram tê-la visto nas mãos do ‘coronel Rodolpho’.

Argemiro, com sua 2ª esposa, Maria Amorim Mafalda de Alencar, alertou (Reprodução BCS)

Para a família, dias após o ataque, Rodolpho Fernandes fez referências sobre esta missiva do amigo paraibano de Pombal.

Outra confirmação do envio desta carta está no artigo “Major Argemiro Liberato de Alencar: o amigo de Rodolpho Fernandes”, escrito pelo seu neto Geraldo Alves de Alencar, hoje residente em São Luiz do Maranhão, que cita o seguinte sobre o avô:  ‘Era fazendeiro, proprietário da Fazenda Estrelo, situada em sua cidade natal. Exercia também a profissão de comerciante, trazendo da Paraíba algodão transportado em costas de burros e vendido em Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. O principal comprador era a firma cujo maior acionista era seu amigo e compadre o Cel. Rodolfo Fernandes.

Em suas viagens como almocreve retornava a Pombal com sal e outros gêneros. Mesmo tendo um sobrinho nas hostes do cangaço, o qual atendia pelo nome de Ulisses Liberato de Alencar, Argemiro era profundamente contra o banditismo rural, chegando inclusive a avisar ao Cel. Rodolfo Fernandes, quando este era prefeito de Mossoró em 1927, que o cangaceiro tencionava atacar a cidade considerada capital do oeste potiguar.

Declaradamente anti-Lampiônico, Argemiro Liberato de Alencar nunca chegou a ser perseguido pelo “rei do cangaço” porque Lampião sabia da amizade existente entre ele e o Padre Cícero.’

Evidentemente o aviso não era acerca de um futuro ataque de Lampião, mas, sim, de um futuro ataque de cangaceiros”.

Provavelmente Joaquim Felício estivesse errado quanto a José Leite de Santana, o Jararaca. Como nos assevera Frederico Pernambucano de Mello[6], a área de atuação do cangaceiro eram as ribeiras do Moxotó e Pajeú, em Pernambuco. E o próprio Jararaca, declarou, quando preso em Mossoró, além de outros cangaceiros, que Lampião nunca pensara em atacar a cidade[7].

Já Sabino Gomes de Góis, embora atuasse nos arredores do município de Cajazeiras, Paraíba, estava, naquele momento, integrado ao bando de Lampião, desde o ataque à Souza, no mesmo Estado, em 27 de julho de 1924, do qual não se separara até sua morte (dele), em fevereiro de 1928, após o conhecido tiroteio de Piçarra, em Porteiras, Ceará.

Ora, se Sabino tinha intenção de aventurar-se até Mossoró, é evidente que Lampião seria o primeiro a sabê-lo. Repita-se, entretanto: Lampião nunca teve a intenção de invadir o Rio Grande do Norte. Sequer sabia da existência desse projeto. Os escritos acerca da história da invasão de Mossoró são consensuais quanto a isso, a partir dos depoimentos de vários cangaceiros, dentre eles, Jararaca.

Capela de São Vicente simboliza o núcleo da resistência ao ataque do dia 13 de junho de 1927 (Foto: reprodução BCS)

Ainda a favor dessa hipótese, a de que o ataque foi idealizado bem antes de sua realização há, também, além da correspondência de Argemiro Liberato e do recado de Joaquim Felício, a notícia veiculada pelo “O Mossoroense” de 15 de maio de 1927, de que na invasão de Apodi, por Massilon, o projeto de invadir Mossoró já existia, insinuando, sem rodeios, que essa pretensão, a ocorrer em dias vindouros, integrava empreitada de grande vulto, e dele dera conhecimento, ao Coronel Rodolpho Fernandes, a carta de Argemiro Liberato.

Observe-se que essa edição de “O Mossoroense”, jornal dirigido por Rafael Fernandes, primo e correligionário do Coronel Rodolpho Fernandes, veio a lume cinco dias após a invasão de Apodi por Massilon.

Basta, então, darmos a devida importância à ligação entre essa matéria do jornal e a anterior correspondência de Argemiro Liberato encaminhada ao Prefeito, bem como ao recado de Joaquim Felício.

Muitas interrogações

Se assim o é, se de fato o Coronel Isaías Arruda e Massilon trabalharam juntos nessa empreitada antes da chegada de Lampião, desde, pelo menos, meados de 1926, se a ambos podemos atribuir todo o planejamento do projeto, a pergunta, agora passa a ser outra: foram eles que idealizaram (arquitetaram) o projeto da invasão a Mossoró?

É muito difícil acreditar que Massilon recrutasse cangaceiros e jagunços pelo Sertão, sem que disso soubesse o Coronel Isaías Arruda.

Outra questão: por que Mossoró? Por que não Cajazeiras, Souza, Patos ou Pombal, na Paraíba? Caicó, Currais Novos, São Miguel, Pau dos Ferros ou Martins, no Rio Grande do Norte, ou as cidades do Vale do Jaguaribe, no Ceará, se o objetivo fosse meramente arrancar dinheiro?

E se o objetivo era meramente arrancar dinheiro, por que o alvo do ataque foi a residência do Coronel Rodolpho Fernandes, e, não, a agência do Banco do Brasil ou o comércio da cidade?

Então, cabe perguntar: quem, na verdade, idealizou (arquitetou) o ataque a Mossoró?

Qualquer que seja a resposta, de tudo quanto se disse algo fica claro: o Coronel Isaías Arruda e Massilon foram os grandes responsáveis pela invasão de Mossoró. Principalmente Massilon, que planejou com o Coronel, e executou com Lampião.

Ele é o personagem principal desse drama épico, e somente é possível uma história de tudo quanto aconteceu, uma história que tenha causas e efeitos, e não apenas a descrição horizontal do acontecimento em si, se o investigarmos, bem como suas conexões com os coronéis da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, para os quais “jagunçou”, mas sempre como chefe de bando.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] Conforme Vida e Morte de Isaías Arruda; TAVARES CALIXTO JÚNIOR, João. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora; 2019.

[2] Natal: Editora Universitária, 1982.

[3] Raul Fernandes era filho do Coronel Rodolpho Fernandes.

[4] MEDEIROS, Honório de. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

[5] A de Argemiro Liberato para o Coronel Rodolpho Fernandes.

[6] “GUERREIROS DO SOL”; 2a. edição; A Girafa; 2004; São Paulo, SP.

[7] No “Auto de Perguntas” feitas a Jararaca consta, também, a seguinte declaração sua: “que saíram em dias do mês de maio findo, do Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano”. Antes de Lampião, Jararaca, ainda segundo seu depoimento, estava no Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade, com a Coluna Potiguara (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).

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Categoria(s): Artigo / Reportagem Especial
domingo - 17/05/2020 - 07:26h
Política e banditismo

Os estreitos laços entre o cangaço e o coronelismo

Em entrevista, escritor Honório de Medeiros mergulha nas entranhas do poder no sertão nordestino

Um dos articulistas perpétuos do Blog Carlos Santos, o professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN Honório de Medeiros prestou significativo depoimento ao pesquisador do fenômeno do cangaço, como ele, Aderbal Simões Nogueira.

O vídeo constante dessa postagem, na íntegra, é o resultado dessa entrevista concedida por Honório a Aderbal, que trabalha como documentarista, tendo o cangaço como conteúdo predominante.

Conexões entre política, coronéis e cangaceiros, personagens que estão interligados no ataque do bando de Lampião a Mossoró, a produção literária sobre o tema, o aprofundamento científico à temática, memórias do grande estudioso (in memoriam) Paulo Gastão, a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), novo livro que desnudará o cangaceiro Jesuíno Brilhante e outros aspectos subjacentes estão no depoimento.

Não teria havido a invasão de Mossoró se não fosse Massilon (cangaceiro) – dispara.

Honório de Medeiros chegou a escrever um livro tendo esse personagem como foco principal. Porém seu trabalho vai além da historicidade de um bandido, pois avança em outras direções que se interligam.

Formam um quebra-cabeça complexo sobre o poder no sertão nordestino na primeira metade do século passado, bem como os laços entre coronéis e bandos de facínoras.

Aproveite essa ótima entrevista.

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Categoria(s): Cultura / Gerais
  • Repet
domingo - 10/05/2020 - 11:22h

De ser ou não alienado

Por Honório de Medeiros

A verdade é filha da discussão, e não da simpatia” (A Filosofia do Não, Gaston Bachelard)

Ausentar-se de si mesmo e viver a realidade do(s) outro(s), não aquela em-si-mesma (coisas ou fatos), que é extensão do Ser, projeção de como a percebemos, na justa medida em que, no limite último de cada coisa ou fato observado está uma ideia ordenadora da realidade.

“No princípio era o Verbo” (João, 1). Essa ausência de si denominamos alienação.

Se de mim me ausento não apreendo o Outro, apenas percebo nossas sombras a se moverem na parede de uma caverna existencial onde estamos prisioneiros, como na célebre alegoria de Platão em “A República”.

Tudo, então, é aparência.

Não por outra razão o “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates.

Conhecermo-nos a nós mesmo implica em dizer não à aparência, a duvidar daquela sombra na caverna.

Somente estamos livres da ilusão quando ousamos dizer não ao que nos aprisiona, nos acorrenta, nos impede de perceber a realidade como de fato ela é. Ser ou não ser alienado, na verdade, é Conhecer ou não Conhecer, eis a questão, eis o caminho.

Por isso nos provoca Bachelard:

– “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo
domingo - 26/04/2020 - 11:26h

Homem, quem és tu?

Por Honório de Medeiros

Esse homem que o acaso colocou em minha frente é uma incógnita. Nada sei a seu respeito.

Se observo os detalhes que a sua aparência externa coloca ante meus olhos, e concluo algo, posso incidir em um oceano de erros.

Afinal, sob seu verniz de civilização pode se ocultar qualquer ignomínia.Não faz pouco tempo, foi ele gentil com uma criança.

Vi, mesmo, de soslaio, a mãe da criança lhe sorrir complacente, como quem acha muito natural receber, sua cria, as atenções do mundo. O gesto me fez lembrar as contradições do ser humano.

Ele mesmo, o observado, que desarrumou, com um afago, os cachos do cabelo da criança, em outra ocasião, outra circunstância, uma guerra, talvez ordenasse um bombardeio que vitimaria tantos outros sorrisos infantis.

Pode ser que eu não fale a mesma linguagem que ele. Quantas formas há de entender uma só palavra?

Difícil atividade, a dos lógicos, a dos filósofos da linguagem, que pretendem descobrir o meio de diminuir a distância entre aquilo que percebo e o que digo.

Se lhe chamasse a atenção e perguntasse, comentasse algo, poderíamos divergir tanto, e acerca de coisas tão banais…

“Todavia, entre mim e esse homem glacial, sinto todos os espaços vazios que separam os homens”. É como disse Saint-Exupèry, em um artigo para o Paris-Soir, em 1935, contando sua experiência de viajar, à noite, em um trem repleto de mineiros poloneses que voltavam à sua terra natal, expulsos da França pelas contingências da economia.

Vazios semelhantes àqueles expressados por T. S. Elliot, em A Terra Desolada: a angústia da constatação da impossibilidade da comunicação humana; a percepção de sua solidão essencial, primitiva, única. Poderia o amor, esse sentimento tão tipicamente cristão, aproximar os homens?

Desnudar suas almas, lhes fazer não rir, nem chorar, mas compreender, como queria Spinoza?

Dar, a eles, a capacidade de transcender a mesquinha luta pela sobrevivência, que coloca em lados opostos os que deveriam semear juntos?

Ou essa é uma missão utópica, e não há tempo para sentir quando não conseguimos refletir acerca da misteriosa rede de aliciamento e cooptação que nos induz a darmos o pior de nós mesmos em praticamente todos os momentos da vida?

Podemos ter alguma esperança, mesmo depois de tantos milhares de anos de aperfeiçoamento na capacidade de destruir, matar, esmagar, e nenhum progresso quanto a fraternidade humana?

Saint-Exupèry, esse tão injustamente banalizado filósofo da melancolia, da nostalgia, já dissera: “É absolutamente necessário falar aos homens”.

Em sua “Carta ao General X”, escrita em La Marsa, perto de Túnis, julho de 43, para o Le Figaro Littéraire, denunciou: “Ah!, General, só existe um problema, um único, em todo o mundo. Restituir aos homens uma significação espiritual, inquietações espirituais. Não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo?”

Um sentido para a vida.

Teria a vida sentido?

Se nos indagassem: “homem, que és tu?”, teríamos que responder “aquele em cuja biblioteca os livros de poesia perderam seu lugar para os de computação?”.

Meu companheiro anônimo se fora.

Tinha perdido, eu, a chance de lhe falar acerca de tudo isso que poderia nos aproximar ou afastar: a solidão, o sentido da vida…Não seria dessa vez que construiríamos uma ponte entre a clausura de nossas almas.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Mossoró e Governo do RN.

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 19/04/2020 - 08:48h

Seu Chico Piu e a Teoria da Evolução

Por Honório de Medeiros

Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais apareço magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele inesquecível passeio a cavalo, eu e um amigo que me hospedava, até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo.

Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de tristeza toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, diriam os franceses.

Naquela tarde conheci “Seo” Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular.

Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa, cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo ao seu cacique.

“Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que impressionava eram seus pés. Estes, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, foi em tempos muito idos, segundo suas próprias palavras.

Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, e sua família confirmava, descia descalço até mesmo para a cidade, onde raramente ia. E, nos pés, não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura.

“Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Junto a eles, colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as… Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Um general a conduzir seu exército com doçura, mas com firmeza.

Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro, que se espargiam serra abaixo, tendo a Casa Grande como epicentro. Vivesse no Sertão nordestino e nele tivesse aquela terra e todo aquele gado seria um homem de posses, por assim dizer.

No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada a chegar, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida, dos homens e das coisas.

Mas tudo que é bom dura pouco.

Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua, a passo leve, nas trilhas estreitas, para manter a compostura ameaçada pela bebida e a possibilidade de se envolver com a beleza da serra sob o luar.

Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula mansa que me conduzia, apontou para mim e para si próprio, e como que refletindo, me disse para guardar comigo que o tempo havia lhe ensinado ser a vida, acerca da qual tanto havíamos falado, como uma serra de onde cada um descia na justa medida em que outro subia lhe tomando o lugar.

Dito isso, me lembrou que “seu pensamento” se tratava de um presente, assim como a garrafa da mais pura cachaça de sua moenda que me passou às mãos, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros tocados pelo sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, desconhecendo meu conhecimento sorvido dos livros acerca da teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele concluíra somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Mossoró e Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/04/2020 - 08:54h

Dona Efigênia em sua teia

Por Honório de Medeiros

Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei. Muito gorda, um pouco surda – talvez por puro cálculo –, passava o dia sentada em uma cadeira de balanço com espaldar de palhinha na sua ampla sala de estar, que dava para um jardim lateral, onde ficava o portão de ferro batido, pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo.

Casa antiga, senhorial, de esquina.

Sempre perfumada alfazema, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro, tirando as fartas refeições, colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias, na qual reinavam o telefone e o rádio. Tempos antigos.

“Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam”.

Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la quando ia à sua cidade. Que era a nossa. Tenho certeza de que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente.

Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustrava alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente interessante, a revelar um agudo poder de observação e análise.

Pois Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável deixada pelo falecido, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns.

Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia, ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone.

Devo ter esquecido alguma coisa, óbvio, mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela em silêncio escutando, até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo estrategicamente colocado perto da cadeira de balanço, e cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava era dada por encerrada.

Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam que ela era o tipo acabado da velha fofoqueira.

Depois de algum tempo compreendi que criara essa camuflagem. Era assim mesmo que queria ser enxergada. A camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária.

Através da colheita de informações, ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno. Talvez alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado. Pequenas grandes mazelas.

Então entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, e a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar…

E, assim, disfarçadamente, realizava um metódico, complexo e minucioso bordado social. Bordado do bem.

Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor.

Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua.

Paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada na sua cadeira de balanço, abro seu breviário, e me ponho a ler, e essa é a minha oração em louvor de sua memória.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 05/04/2020 - 07:30h

O dom de narrar

Por Honório de Medeiros

“Naquelas noites, no Sertão, a escuridão tomava conta do Sítio onde, à luz do lampião, no terreiro, meu Compadre – eu, menino, o tratava assim, e ele assim me tratava – reunia, no seu entorno, a família e os amigos, para ouvirem as estórias que faziam parte da antiga tradição oral dos nossos antepassados sertanejos, acompanhadas de uma xícara de café quente, coado na hora, e bolachas pretas.

Às vezes havia lua e o mar de prata criava imagens fantasmagóricas nos arbustos lá fora, confins da luz; ao vê-las, instintivamente nos aproximávamos um pouco mais do círculo dos adultos, e somente relaxávamos quando a gargalhada do meu Compadre pontuava suas estórias. Até então, ele tinha nos deixado, a todos, em permanente suspense, por um tempo aparentemente sem fim.

Foto: Gustavo Bettini

Decerto, nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo, e a um desses “causos” que ele nos contou. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento, “parente distante”, que para fugir de uma obrigação social, jurou, por intermédio de um bilhete, estar em casa, de repouso, por motivo de doença.

Ao voltar de um forró onde se esbaldou a noite inteira, em outra localidade, mal apeou do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos – ela, sua esposa, jazia, muito doente, nos braços das filhas.

Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia sobrenatural daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto sinistro dos rasga-mortalhas.

Eram estórias de amores; assombrações; gestas; valentias; honras; ódios entre famílias; cangaceiros; botijas, descobertas por intermédio de sonhos que precisaram de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente; raptos consensuais ou não; caçadas às onças, nas quais somente a habilidade espantosa do caçador o fez escapar com vida; pescarias milagrosas; recuperações da saúde através de feitiços, poções ou orações de benzedeiras e curandeiros; vidências, estórias de maus-olhados e mandingas; secas e invernadas desmedidas; justiças divinas a corrigirem desmandos humanos; feitos com armas; aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado; estórias dos segredos da Serra das Almas, onde foram encontradas as ossadas de vários homens ao lado de espadas, escudos, elmos, pepitas de ouro e outros apetrechos do tempo em que o Brasil era recém-nascido; e tantas outras…

Na forma arrastada com a qual meu Compadre as contava havia uma magia que prendia nossa atenção, uma sabedoria antiga da qual ele era herdeiro e na qual era mestre; havia alguém que cultivara a tradição, o dom de contar um “causo”, uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa para o encadear das frases engastadas com palavras que o mestre Luís da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial, e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de “matutês”, por pura ignorância.

O desfecho sempre apresentava uma lição de vida e, não raro, belas conclusões a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.

Meu Compadre não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos herdeiros daquela raça de titãs que colonizou o Sertão, alguém dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, a quem eu escutava embevecido; também era uma fonte inspiradora para mim, a principal delas quando penso na cultura sertaneja, como se tudo quanto eu lesse acerca do tema precisasse ser confrontado com a memória de sua existência, para, em mim, adquirir a necessária credibilidade.

Ele também era um poeta, em um certo sentido muito próprio, alguém com o dom de dizer belamente, em momentos especiais, com tiradas de brilho incomum, algo que nunca brotaria, com facilidade, dos nossos corações e mentes. Dele escutei, certa vez, quando falávamos da morte, rompendo um seu mutismo inabitual, que “a morte, para quem fica, é uma saudade sem esperanças”.

Acaso alguém poderia ser mais preciso e poético ao descrever esse sentimento? De outra, referindo-se aos caminhos e descaminhos de um amigo comum, saiu-me com essa, aludindo à eterna vitória da esperança sobre a razão: “compadre, quem nos puxa mesmo é a mão da ilusão…”

Passaram-se os anos, muitos, desde então, e o pó do tempo escondeu impiedosamente muitas lembranças minhas dos tempos de menino. Algumas, entretanto, sobreviveram. Vez por outra, por exemplo, eu me lembro daquelas noites no Sertão, e fico imaginando o quanto meu Compadre gostaria de escutar esta minha história (ou estória), acerca do seu dom de narrador. Não por vaidade – nunca conheci ninguém tão simples, mas pelo inusitado, para ele, da recordação.

Pois se ele, quando se foi, há muito tempo, imaginasse que um dia alguém iria lembrar daquelas noites no terreiro de sua casa, no Sítio, Encanto, beiradas da Serra das Almas, Sertão profundo, à luz das estrelas, da lua, e de uma fogueira bruxuleante, daria uma grande risada com aquele jeito manso e ficaria muito satisfeito.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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domingo - 22/03/2020 - 13:32h

Viajando o meu apartamento

Por Honório de Medeiros

Em luta sem quartel contra esse inimigo oriundo do coração da China, e que se vale de seu tamanho microscópico para fugir do combate direto, olho no olho, resolvi, levando em consideração certas medidas ditadas não pela covardia, mas pela astúcia, e tendo em vista minha condição de sexagenário, levantar a ponte levadiça do meu castelo e ataca-lo com táticas de guerrilha, ou seja, fugir do contato pessoal, como os russos fizeram contra Napoleão, enquanto ele esmorece e fica fragilizado, alvo fácil para um contra-ataque.

Lembrei-me, então, de Xavier de Maistre, e levando em consideração que o mesmo sentou praça no exército russo e chegou a general, o que vem ao encontro do meu ânimo belicoso contra o inimigo chinês, mas muito melhor que isso, escreveu uma obra notável que o lançou definitivamente na imortalidade, denominada “Viagem em Volta do Meu Quarto”, escrita em 1794, na qual relata o que aconteceu com ele nos quarenta e dois dias que passou confinado no seu quarto, resolvi seguir seu exemplo, apenas ampliando um pouco mais o espaço no qual pretendo circular.

Assim como Xavier (já o considero íntimo), pretendo escrever um diário acerca do meu confinamento. Isso, desde já, me coloca como sério candidato a escritor mundialmente desconhecido, para utilizar o bordão predileto de um amigo idoso ao qual não nomino em respeito a sua luta desesperada para não se dar por vencido ante os achaques da idade.

Passarei, portanto, quarenta e dois dias confinados em meu apartamento.

A introdução do meu livro de Xavier de Maistre – eu o li em fevereiro de 2011, é assinada por Sandra M. Stopparo, que também o organizou e traduziu.

Publicação da editora Hedra, São Paulo, 2009. Gostei, de cara, de uma afirmação que ela fez no seu texto, louvando a literatura do século XVIII. Não sei se está certa ou errada. Sei que como pretendo me valer desse auto-confinamento belicoso para imitar Xavier de Maistre, seu pensamento me valeu como uma luva.

Diz Stopparo:

“Toda a força argumentativa do século XVIII se coloca aqui a serviço da literatura. Laurence Sterne é o principal parâmetro literário, assim como todos os escritores moralistas do período: fazer de qualquer tema, motivo, dúvida ou certeza uma razão para longas elucubrações é o método preferido da época, que vai do salão ao texto filosófico e às melhores páginas literárias.”

Ou seja, pelo que eu entendi, tanto faz um vírus como uma revolução, qualquer tema é bem vindo, e o  importante é argumentar. Talvez possamos compreender esse dito de Stopparo (é de 2009) como uma verdadeira antecipação do facebook, por exemplo, hoje um espaço virtual repleto de doutores em física quântica, economia marginalista; matemática tensorial, ciência política; filosofia pré e pós moderna e outros assuntos ditos menores.

Quase nada acerca de quase tudo.

Explanado tudo isso, e louvado no incentivo de Stopparo, e amparado por Xavier de Maistre, aqui vou eu.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 08/03/2020 - 10:24h

Ensino jurídico – as armadilhas da omissão

Por Honório de Medeiros

Uma das armadilhas que os tempos atuais impõem ao ensino jurídico, é o conforto da aula técnica, exclusivamente voltada para a interna realidade do ordenamento jurídico, onde o que importa é a argumentação dirigida para a norma jurídica e suas conexões com outras regras do sistema, quando muito se permitindo, o professor, um arremedo de independência dessa camisa-de-força ao tratar de de princípios jurídicos de conteúdo indeterminado, fluídico, sem consistência.Tais princípios esbarram, entretanto, nos sólidos limites da vontade política, e eles nada mais são que barreiras levantadas pelo Estado e sua lógica de Poder, verdadeiros grilhões a serviço dos interesses de quem pode produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.

Ao se alienar consciente ou inconscientemente ao ocultar essa prática as questões subjacentes, essenciais, e que dizem respeito à própria estrutura do Direito, tal qual sua legitimidade, sua relação com o Poder, sua relação com o Justo, seu status obediente ao meramente técnico, seja por ignorância, seja por comodismo, seja por cinismo, os professores cumprem um papel pouco digno de reproduzir o modelo de exploração próprio da lógica dos que determinam as regras do jogo.

Em o fazendo, não questionando, não criticando, cravam, com o martelo da omissão, os pregos da submissão e alienação nas mentes dos futuros profissionais do Direito, ajudando, assim, a construir uma civilização doentia como essa que estamos deixando enquanto legado para nossos filhos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo / Política
domingo - 02/02/2020 - 09:44h

Das pessoas que se ofendem com o silêncio

Por Honório de Medeiros

No rumo do remanso na beira da Serra das Almas, passei por Martins para dois dedos de prosa com Seu Antônio de Luzia, que Deus o mantenha tal qual está.

Perguntei-lhe como iam as coisas, e ele, naquela sua voz arrastada e grave, me disse que “do mesmo jeito, só que mais velhas”.

Era um final de tarde meio quente, no Sítio Canto. Só vez por outra alguém passava e arriscava um dedo de prosa.

E nós dois, como d’outras vezes, café tomado, calados, cabeça pousada por inteiro no espaldar das cadeiras de balanço, nos entregávamos à quietude e ao canto dos passarinhos.

Lá para as tantas uma vizinha distante encostou e se danou a falar, contando o caso de uma sobrinha solteira que embuchara pelas bandas dos Cariris Velhos.

Falou, falou, falou tanto que espantou os sabiás que cantavam nos cajueiros do terreno em frente.

Quando se foi seu Antônio, sem olhar para mim, sentenciou: “essa mulher se ofende com o silêncio”.

E mais não disse até a hora da coalhada, à boca da noite.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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segunda-feira - 20/01/2020 - 23:00h
Livro

“Jesuíno Brilhante” – O primeiro dos grandes cangaceiros

Honório: cangaço (Foto: arquivo)

Prepare-se.

Em abril próximo, com data, local e horário a serem definidos, receberemos novo livro produzido pelo escritor Honório de Medeiros.

Ele promete desnudar um personagem intrigante e romantizado desde o século XIX: o cangaceiro Jesuíno Brilhante.

A publicação “Jesuíno Brilhante – O primeiro dos grandes cangaceiros” está quase pronta.

Jesuíno Alves de Melo Calado (Patu-RN, 1844; Belém do Brejo do Cruz-PB, 1879) é visto como um dos precursores do cangaço – fenômeno do banditismo no Nordeste do Brasil.

Honório de Medeiros já lançou dois livros anteriormente, com foco na mesma temática, que mistura coronéis e cangaceiros: “Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins” e “Histórias de cangaceiros e coronéis”.

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Categoria(s): Cultura
domingo - 08/12/2019 - 09:14h

Ceticismo, autocrítica e inconformismo

Por Honório de Medeiros

O apático moral é um cético, mas nem todo cético é um apático moral. Aquele que não o é pode abraçar o inconformismo.

Nesse caso, o ceticismo inconformista seria uma forma de interagir conosco e com tudo quanto nos envolve. Uma arma para se defender do pântano do “status quo”, e ir além do “ranço”, do estabelecido ruinoso.Ceticismo somente, não: conduz à apatia moral.

No ceticismo inconformista, duvidamos, questionamos, e nos manifestamos.

Mas é preciso cuidado: não é somente o Outro que não sabe; nós também não sabemos.

Não custa nada acendermos uma vela em homenagem a Sócrates.

Auto-crítica e ceticismo inconformista.

O primeiro para nos colocar em nossos reais limites; o segundo, para colocar os outros em seus reais limites.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo
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domingo - 27/10/2019 - 09:22h

Solidão e liberdade

Por Honório de Medeiros

Encontrei Antônio Gomes em Pau dos Ferros, no rumo de suas terras na Serra das Almas, fugindo do frio na Europa.Tomamos um café coado no “Maria”.

Me disse que gostara muito de uma frase minha postada no blog.

– Qual?

“Somente é livre quem pode dizer não”. Mas observo que primeiro é preciso dizer sim ao projeto de dizer não para ser livre.

– Você sempre um sofista!

Ele riu e observou, quase que como para si mesmo, que “isso tudo o levara a compreender a solidão, no final da vida, de tantos artistas e pensadores…”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 01/09/2019 - 11:18h

Encontramos Billy Jaynes Chandler

Por Honório de Medeiros

Em uma quinta-feira do mês de setembro de 2015, publiquei um artigo em meu blog, cujo título é o seguinte: “WHERE IS BILLY JAYNES CHANDLER?” (Onde está Billy Jaynes Chandler’ ?) – //honoriodemedeiros.blogspot.com/2015/09/where-are-billy-jaynes-chandler.html) ainda está lá. Leia.

Nele, eu e minha filha, Bárbara de Medeiros, contávamos o resultado de uma procura intensa por notícias acerca do grande escritor americano que viveu no Brasil e nele escreveu alguns dos clássicos da literatura sertaneja nordestina.

Billy Chandler aos 86 anos (Foto: Família)

Billy Jaynes Chandler é um dos mais importantes escritores acerca do cangaço e coronelismo, fenômenos ligados entre si e característicos de uma certa época da história recente do Brasil. Suas obras Lampião, o Rei dos Cangaceiros, e Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, são canônicas, seminais, inigualáveis. Recentemente meu filho, que mora no Canadá, por lá adquiriu o Lampião traduzido para o inglês.

Passaram-se os anos, e nada. Nenhuma notícia…

No início deste agosto, quase três anos depois, mais precisamente dia 8, postaram o seguinte texto no espaço reservado aos comentários ao blog (as traduções a seguir são de Bárbara de Medeiros):

“Ginny disse…I was googling my uncle and found this blog from back in 2015. I am Billy Jaynes Chandler’s niece”.(“Estava pesquisando o meu tio no Google e encontrei esse blog de 2015. Eu sou a sobrinha de Billy Jaynes Chandler”).

Eu não li essa postagem. Ocupado com outros interesses, havia deixado o blog um pouco de lado. Por sorte nossa, Ginny também escrevera para meu email:

– “I read uncle bill your blog, translated in English, and it put a smile on his face. He is now 87 and has lost his Portuguese language and has some memory issues. He told me it was ok to reach out to you. Ginny Petersen”. (“Eu li o seu blog para o tio Bill, traduzido para o inglês, e isso colocou um sorriso em sua face. Ele tem agora 87 anos e perdeu seu conhecimento da língua portuguesa e tem alguns problemas de memória. Ele me disse que era ok eu entrar em contato com você.”).

Eu e Bárbara não conseguíamos acreditar. Ficamos muito felizes. Bárbara ficara contagiada com minha admiração por Chandler.

No domingo, dia 11, mesmo mês, tratamos de responder:

– “I am very happy to know that he’s alive! I hope he is well, despite the memory problems. He is a true icon for us Brazilians, who study cangaço and the local culture. Do you know if he has written anything else? I’m sending you a picture of myself with my copy of his book, now a rarety over here. If possible (and I completely understand if any of you don’t feel comfortable) could you send me a picture of him? My daughter helped me a lot in my researches and would love to see it. Thank you for reaching out!” (“Eu estou muito feliz em saber que ele está vivo! Eu espero que ele esteja bem, apesar dos problemas de memória. Ele é um verdadeiro ícone para nós brasileiros que estudamos cangaço e a cultura local. Você sabe se ele escreveu mais alguma coisa? Estou enviando uma foto minha com a minha cópia de um de seus livros, que se tornou uma raridade por aqui. Se possível (e eu entendo completamente se vocês não se sentirem confortáveis) você poderia enviar uma foto dele? Minha filha me ajudou muito nas pesquisas e adoraria vê-lo. Obrigada por nos contactar!”).

Ginny voltou a fazer contato:

– “He did not write any more books, 4 books altogether. I recall while I was growing up, his visits to Brazil. Here is a picture of him last year just after his 86 birthday”. (“Ele não escreveu mais livros, foram quatro ao todo. Eu lembro quando estava crescendo, das suas visitas ao Brasil. Aqui está uma foto dele do ano passado, logo após seu 86º aniversário.”).

Billy Jaynes Chandler ainda jovem nos Estados Unidos, onde teve formação acadêmica e foi professor (Foto: reprodução)

Nós:

– “Thank you so much! He looks great! Do you think I could write a follow-up to my article, now that you have given me the great news that he’s alive? I’d simply mention you have reached out! Maybe I could use the picture? Only if you allow me, of course. Once again, thank you so much for this exchange of messages, you have no idea how much it meant to me and my daughter”. (“Muito obrigada! Ele parece ótimo! Você acha que eu poderia escrever uma continuação do meu artigo, agora que você me deu a ótima notícia que ele está vivo? Apenas se você me permitir, claro. Mais uma vez, muito obrigada por essas mensagens, você não tem ideia do quanto significa para mim e para minha filha!”).

Ginny:

– “You are more than welcome to do a follow-up. Your question to “where is Billy Jaynes Chandler” has been answered. He lives in Miami, Florida with his sister. :) I wish you could talk with him, he just doesn’t remember much, but has strong memories, although unclear, of his time in Brazil. Take care to you and your daughter”. (“Sinta-se à vontade para fazer uma continuação! Sua pergunta ‘Onde está Billy Jaynes Chandler’ foi respondida. Ele mora em Miami, Flórida, com sua irmã. :) Eu gostaria que você pudesse falar com ele, ele apenas não se lembra de muita coisa, mas tem fortes memórias, apesar de incertas, do seu tempo no Brasil. Lembranças a você e sua filha!”. Muito obrigada Ginny.

Estamos enviando esse artigo para você e fazendo a postagem no blog, para que quem puder tenha conhecimento dessa notícia. Ficamos maravilhados em saber que Chandler está vivo.

Torcemos por ele, desejamos que fique muito bem, e lhe enviamos um grande abraço aqui do Nordeste do Brasil, do Sertão que ele conheceu.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do RN

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