Por Marcelo Alves
Nas últimas semanas, tenho aqui tratado da “ética das profissões/personagens jurídicas”, propositadamente de maneira interdisciplinar, misturando o direito com a literatura e o cinema. Uma maneira lúdica – afinal, poucas coisas são tão gostosas como a literatura e o cinema – de abordar a ética de profissões hoje tão incompreendidas, mas fundamentais, que, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (no seu “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, Editora Saraiva, 2016), são capazes “de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e a corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”.
E acho que o fiz também de uma forma sistematizada, já que, seguidamente, tratei de profissionais/personagens como o governante, o legislador, o juiz, o promotor, o advogado, o professor/jurista, o jurado, o réu, a testemunha e por aí vai.
Dito isso, usarei como mote, para um arremate da temática, a mistura de todas essas profissões no teatro clássico grego. Se há semanas comecei a análise das profissões jurídicas com a “Antígona” (441 a.C.), de Sófocles (497-406 a.C.), desta feita, para finalizar, volto à Grécia antiga com o “Édipo Rei” (429 a.C.), do mesmo autor. Um retorno ao nosso eterno berço.
O enredo – ou o mito – de Édipo é conhecidíssimo (e notadamente desenvolvido na psicanálise de Sigmund Freud). Filho do rei tebano Laio, Édipo, ainda bebê, foi deixado para morrer, pois o seu destino era, segundo o Oráculo de Delfos, matar o próprio pai e desposar a mãe. Mas é salvo por um pastor. Já adulto, entre Corinto e Tebas, mata um velho homem. Chega a Tebas. Responde a um enigma proposto pela Esfinge. Salva a cidade. É feito rei, casando com Jocasta, sua mãe e viúva de Laio, assassinado misteriosamente.
Anos após a realização da profecia, e Édipo sendo rei de Tebas, uma peste castiga a cidade. O Oráculo de Delfos, segundo consultado por Creonte (que sucederá como rei), vaticina que, para salvar Tebas do sofrimento, é necessário descobrir e punir o assassino de Laio. Édipo promete aos cidadãos da pólis encontrar e punir o homicida. Édipo sai em sua “caçada”. Mas quando consegue chegar à verdade, ele constata a existência de um só inesperado responsável – ele próprio.
Já tratei de “Édipo Rei” em outra oportunidade para frisar duas coisas: (i) nela, o leitor verá a origem, como um precursor, da dita ficção policial ou detetivesca, gênero literário mais que popularíssimo; e (ii) que podemos também traçar, a partir de “Édipo Rei”, a origem ou o conceito de um mui específico subgênero da literatura (e do cinema), a “ficção de tribunal” (“courtroom drama”), cujas estórias se passam perante uma corte de justiça em funcionamento, com seus atores (advogados, promotores, juízes etc.) realizando suas peripécias jurídicas.
Mas hoje quero ir além na análise de “Édipo Rei”, para dela tirar uma lição ou “moral”.
Na trama, em busca do assassino de Laio, Édipo procura a verdade dos fatos, ouve testemunhas, envia mensageiros para coleta de informações e provas, analisa os relatos, pondera hipóteses, tudo reunindo para formar uma convicção acerca da identidade do responsável pelo hediondo crime. Proativamente agindo, é um policial, um detetive, um investigador.
Mas há também inúmeras cenas, como os diálogos/confrontos entre Édipo e Tirésias e entre Édipo e Creonte, que deveras se assemelham ao que se dá em uma sala de audiência/tribunal. Um “courtroom drama” no qual Édipo é promotor e é juiz. E Édipo, claro, nunca deixou de ser Rei, muito embora se veja ao final também culpado.
A mistura de papéis – detetive/promotor/juiz/rei/culpado – não dá certo. Sabedor da verdade, desesperado, Édipo se autocondena, arranca os próprios olhos, para não ser testemunha da própria desgraça e dos próprios crimes. Jocasta, sua mãe, esposa e rainha, outra mistura fatal, comete suicídio. Os destinos são cumpridos. E são só tragédias.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
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