Por Marcelo Alves
Embora eu saiba que sua origem está na química e não no direito, sou fã da Lei de Lavoisier (1743-1794), também chamada de Lei da Conservação das Massas, que, em uma de suas versões mais conhecidas, dispõe: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Minha corruptela jurídica da dita cuja é: “vamos ganhar tempo e imitar/adaptar o que é bom”.
Isso inclui fazer uso, para fins de criação e reforma legislativa, de bons exemplos/soluções de leis estrangeiras, incorporando-os ao direito pátrio. Por exemplo, na minha área de expertise, o processo civil, já dizia Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros, 2002), uma das tendências mais visíveis, na América Latina, tem sido: “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas. (…). Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.
Na verdade, como já detectava Jerome Hall (em “Comparative Law and Social Theory”, Louisiana State University Press, 1963), esse intercâmbio jurídico é um fenômeno geral desde meados do século XX, quando, “a nível mundial, as mudanças sociais e políticas e a concomitante ‘mistura de culturas’ que marcam esse século aceleraram o interesse no estudo comparativo [do direito]”. E, nas últimas décadas, com a exponencial “globalização”, a facilidade de comunicação e o crescente intercâmbio cultural, a absorção de institutos estrangeiros pelo direito brasileiro tem se intensificado cada vez mais.
Lembremos, no presente contexto, a lição de William Twining (em “Globalisation and Legal Theory”, Butterworths, 2000): “o termo ‘globalização’ se refere àqueles processos que tendem a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, e uma complexa rede de comunicações que cobre todo o mundo, mesmo que não penetre cada parte dela. Anthony Giddiness caracteriza o processo como ‘a intensificação das relações mundiais que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa’”.
Entretanto, seria um brutal equívoco defender a automática incorporação, por um direito nacional em sua legislação, de soluções legais estrangeiras, sejam de que país for, como às vezes o fazem entusiastas de certos sistemas jurídicos. Em direito comparado – e aqui já imitando a medicina – chamamos essa automática incorporação de “transplante”. Transplantamos a lei X do país A para o país B. O transplante de normas estrangeiras, sem discussões e sobretudo adaptações, invariavelmente leva a soluções inadequadas para as tradições e a realidade do país destinatário. Um transplante, sabemos da medicina, demanda compatibilidade.
Aqui reside uma das principais funções do direito comparado, como ferramenta para, estudando modelos estrangeiros, trabalhando de lege ferenda, empreender uma possível reforma da legislação/direito nacional. Os sistemas jurídicos ocidentais enfrentam essencialmente os mesmos problemas de base, que tentam resolver por meios jurídicos semelhantes ou diversos. E estudos de direito comparado podem apresentar as soluções que sistemas jurídicos estrangeiros oferecem para um determinado problema, e onde e como se podem usar essas soluções em dado sistema nacional. Mas esses estudos devem ser realizados de forma crítica, para que o “transplante”, como se dá também na medicina, não resulte em “rejeição”.
Como mecanismos de controle, como um remédio na medicina, esses estudos comparativos (teóricos ou empíricos) devem ser precisos. Na “dose certa”, ouso dizer, de entusiasmo e cautela. Até porque, quanto a essa mistura de “direitos”, já dizia Lorenzo Zucca (em “Constitutional Dilemmas: Conflicts of Fundamental Legal Rights in Europe and the USA”, Oxford University, 2007), um dos meus orientadores no PhD no King’s College London: “até que ponto isso é possível depende da precisão das análises comparativas que o acompanham. Apesar de eu não acreditar que podemos desenhar um império global em que o direito disciplina independentemente do seu contexto, acredito na possibilidade de enriquecer a própria compreensão das diferentes experiências nacionais comparando-as e apresentando suas semelhanças e diferenças. Por esta razão, a comparação aguça a compreensão: ela aponta para o papel das contingências e das práticas locais na formação de conceitos jurídicos”.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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