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domingo - 26/06/2011 - 07:50h

Um herói mossoroense (Manoel Duarte)

Por Honório de Medeiros

Um preciso tiro de fuzil ecoou no final de tarde nublado do dia 13 de junho de 1927 e, aproximadamente cem metros além, a bala atingiu o meio-da-testa de um caboclo puxado para o negro aparamentado com a indumentária típica do cangaceiro, prostando-o na terra nua, de barriga para cima, a olhos fixos e vazios voltados para o céu acima, bem ali onde a Avenida Rio Branco cruza a Rua Alfredo Fernandes, onde, na esquina, fica a famosa Igreja de São Vicente cuja imagem, do seu nicho decenal, tudo contemplava.

Era o começo do fim.

No alto da casa do Prefeito Municipal – o líder que começara a epopéia -, no telhado, o atirador viu quando outro cangaceiro, de um trigueiro carregado se aproximou, rastejando e disparando, da vítima, e começou a rapiná-lo, retirando freneticamente, de seus bolsos, munição, dinheiro e jóias. Calmamente, mirou e aguardou.

Pressentindo o perigo iminente o bandido ergueu o tronco elevando os olhos até o telhado da casa cuja frente fora tomada por fardos de algodão prensados para servirem de barreira. Foi apenas um momento, mas foi fatal.

Outro tiro de fuzil ecoou e, no mesmo local onde seu companheiro jazia sem vida o cangaceiro foi atingido.

O violento impacto da bala derrubara-o momentaneamente e desenhara, em seu tórax, uma rosa de sangue. Seus parceiros, paralisados, perplexos, observavam incrédulos. Começou a debandada.

Enquanto os resistentes percebiam que a ameaça fora sustada e o recuo dos cangaceiros era generalizado, o atirador recolhia o fuzil e fitava a cidade no prumo que tinha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição como limite. Olhava e pensava.

Ele tinha morto um cangaceiro e ferido mortalmente outro. Não havia dúvida quanto à importância desse fato para a vitória. Mas cangaceiros são vingativos, cangaceiros são ferozes, cangaceiros são cruéis. Cangaceiros são dissimulados e não esquecem nunca, matutava ele com seus botões.

Se ele aceitasse passivamente as homenagens que lhe seriam tributadas a partir daquele momento tudo poderia, no futuro, desandar no gosto amargo causado pela retaliação de algum anônimo, talvez até mesmo em algum parente, como era prática comum na vida cangaceira. Não que fosse medroso. Ao contrário.

Todos quantos lhe conheciam podiam atestar sua coragem e perícia com as armas, que já ficavam lendárias. Mas era melhor se precaver. Era melhor silenciar. Não seria o caso de negar veementemente, por que não era homem para esse tipo de extroversão mentirosa. Mas ia silenciar. Não ia comentar nada.

Duarte, um herói de verdade

O que estava feito, estava feito, e era de acordo com seu temperamento reservado. Se lhe perguntassem, mudaria de assunto. Se comentassem em alguma roda da qual estivesse fazendo parte, sairia de mansinho. Guardaria a verdade consigo, por muito e muito tempo, e a contaria apenas para alguns escolhidos.

Naquele dia banal, muito tempo depois, sozinho com seu neto de dez anos de idade, sentiu vontade de contar aquilo que nunca contara a ninguém. Era uma necessidade da alma, um anseio de perpetuar um feito honroso, um gesto de heroísmo que o mostrava tão diferente dos que tinham fugido em direção ao mar quando os cangaceiros ciscavam nas portas de Mossoró, um gesto que lhe orgulhava por que defendera sua família e sua cidade a um custo alto, que era o de tirar a vida de alguém.

Olhou para o neto e compreendeu que ali estava o interlocutor perfeito. Não questionaria, não interromperia, não esqueceria. Guardaria a lembrança do dia e do relato. Assim sendo começou a lhe contar todo o episódio, detalhe por detalhe.

O neto apenas olhava intensamente e sentia que estava sendo transmitido, para ele, algo muito importante e que somente no futuro seria plenamente entendido. Acalmou sua inquietude de menino. Não desgrudou o olho do seu avô, aquele homem reservado e pouco propenso a confidências.

No final, quando toda a história havia sido contada, compreendeu que devia guardá-la consigo, até mesmo esquecida, por algum tempo. Em um final de tarde tipicamente mossoroense, de muito calor, em um café, o neto se aproximou de uma roda de estudiosos do cangaço e percebeu que discutiam a participação do seu avô na invasão da cidade pelo bando de Lampião. Uns diziam que havia sido ele o autor dos disparos. Outros negavam e apontavam nomes.

Quase oitenta anos haviam se passado do episódio. O neto, agora, era cinqüentão. Sentiu que ali estava o momento certo para contar a história, a sua história, a história do seu avô. Aquela platéia saberia ouvi-lo e entenderia plenamente as razões do silêncio da família.

Contou tudo.

Fechou-se o ciclo.

Dezenas de anos depois já não há mais dúvidas. O atirador postado no alto da casa de Rodolpho Fernandes, o homem que praticamente abortara a invasão lampiônica, o herói entre heróis fora Manoel Duarte. Esta é a verdade, como o sabe sua família e a contou seu neto, Carlos Duarte, jornalista, muitos anos depois, a mim, que registro, aqui, a história, e a Kydelmir Dantas e Paulo de Medeiros Gastão, estes últimos dirigentes da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário do Estado do RN e da Prefeitura do Natal

P.S – Décadas depois desse feito, ele foi homenageado com o nome de um largo à Avenida Rio Branco, além de busto, de frente onde fora sua casa. Mas na construção da chamada “Praça da Convivência” no primeiro governo Fátima Rosado (DEM),  o busto foi retirado.

A peça de bronze foi localizada semanas depois num depósito de ferro velho, pronta para ser derretida. A intervenção de sua família e do então “Jornal Página Certa” fez com que o governo municipal arranjasse um meio de reparar o crime à história e à cultura de Mossoró, doando outro espaço à fixação do busto.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. David de Medeiros Leite diz:

    Amigo Honório; em 12 de outubro de 2003, no velho “O Mossoroense”, publiquei um artigo intitulado “MANOEL DUARTE – NOSSO HERÓI”, e começo o referido texto com alguns questionamentos:

    “Quem foi Manoel Duarte, na história mossoroense? Quem foi Jararaca? E Lampião? Quais das perguntas seria respondida com facilidade pelo estudante de ensino médio, de nossa cidade? Ou pelo universitário? Ou se por acaso abordássemos um transeunte, que resposta ele daria?

    Quando vejo alguns nomes em escolas, ruas e avenidas, fico sempre a perguntar: Quem foi? O que fez? Subiria esse homenageado no alto da torre para lutar por sua cidade? Arriscaria a própria vida? Deixaria sua família para vim lutar por todos de sua comunidade? Ou iria preferir resguardar-se em atitude isolada?
    Os filhos, netos e descendentes de Manoel Duarte, e dos outros anônimos heróis, não precisam de fanfarras para guardar seus exemplos como legado…..Mas Mossoró, sempre tão libertária, ousada e inquieta, bem que poderia resgatar, como dever de justiça, a verdadeira saga desses homens e, assim procedendo, reveria conceitos de heroísmos e homenagens…”

    É isso, amigo.
    Abraços
    David Leite

  2. fernando fla diz:

    JÁ PENSOU SE O CIDADÃO FOSSE DA FAMILIA ROSADO? SERIA FESTEJADO E CARREGADONIM ANDOR.

  3. zeroberto diz:

    Ainda bem Davi,que voce tá na Espanha,longe daqui,se aqui estivesse,poderia algum dia desses,cumprindo o desejo DELES, está jogado junto a “nosotros”,onde esteve obusto de SEU MANOEL.

  4. Ricardo de Almeida diz:

    Boa tarde, sou Ricardo de Almeida, prof. de História há 30 anos em SP. Meu avô materno, Jonas Duarte, nasceu em Mossoró em 1918. Fiquei surpreso ao ler a História de Manuel Duarte. Sei que meu avô veio para SP com 18 anos e na ocasião da invasão do bando de Lampião à cidade de Mossoró ele tinha 15. Imagino que existe parentesco entre eles. Nunca meus parentes mencionaram o nome de Carlos Duarte, porém gostaria de conhecer mais a fundo outros ramos da família. Sei que meus tios-avôs se chamavam Francisco, Expedito e Letícia (todos falecidos), esta, figura muito conhecida em Mossoró, pois era madre superiora em um colégio católico, irmã Maria, salvo engano. Assim como Francisco, proprietário de uma conhecida loja de caça e pesca (armas) na cidade. Ficarei grato se puder me contar algo sobre o possível parentesco. Muito obrigado.

    • Yasmim Maia Duarte de Miranda diz:

      Ricardo de Almeida me chamo Yasmim Duarte, minha mãe liana Duarte, neta de Manuel Duarte me falou das pessoas que você comentou na sua postagem. Francisco Duarte, mais conhecido como Chico da Caça e Pesca, referente a loja que o mesmo era proprietário. Letícia Duarte, conhecida como irmã Aparecida. se ainda tiver interesse entre em contato comigo que tem guardado aqui na minha casa um livreto que possui toda a descendência da família Duarte que posso digitalizar e te enviar.
      yasminmduarte@hotmail.com

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