domingo - 14/09/2025 - 13:38h

Vencendo a ignorância e o preconceito

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

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Se o direito brasileiro acabou optando por uma associação com o civil law (afinal, os códigos e as leis são a nossa primeira fonte formal para a aplicação do direito), ele não ficou imune à influência do common law. Sobretudo nos últimos decênios, tendo como ponto de partida a adoção das ações coletivas, o legislador brasileiro tem se voltado para os países que adotam o common law a fim de buscar ideias para o aprimoramento da sua legislação, especialmente em áreas como o direito processual. Dessas ideias, provavelmente a mais palpitante era – e ainda o é – a de um uso mais amplo, criativo e vinculante dos precedentes judiciais.

De fato, os precedentes se tornaram um assunto muito debatido, ainda que, no começo, em alguns casos, sem profundidade teórica e com muito preconceito. Nesse início, o debate entre nós se concentrou basicamente na conveniência ou não da adoção da Súmula Vinculante do STF, e menos nos fundamentos e no modus operandi de uma verdadeira teoria brasileira do stare decisis.

Muitas vozes se levantaram – embora por diferentes razões, que incluíam principalmente supostas violações aos princípios da separação de poderes e da persuasão racional do juiz – contra a adoção da Súmula Vinculante ou mesmo qualquer tentativa de implantar uma regra tupiniquim de stare decisis. Com todo o respeito, boa parte dessas opiniões – sobretudo as desfavoráveis – decorria da ignorância do tema. Era isso que se notava ao ler os artigos publicados por ilustres autores, em revistas especializadas ou mesmo em jornais, sobre o tema. A sensação, na multiplicidade de opiniões, é a de que “pairava no ar” uma certa ignorância sobre o que era, verdadeiramente, a doutrina do stare decisis.

Além disso, havia também a questão do simples preconceito contra coisas do estrangeiro. É claro que também censuramos a simples adoção, sem qualquer crítica ou adaptação, de modelos ou institutos estrangeiros, o chamado “transplante” puro e simples, pregada por entusiastas deste ou daquele sistema. Com a simples adoção da teoria do stare decisis à moda inglesa ou mesmo estadunidense, sem qualquer discussão prévia e sem as devidas adaptações, estaríamos encampando uma sistemática contrária às tradições e às realidades do nosso país.

Por exemplo, a simples adoção da regra inglesa do stare decisis choca-se com a realidade de nossas dimensões continentais e de nossas diferenças regionais e de um Poder Judiciário que é composto por magistrados com valores, às vezes, os mais diversos, acerca de uma mesma situação fática ou jurídica. Todavia, não podemos simplesmente descartar o que vem de bom de fora. Na realidade, como ensinam Basil Markesinis e Jörg Fedtke, Jörg (em “Engaging with Foreign Law”, Hart Publishing, 2009), com as devidas adaptações, “os transplantes continuam sendo extremamente importantes na prática. Alan Walton observou em 1974 que tomar emprestado boas ideias é ‘a forma mais comum de mudança na legislação’, e isso é verdade para as questões constitucionais atuais assim como o foi para o direito civil e comercial no passado”.

Felizmente, a ignorância e o simples preconceito doutrinário contra o direito estrangeiro – no caso, aquele de origem no common law – não se refletiu nas sucessivas etapas de reforma legislativa conduzidas pelo Parlamento brasileiro nos últimos anos. Se o legislador brasileiro, seguindo a opinião dos especialistas, entendeu que o simples transplante de um modelo estrangeiro não seria conveniente para o Brasil, por outro lado ele achou por bem criar um verdadeiro sistema brasileiro de precedentes judiciais. Juristas e legisladores brasileiros tomaram emprestados conceitos e práticas que são consideradas bem-sucedidas na tradição do common law. Com base nesse conhecimento, eles buscaram desenvolver um sistema de precedentes vinculantes em que os conceitos, termos e modus operandi não afrontem os contextos históricos, filosóficos e jurídicos brasileiros.

Mecanismos em prol de uma uniformidade vertical e horizontal das decisões judiciais, baseados em algum tipo de vinculatividade de precedentes, foram passo a passo introduzidos no direito brasileiro, tais como a Súmula Vinculante do STF, a repercussão geral no recurso extraordinário, as teses firmadas em recurso especial repetitivo e os novos institutos e recomendações para a observância da jurisprudência dos tribunais presentes no CPC de 2015. Aliás, essas diversas espécies de decisões vinculantes, esse “stare decisis à brasileira”, são um “grande salto” em direção à “hibridização” do nosso sistema jurídico, historicamente vinculado à tradição do civil law.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica

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