Por Bruno Ernesto
Até que ponto a convicção, ou seja, a opinião firme sobre algo, influencia nossa vida?
Todos nós, uns mais, outros menos, temos nossas convicções.
A convicção, normalmente, se dá com base em provas ou razões íntimas e, às vezes, por persuasão de outro. O famoso convencimento.
Entretanto, nesse contexto, há uma instituição milenar, digo, de tempos imemoriais, multicultural, hereditária e pluralista, e que está presente em todas as sociedades; civilizadas ou incivilizadas: teimosia.
Em outra oportunidade, destaquei que na tradição cristã, especificamente católica, até meados do século XIX, ante a inexistência de cemitérios como estamos acostumados a ver hoje, os sepultamentos se davam nos adros, uma vez que todo cristão deveria ser sepultado em chão sagrado. Se tivesse muito prestígio naquela época, era enterrado de pé e dentro da igreja, de modo a descansar eternamente entre os santos.
Com o crescimento populacional e a ocorrência de epidemias e, por vezes, desastres, que passaram a vitimar mais pessoas num curto espaço de tempo, os adros já não mais comportavam as inumações, como antes a tradição católica exigia e, a partir de meados do século XIX, foram construídos os primeiros cemitérios nos moldes que ainda podemos ver, com túmulos ornamentados, alamedas, epitáfios e, por vezes, esculturas, havendo uma, digamos, uma reacomodação e readequação do que venha a ser um local espiritualmente digno para o descanso do cristão que fez sua Páscoa definitiva.
No texto de minha autoria intitulado Passado Longino (//blogcarlossantos.com.br/passado-longino/), destaquei que nem só de fé e devoção se viveu na terra de Santa Luzia e que há muita história interessante e pouco conhecida que ocorreu nos arredores da Catedral de Santa Luzia.
Como sabido, a cidade de Mossoró nasceu da fé e devoção à Santa Luzia, e o povo mantém a tradição e religiosidade até hoje, sendo a festa em homenagem à padroeira da cidade, no mês dezembro, o ápice das comemorações e demonstração de fé dos seus devotos.
Entretanto, a teimosia, como acima destaquei, é uma tradição imemorial; e algumas pessoas elevam a um nível extremo. Há quem chegue a ponto de perder a sua salvação divina a ter que torcer o braço.
No ano de 1867, faleceu na cidade de Mossoró, um cidadão chamado Álvaro Marreiro, mais conhecido por Cocão e faleceu sem o perdão divino.
Cocão, repetida e solenemente, recusou a confissão ao Vigário Antônio Joaquim, que o alertou repetidamente e condicionou o seu sepultamento no adro ou dentro da Catedral de Santa Luzia ao recebimento do sacramento da reconciliação e, assim, ter seus pecados perdoados. Era inegociável.
Não se sabe o motivo, mas o dito cidadão, tinha uma intriga com outro cidadão em Mossoró, cuja intriga ele julgava irreconciliável. Não havia meio termo. Nem do Vigário, nem do fiel.
Apesar da insistência e alertas do Vigário Antônio Joaquim, de que se não se confessasse, ao morrer, não seria enterrado no adro da catedral, Cocão foi irredutível, e, por fim, morreu sem perdoá-lo, e, não tendo se confessado, levando a intriga ao extremo, a ponto de não se reconciliar e não ter o perdão divino.
Pode parecer absurdo, ou até mesmo engraçado para os desavisados.
Cocão poderia até ser chamado de ingrato, louco, herege, imponderável, insensível e até de teimoso. Até poderia fazer sentido alguém pensar dessa forma, afinal, quem não queria a salvação divina e o descanso eterno num santo lugar, ainda mais em pleno século XIX, onde a religiosidade ditava a vida e atitude de todos?
Porém, uma coisa é certa: jamais poderiam lhe taxar de ser incoerente. E, ao contrário do que possa parecer, em verdade, Cocão era muito temente a Deus.
Ora, como se confessar, recebendo o sacramento da confissão para ser aceito de direito no mundo divino, se não era capaz de, genuinamente, cumprir o mandamento de amar, e, pois, perdoar o próximo? Naquele tempo, meados do século XIX, a fé, atos e atitudes, guardavam extrema coerência.
Diante do passamento de Cocão, e o fato de ter se recusado a se confessar, o Vigário Antônio Joaquim outra alternativa não teve, senão proibir o sepultamento de Cocão no adro ou dentro da capela de Santa Luzia, pois, se autorizasse, estaria ele, Vigário, descumprindo uma determinação superior, permitindo um impuro habitar a eternidade e um solo sagrado sem ter remido.
Assim, determinou que fosse o defunto sepultado numa mata que existia nos fundos da capela, impedindo, portanto, que Cocão repousasse eternamente em chão sagrado. Não havia alternativa.
Entretanto, por obra do destino, ou divina, no ano de 1878, com a ampliação da Catedral de Santa Luzia, cujas dimensões são as mesmas que podemos ver hoje, o altar-mor da Catedral foi construído em cima do local de sepultamento de Cocão, e, ao que parece, o cidadão Álvaro Marreiro, obteve o perdão divino de forma transversa, havendo a sua teimosia sido convolada em puro perdão, sendo agraciado com o altar-mor, tal qual a Basílica de São Pedro, no Vaticano, ganhou o Altar Baldaquino.
Assim, ao pé e ao final, a coerência de Cocão, digo, Álvaro Marreiro, foi sua salvação espiritual. Que descanse em paz. Afinal, nemini parco.
Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor
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