Meu passado como folião não chega a ser glorioso. É opaco mesmo. Nem passado é. Não passa de um fóssil antropológico. O máximo a que me atrevi foi compor a platéia para ver “Os pimpões”, “Salinistas”, tribo de índios “Penas Prateadas” e outras agremiações de rua em Mossoró.
Os olhos de menino testemunhavam o belo, o rugir de tambores, evoluções circenses e um multicolorido incomum. Mas a timidez parva não permitia sequer os passos recatados do miudinho, uma coreografia quase imperceptível, que em momento algum eleva o sujeito do chão. É como amassar barro.
– Você vai passar o carnaval comigo em Aracati (CE). Você é meu convidado – fuzila Enéas, meu novo-velho amigo de faculdade.
Podia faltar? Seria descortesia e insulto àquela camaradagem. E cá pra nós: eu precisava mudar de ares, oxigenar, chacoalhar o esqueleto ou apenas aliviar o estresse. Decidi-me por aceitar convite.
Foi lá que conheci Chiquinho.
Discreto, indivíduo de poucas palavras, benquisto por todos e com uma intimidade familiar capaz de lhe garantir um lugar acima de todos, Chiquinho não era qualquer um. Era o “cara”, digamos assim.
Tanto prestígio não o tornava arrogante no meio familiar. Fechadão diante de quem não conhecia, averiguava primeiro com quem tratava, para deixar de olhar de lado e balbuciar algumas palavras.
O infante Heitor, príncipe-herdeiro de Enéas, até parecia conformado em dividir as atenções com Chiquinho, naquela casa sempre agitada, de frenético entra-e-sai de gente.
Na verdade, os dois não pareciam rivais. Só que não se pode afirmar também que Heitor estivesse numa companhia exemplar e ideal à sua formação de garoto-homem.
Testemunhei o Chiquinho mergulhando o bico na cerveja e até mesmo na pinga, com a maior naturalidade. Os olhos reviravam de êxtase. “O forte dele era mesmo a cerveja”, comenta Enéas. “Bebia até se fartar”, esclarece. Ou seja, não tinha limites para o vício e o seu copo estava ali, separado, à mesa.
Por que estou tanto a comentar sobre o Chiquinho, quando o natural seria descrever o burburinho do carnaval popular de Aracati?
Bem, é triste revelar, mas não vou mais esconder: Chiquinho morreu. A notícia quem me dá é o próprio Enéas. “Era como se fosse da família”, admite. Nem precisava acrescentar a observação. Pude testemunhar isso.
O pouco tempo de convivência com Chiquinho revelou o que seria impossível ignorar, ou seja, a presença dele era imponente. Fitava a todos de cima para baixo, mas com a popularidade de uma vedete do teatro de rebolado. Ops! Peraí.
Deixe-me esclarecer. Ninguém tome o comparativo como insinuação que atente contra a honra e os valores sexuais do finado.
O costume feio dele se prendia às carraspanas. Era cu-de-cana declarado. Só. Não lanço qualquer insinuação menor. Morto merece respeito.
As primeiras averiguações feitas no local onde encontraram seu corpo inerte, em posição de decúbito frontal, revelam que a morte ocorreu ainda na madrugada. Houve luta corporal, um duelo titânico.
O agressor o derrubou de considerável altura, passando a atacá-lo com fúria bárbara. As marcas da crueldade eram visíveis.
Com a experiência de quem foi diarista da vodca Wyborowa e que na decadência etílica esteve movido a “Odete” e conhaque Imperial (argh!), arrisco um comentário: “Chiquinho estava triscado quando morreu. Deve ter facilitado a vida do assassino.”
Enéas retruca. Defende-o com vitalidade. “Ele só tomava umas nos finais de semana”, assegura. Como se convencionou chamar, Chiquinho “bebia socialmente”. Tudo bem. Não contesto a informação e não desejo criar embaraço à biografia de quem se foi. Mantenho discretamente minha desconfiança e pronto.
Inconformado com a morte no quintal de sua casa, Enéas jurou vingança. Seria a reprodução do “olho por olho, dente por dente.” Relaxando, livre da tensão inicial ao relatar o infortúnio, ele fala com ar triunfante que deu cabo do algoz do seu amigo. Não deixou barato.
Colocada estrategicamente no local do crime, uma ratoeira enjaulou o enorme roedor que matara o pacato Chiquinho. O papagaio de cerca de um ano de idade, alegria da casa de Enéas, realmente não merecia fim tão violento. Entretanto, a justiça foi feita.
Minhas condolências à família. Eis meu tributo a Chiquinho.