Eram do interior de São Paulo. O pai, de chofre, perguntou-me: qual a cidade mais bonita, – Paris ou Madri? Respondi sem hesitar: Paris, claro, é mais bonita. A esposa sorriu vitoriosa. Parece que havia uma pequena querela familiar sobre as duas cidades.
Eu dera ganho de causa à teima feminina, sobretudo porque convencera o homem com a rapidez e o categórico da resposta. Sim, nem se pode comparar. Paris é mais bonita! Ora, o fato do homem ter gostado mais de Madri do que de Paris é bastante simples de se explicar.
A capital espanhola, com suas largas avenidas no centro, fervilhando de gente, aproxima-se mais da noção de cidade com que ele está acostumado no Brasil. Para se amar sinceramente Paris é necessário como que abrir clareiras na nossa sensibilidade. Sua configuração espacial – ruas completamente cinzentas, uniformemente homogêneas, de prédios de apartamentos com no máximo sete andares (quase não se vêem casas) – requer um reordenamento interior, quer dizer, abrir um campo novo para cultivar uma seara com plantas exóticas.
A paisagem de Paris nos obriga a tatear áreas desconhecidas da nossa subjetividade. Utilizo recorrentemente a imagem da fenda que é colocada numa pequena abertura para forçar um espaço maior. Assim é com nossa sensibilidade: precisamos forçar um pouco para que um novo espaço de compreensão se instaure.
Se formos flexÃveis, teremos a possibilidade, daquele momento em diante, de nos « cosmopolitizarmos »; por outro lado, se formos detentores de estruturas mais rÃgidas, recusaremos, dizendo que é feio, imoral, absurdo, esquisito.
Para as mulheres, é sempre mais fácil esse movimento em direção ao desconhecido. A indigitada curiosidade feminina conduz a alma por áreas não-conhecidas, mesmo que algumas não elaborem intelectualmente aquilo que os sentidos percebem/captam (e fruem).
Nesse sentido, as mulheres afinam pelo mesmo diapasão dos loucos, das crianças. Alguns filmes do Fellini tentam demonstrar essa tese.
Pode ser também que os homens recusem num primeiro movimento aquilo que não se enquadre de imediato nos seus esquemas mentais. Em sendo assim, os homens teriam uma tendência a serem mais fechados? Não sei.
Voltemos a Paris. É sempre polêmico falar de uma coisa tão nuançada como os gêneros: pode-se cair em generalizações injustas. Se tomarmos como referência a acepção que Guimarães Rosa utiliza no Grande sertão: veredas, – e não aquela estigmatizadora de Euclides da Cunha, no livro Os sertões -, que pode ser sintetizada na conhecida expressão « o sertão é o mundo ».
Precisa-se ser muito ingênuo mesmo para se fazer uma leitura ao pé da letra. Sertão, lá em Rosa, significa: « lugar onde (con)vivem os humanos ». Sertão não é espaço fÃsico, geograficamente delimitado.
Consoante este sentido, Paris é um grande sertão. Não só num registro filosófico, mas também no que concerne à paisagem fÃsica.
Paris no inverno assume uma feição que se assemelha à caatinga durante o verão. A parecença não é arbitrária da minha parte, visto que não existe grande distância entre a realidade e a metáfora proposta.
Caminha-se por uma rua, e tudo é cinzento, assim como se caminha ladeado de mata acinzentada na fase do estio na estrada que segue para Caraúbas. Não tem diferença nenhuma: cinza, ermo, incomunicabilidade.
O poeta Murilo Mendes diz que o espÃrito de Paris é feito de petits riens, quem não souber notá-los não terá entendido nada da cidade. As mulheres sempre atentas ao detalhe, ao miúdo (que não me deixem mentir as escritoras VirgÃnia Woof, Catherine Mansfield, Clarice Lispector, produtoras de uma literatura voltada para a análise psicológica e para o mundo das sensações, e não para o entrecho), conseguem perceber e apreciar rápido o espÃrito da cidade de Paris.
O turista de classe média do interior de São Paulo jamais poderia ter preferido Paris a Madri.
Para encerrar, lembro da cantora negra americana que viveu na França, Josephine Baker, já bastante madura, cantando com voz grave « j’ai deux amours, mon pays et Paris ». Sim, eu também tenho dois amores: o Nordeste e Paris.
* Para Nivaldete
Márcio Lima Dantas é professor de Literatura da UFRN, ensaÃsta e tradutor
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