Por Cid Augusto
Por volta das 11h, de segunda a sábado, trabalhadores da região lotam o canteiro do cruzamento das ruas Afonso Pena e Governador Juvenal Lamartine para almoçar no restaurante de Angélica, mais conhecido como Cigarreira da Carioca. Dia após dia, ela e sua fiel escudeira Avete atendem dezenas – talvez centenas – de pessoas.
Comida sem frescura, saborosa, farta, barata. O prato, como diria o livreiro Abimael Silva, custa “somente 15 contos”. Hoje, o cardápio é arroz, feijão, macarrão, farofa, salada e carne – boi ou frango. Não tem o pudim que Angélica garante ser o melhor do mundo, por questões logísticas passageiras. O jeito é quebrar o galho com rapadura.
O povo faz fila. Quem não chegar cedo, dança, a exemplo do que me ocorre de vez em quando pelo costume de almoçar tarde. Reservaria por WhatsApp se a proprietária lesse a mensagem antes de a comida se acabar. “Tem dias” – se Chico usa, posso usar – que raspo as terrinas de arroz e feijão, e peço um ovo frito de complemento.
A propósito, para quem não sabe, cigarreira nada tem a ver com cigarros no RN. Nas bandas de cá, à revelia dos dicionários, a expressão designa pequenos pontos comerciais construídos em metal e instalados em canteiros e calçadas. Na própria Afonso Pena há várias delas, com oferta de produtos e serviços diversos.
A dona do empreendimento que inspira esta crônica, conforme o apelido antecipa, nasceu no Rio de Janeiro. Quando a conheci, levado pelo poeta George Veras, a Carioca comentou sobre a mudança para Natal. Não me lembro do motivo exato. Recordo apenas tê-la ouvido comparar a violência em ambos os lugares.
A capital fluminense, disse-me, tem índices bem maiores de criminalidade. Lá, seria perigoso agir como estávamos agindo, eu e George, almoçando em via pública com os celulares sobre a mesa, embora ela própria tenha sido furtada por cá. Levaram-lhe o par de sandálias na praia. Este ano, ao menos um roubo foi registrado nas imediações.
O importante é que a gente se delicia com a comida e com as conversas. Ouve-se de um tudo: cálculo estrutural, rede de internet, vendas, pendengas jurídicas, corações partidos, política, literatura, religião, futebol. Escuto em silêncio, a fim de capturar vestígios do cotidiano, matérias-primas da crônica.
Agora mesmo, entre uma garfada e outra, observo dois jovens debatendo o custeio de festas pelo município. Um deles, afobado, declara ter ido à última delas. Bebeu, comeu, embriagou-se, divertiu-se… “Enquanto – arremata o narrador – falta escola, saúde, educação…”. E haja pau no prefeito e nos frequentadores “alienados”.
O interlocutor exige coerência: “Você estava lá, meu amigo!”. O cara retruca: “Estava, sim, foi pago com o nosso dinheiro. E não me considero alienado, não, porque consigo identificar a manipulação da política de pão e circo”. Em acréscimo, explica que essa estratégia é antiga e evoca o Império Romano.
O rapaz do lado oposto da mesa insiste em tom sarcástico: “Perda de tempo protestar contra uma festa, especialmente se você vai a ela”. O boêmio consciente solta a última em forma de questionamento – “Perda de tempo lutar por seus direitos?” – e se levanta com raiva por haver tropeçado nas próprias contradições.
Como se vê, a Cigarreira da Carioca é também um ambiente de livre manifestação do pensamento. Pena eu não poder me demorar além dos já consumidos 10 minutos, em razão do trabalho. Vou perder inclusive o desfecho da peleja entre o sujeito de barbas brancas e o inimigo imaginário dele. Pense numa briga! Arrisca sair bofete.
Adoro garimpar histórias, histórias de gente, histórias que não frequentam noticiários nem interessam ao ego inflado dos grandessíssimos intelectuais da província. Contudo, o dever me fustiga. Por míseros segundos de devaneio, penso na aposentadoria, que nunca chegará. Então, volto bruscamente à realidade e chamo por Avete.
– A conta, por favor.
– Crédito ou débito?
– Crédito.
– Pode aproximar.
Pausa dramática. Sempre rola aquela tensão básica enquanto o pagamento é aprovado pela operadora de cartão de crédito.
– Passou?
– Passou, obrigada.
– Até amanhã!
– Até! Caso se lembre, guarde o meu almoço.
Cid Augusto é advogado, jornalista, professor e poeta
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