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sexta-feira - 04/03/2022 - 16:32h
Crônica

A dura escritura

Por François Silvestre

(para Guida Zerôncio, Eva Barros e Sueleide Suassuna)

Não se trata da prática notarial nem dos traslados cartoriais. Muito menos da prática burocrática, seja das justificativas ou dos requerimentos. Não. Isso aí não é escritura, na dureza do escrever, ou na arte de tentar substituir o ruído sonoro dos fonemas.escrever, escrita, leitura, texto, cultura, literatura, livro

Trato aqui da escritura doída a que se referiu Clarice Lispector. “Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura”.

Em Clarice a dureza da escrita não era dificuldade na criação. Era a impossibilidade de espantar a dor íntima que fluía intensa no texto tenso.

De sua terra, na distante Ucrânia, dizia ela nunca ter posto os pés, nem para sair, posto que o fizera ainda no colo. E se fez recifense de pátria adotiva. Ao passar por Natal registrou: “Essa cidadezinha sem caráter”. De Brasília: “Uma prisão a céu aberto”.

Num veraneio de Muriú, Guida Zerôncio preparava a pós-graduação com base na obra de Clarice. Lacan e a ucraniana roubaram a cena naqueles dias. Até Omar Guerreiro, desligado da literatura, mas muito inteligente, fazia citações de “A Hora da Estrela” e “Perto do Coração Selvagem”.

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. Se há um arquétipo que ateste a conceituação de Lacan sobre a fotografia do inconsciente que o texto produz, esse modelo é Clarice. E na poesia, Zila Mamede.

Em Graciliano Ramos a dureza tinha duas dimensões restritivas. A restrição humana do Sertão e a necessidade de enxugar a linguagem. Na sua obra mais popular, ele depenou até o título. Retirou a grandeza substantiva de “O Mundo Coberto de Penas” para a escassez adjetiva de “Vidas Secas”.

Guimarães Rosa plagiou de garimpo o som vocálico das andanças, na voz dos modelos eleitos por seus ouvidos de nhambu. “Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que fui o primeiro que cri”.

Ao seguir essas veredas, o moçambicano Mia Couto confirmou Lacan: “O tiro certeiro sempre carrega algo de quem dispara”.

O autor fotografa o texto, mas é o texto quem o revela. Quando a escrita for apenas palavras postas, sem o condão da “dura escritura”, o texto será um daguerreótipo com a lente tapada. A revelação revelar-se-á uma mancha escura. Uma coisa é escrever. Outra é redigir.

“Na várzea grande do Capibaribe, durante o mês de Agosto, reúnem-se em Congresso todos os ventos do mundo”. Joaquim Cardozo, mestre do cálculo matemático e da poesia aritmética. Dizia ter vindo para uma estação de águas nos olhos da paixão.

Mário Quintana, que a Academia de Letras rejeitou, foi bem maior do que a imortalidade das pompas infantis, cujas rimas das crianças foram as primeiras inspirações do poeta. “Procurando os seus guardados no fundo de uns baús inexistentes”.

É isso. Uma coisa é escrever, outra é redigir.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. A de Andrade diz:

    Me desculpe dono do Blog. Isso não é crônica. É aula.

  2. Marcos Ferreira diz:

    Crônica que dá gosto a gente ler.
    Quem se propõe a escrever tem que fazer a leitura valer a pena.
    Foi o que senti ao longo destas linhas.
    Parabéns, mestre François Silvestre.

  3. David diz:

    Concordo com Andrade: Aula!
    E com Marcos Ferreira: “dá gosto a gente ler”.
    François, como sempre, nos faz refletir.
    Abraço
    David

  4. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Obrigado Caro FRANCOIS, pelo texto sua beleza, exuberância, e, mais ainda da assertiva primorosa quando da inserção das falas de outros mestres no ato de escrever e redigir…!!!

    Oh, quanta diferença qualitativa e estética se verifica quando do cotejo com TEXTOS e SUPOSTAS crônicas escritas, aqui divulgadas a partir da pena de um certo senhor que guerreia CEGAMENTE contra a relatividade…!

    A propósito, onde anda o SUPOSTO combatente da corrupção, mais ainda, SUPOSTO crítico literário, com seus manifestos, repetidos ressentimentos e ódios direcionados a quem não compartilha do seu Udenismo pueril e do seu fascismo LATENTE…?!?

    Um baraço
    FRANSUELDO VIEIRA
    OAB/RN. 7318

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