domingo - 17/03/2013 - 03:31h

A vida é líquida

Por Honório de Medeiros

“A vida é líquida”, diria Zygmunt Balman, aludindo à consistência das relações entre nós e os outros, ou entre nós e as coisas e/ou fenômenos.

Líquida, posto que essa consistência não tem forma definida, assume aquela que o recipiente (o contexto) impõe. Não somos estruturas rígidas que atravessam o tempo imutáveis ou pouco atingidos pelas circunstâncias, somos proteiformes, somos difusos, somos evanescentes.

Vivemos em uma época na qual as gerações mais novas escrevem tudo em uma linha. No máximo algumas poucas linhas. E somente lêem, e são treinadas pela realidade virtual com a qual convivem “full time” exatamente para isso, algumas linhas, umas poucas linhas.

Tal é o ser (e o dever-ser) que essa realidade virtual impõe: tudo é frenético, tudo é descartável, tudo é cambiante, imediato. É a maximização das potencialidades, negativas ou positivas, da nossa espécie sobrevivente e dominante, conforme descrito pela teoria da seleção natural.

O ensino, hoje, está em ruínas por vários motivos, mas desconfio que o modelo que ainda predomina está fadado ao fim, entre outras razões, mais ainda, em decorrência do descompasso com essa realidade que aos poucos se impõe, no qual não há mais espaço para uma educação que se estrutura a partir de livros, com textos pesados, longos e que exigem tempo e estudo profundo, e o tratamento do “pensar” típico dos escolásticos medievais que moldaram as bases do nosso ensino ocidental e cristão.

As gerações mais novas, que herdarão o mundo, ou o que restar dele, e sua forma de apreender e expressar a realidade, estão em processo de descompasso com aquela construída pelos nossos antepassados. Não se trata de estarmos certos e eles errados por não quererem ler livros como “Ulisses”, de Joyce, “Paidéia”, de Jaeger, ou “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust.

São elas, as gerações mais novas, mutações engendradas pelo meme que é a realidade virtual: caracterizam-se por viver em ritmo alucinante, pensar freneticamente, falar acelerado, em contraposição ao viver, pensar e falar arcaico, que vai sendo deixado para trás.

O livro de papel sobreviverá, claro, como sobreviveu o ritual do chá no Japão moderno que a restauração Meiji instaurou, e atirar com arco-e-flecha, algo excêntrico, típico de verdadeiros “outsiders”, a partir do qual hão de se criar seitas e seus inevitáveis rituais iniciáticos.

Livros em ambientes virtuais existirão cada vez mais, óbvio. Mas nunca serão consumidos como o foram os livros de papel após Gutemberg. Assim como os monges que salvaram a civilização como nós a conhecemos, na Alta Idade Média, copiando os textos antigos e os deixando para a posteridade, será em ambiente monacal que os iniciados lerão obras como as que foram citadas acima.

O velho mundo está morrendo, viva o novo mundo, do qual serei espectador privilegiado, posto que, quando menino, fui apresentado ao milagre da televisão já completamente cativado pelo livro de papel, e, agora, cinquentão, me maravilho com as infinitas possibilidades de uma realidade sequer possível de ser imaginada antes, domínio e prisão dos que, hoje, ainda são apenas adolescentes.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. janio rego diz:

    a vida é digital.

  2. José Lima Dias Júnior diz:

    Prezado Honório,

    Parabenizo pelo excelente artigo!

    É lamentável que parte dos jovens brasileiros estão preso a futilidade e a insignificância. Entretanto, as profundas transformações nos hábitos e costumes familiar são alterados pela massificante programação da mídia brasileira. Isso revela o caráter permanente da própria degeneração dos valores humanos. É necessário que essa juventude perceba que o tempo que se investe na leitura de bons livros se transforma em maturidade intelectual.

    As reflexões sobre o homem, a sociedade, a história devem ser feitas mediante o uso da ciência e, não caucada nas análises da “opiniões”, onde não há nenhuma sistematização do saber. A ciência vem sendo, ao longo do tempo, substituída por maus professores com a colaboração de maus estudantes, pela opinião comum que permeiam o debate em sala de aula deformando conceitos e teorias. Sem a criticidade das representações sociais vigentes, da banalidade do cotidiano, seja ela, produzida pela tv, rádios, jornais e revistas mergulhamos na ideologia do senso comum.

    Se “o velho mundo está morrendo”, cabe aos jovens a construção de um novo mundo sem esquecer que precisa aprender e aprender para sobreviver. Segundo Paulo Freire, é essencial reiventar uma práxis pedagógica, política e epistemológica profundamente democrática, onde as relações entre professor, aluno e consciência critica seja fundamentalmente possível. Que essa comunicação dialógica seja horizontal no sentido esses sujeito sociais (aluno/professor) compartilhem a experiência de transformarem o mundo e se autotransformarem.

    José Lima Dias Júnior, professor na rede muncipal de ensino/Mossoró-UN

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