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domingo - 10/09/2023 - 09:38h

Antes de partir

Por Carlos Santos

Ilustração de Bastian Weltjen/Getty Images

Ilustração de Bastian Weltjen/Getty Images

Nesses tempos em que tudo é muito fugaz, líquido – como definiu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman -, a morte como fim definitivo do indivíduo, da matéria, não tem a devida paz. Nem ela. Testemunhamos experimentos que buscam a eternidade in vitro. Ou a longevidade máxima através de complexos vitamínicos e exaustão física sob peso de marombas. Todos, todas, todes e toddynhos pensam que viver muito é viver.

Surgiu até a “compostagem humana” nos Estados Unidos, onde o capitalismo ganha sempre, tirando de vivos e mortos o máximo possível. Nesse método de ‘reciclar’ o finado, o cadáver passa por processo químico e de decomposição com produtos naturais, para se transformar em “solo utilizável.” Um adubo, digamos.

A parentada pode levar para casa e espalhá-lo no jardim, onde dividirá o solo gramíneo com o cocô do bichano e aquela frutinha que se esparramou no chão, lá se decompondo. Enfim, o fim nada edificante, coabitando o lugar com o que apodrece e pisoteado todos os dias por quem lhe amava (ou detestava em silêncio).

Vida louca vida, vida breve
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve
Vida louca vida, vida imensa
Ninguém vai nos perdoar
Nosso crime não compensa

(Cazuza em Vida, louca vida)

Essa resistência em partir é muito humana. Contudo, não faz parte do mundo líquido de Bauman, sem dúvidas.

Nem todos pensam e agem assim. Diagnosticado com câncer, o genial jornalista, escritor e cronista Rubem resolveu que não se submeteria à qualquer tipo de tratamento.

Ele optou pela cremação, para que as cinzas do seu corpo fossem dispersas no rio de Cachoeira de Itapemirim-ES, sua terra natal. Tudo em data, local e horário que só um núcleo familiar soubesse e o filho Roberto sacramentasse. Já tinha feito as despedidas em vida.

No livro Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar, de Marco Antônio de Carvalho, publicado em 2007, o autor narra esquisitices que muitos pensavam ser lenda, quanto aos preparativos à viagem sem volta do cronista, em 1990. Braga (olha só a minha intimidade) saiu do Rio de Janeiro para São Paulo, onde tratou dos detalhes da cremação em empresa do ramo, acostumada a torrar gente.

Uma funcionária muito educada quis apenas saber de quem seria o cadáver. “O cadáver sou eu!”

De adeus eu entendo. Por não saber me despedir, não acompanhei meus velhos à última morada. Só depois, dias depois, só eu e eles, pude chorar ao pé da cova e imerso no meu eu, enquanto balbuciava alguma oração que decorei – mal – na infância.

Por achar que doeria muito ver um amigo indo embora aos poucos, resisti em visitá-lo num leito hospitalar – mais consegui, só Deus sabe como. Foi nosso último encontro por aqui. À esposa, sobre minha ausência até então, quase acertou:

– “Carlos não vem. Ele não aguenta me ver assim.”

Previno-o nessas últimas linhas: essa não é uma crônica sobre a morte, embora pareça. Nem é epitáfio laudatório, mesmo que assim possa ser interpretado. Ao contrário de Brás Cubas, um defunto autor que só a cabeça criativa de Machado de Assis daria vida, cá estou para contar – do meu jeito – sobre o que é viver… antes de partir.

“Não tenho tempo a perder (…),” diria o poeta piauiense Torquato Neto, que resolveu ir mais cedo, sem nunca nos deixar.

Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Marcos Pinto diz:

    E lá me vem ao bestunto a. Célebre poesia do velho Crispiniano. Neto :
    Sair sem partir
    Ficar quando parte
    A vida reparte
    Teu peito em metades.

  2. A de Andrade diz:

    ?

  3. François Silvestre diz:

    A tarde cai sobre o dia/ como se fosse o seu fim./ Não. A tarde não cai sobre o dia,/ ela cai sobre mim.

  4. barbosa Gomes diz:

    Que belezura de texto…conciso, reto, encovado e elegante.
    Um primor de de linhas.

  5. João Paulo Gurgel de Medeiros diz:

    Que belo texto! É bem assim mesmo. A propósito da atividade física, muitos fazem dela isto: uma fuga. O “overtraining” é maléfico ao coração. Sim, porque até o exercício para o corpo precisa de equilíbrio. Por isto, prefiro viver assim: sobre o esforço físico regular (e não excessivo), sob a fé (a perenidade) e imerso nas letras (estas, as da eternidade). Mais uma vez: texto bem escrito e muito sensível. Parabéns!

  6. Cláudia Oliveira diz:

    No seu leito de morte foi o único perdido que me fez qu e queria te ver! ele sabia que vc seria a única pessoa a quem ele faria esse pedido, e vc sabe do que estou falando.
    Toinho tinha uma verdadeira admiração por esse amigo irmão, de tantos conhecidos, ele relatava o que vc significa pra ele, obgda por tudo.

  7. Marcos Ferreira diz:

    Eita, meu Editor!
    Você agora, como poucas vezes faz, deixou vir à tona o cronista de grande qualidade literária que é você. Parabéns pelo texto primoroso e pela mensagem superior. Aguardo você e nossos amigos Rocha Neto e Odemirton Filho para um cafezinho e o bate-papo sempre saboroso.
    Forte abraço.

  8. Odemirton Filho diz:

    O nosso editor é um cronista de mão cheia. Um texto reflexivo. Profundo. Emocionante.
    Inspira-me.

  9. Alaine diz:

    Belo texto. Zygmunt Bauman, de uma sociedade líquida, lido muito por Paulo Maia , seu grande amigo que o prezava por essa boa e longa amizade. Postagem linda e profunda.

  10. Katharina Gurgel diz:

    Que maravilha de texto. Que mistura intensa de palavras e sentimentos. Adoro isso. Parabéns amigo, crônica da melhor qualidade! 👏👏👏

  11. Rocha Neto diz:

    O terceiro paragrafo da sua peça em tela, mostra o quão inútil é o lixo da matéria oriunda dos nossos restos mortais, os quais até hoje os estudiosos do assunto não a certificaram para mesma servir como adubo para nenhuma planta. Talvez contribua para ajudar a solidificar o cocô do bichano ou apodrecer com mais rapidez a fruta que caiu no solo devido ao seu estagio de maturação.
    É, amigo Carlão… que triste fim real nossa matéria corporal tem!
    Um abraçaço, e parabéns pela crônica.

  12. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Sim, minha despedida poderá vir, claro, a qualquer momento. Confesso que em alguns dias no meu pós operatório da coluna, clamei por ela. Escondida, para que ninguém de minha família ouvisse, desejei-a. Mesmo assim, vi- me monstruosa por conta do desvelo e carinho dos que me cercam. Alguém cercada por pessoas amadas e gentis precisa ter cuidado em manifestações como essa. Ainda tenho um caminho e metas a conquistar. Artur e Alice em universidades, por exemplo. Você os conhece, Carlos. E, não almejo pouco. Faculdades públicas. Os dois menores, de cinco anos, não poderei acompanhar os estudos pois moram longe. Os mais velhos, acompanho par e passo. Voltando ao assunto mestre, despedidas, seria muito injusta em querer que a minha permanência entre os vivos fosse abortada por não conseguir suportar as dores físicas. As dos três primeiros meses foram insuportáveis. Quando lembro delas, sobe um arrepio pelo meu corpo. Não temo a morte. Entendo-a como mais um passo que darei ao desconhecido, independentemente da minha educação religiosa. Esse desconhecido pode ser nada mais do que um sono profundo. Não tenho nenhum temor. Penso que aprendi à forceps a lidar com ele. Dos seis filhos, estive ao lado de meus pais em seus últimos suspiros. Serra Grande partiu em meus braços e, quando o levaram para o hospital, ao passar por mim, senti o sopro de um vento muito forte. Sensação do mundo espiritual que aliviou a minha dor porque entendi que aquela era a hora dele. Já mãezinha beijei-a na madrugada do dia no qual ela não acordaria. Fui a última filha a vê-la viva. Conjecturei ser uma espécie de anjo da morte por ser a escolhida, entre seis, a estar presente nas horas finais. Isso até me entristeceu porque cederia meu lugar a qualquer dos meus irmãos, com prazer. A vida não conseguiu me preparar para perder meu sobrinho, Jerônimo Dix-Huit Rosado Ventura. Essa perda gerou uma revolta, sentimento que trabalhei para superar e entender que sou muito fraca. Carlos, ainda perdi Lena. Não esqueço o contentamento dela em ter lhe conhecido. Um jornalista tão importante…”como ele fala bonito”…Ficou encantada. Em Mossoró, perdi a minha amiga-irmã Ana Araújo. Partilhávamos alegrias e tristezas. A melhor das amigas!
    Para finalizar, vou dar um toque enfeitado nesse meu texto triste. Conheço quem está de partida pelos pés. Nunca errei. Portanto, se não quiserem saber seus momentos, caso eu esteja por perto, cubram seus pés.

  13. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Carlos, pensando em meus momentos, esqueci de elogiar o seu belo texto. No meu, você faz parte. Saudações tricolores e saudades.

  14. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Vida e morte, ciclo infindo e inevitável, ambas tão importantes quanto. Muito embora esta ultima seja tão desconhecida quanto ignorada pelos que , sob o latente signo das religiões especialmente envoltas em mitologias, tentam dar outro significado e significante às suas vãs e passageiras existências.

  15. Marcos Araujo diz:

    Parabéns pelo texto, grande Carlos! Quando você escreve, todos nós que fazemos “arremedos” literários, nos envergonhamos…
    Forte abraço!

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