Num domingo de ordinária preguiça e doméstica solidão, encorajei-me a arrumar meus livros, ainda desorganizados por causa de minha mudança recente para a Cidade da Mangueiras (Pará). No fundo, senti que esse lampejo de coragem era mais a certeza de encontrar velhos amigos e velhas histórias a desejo de ver os livros bem empilhados e bem separados.
Estava certo.
Pus-me ao trabalho. Entre uma e outra pilha de livros que tentava organizar, caiu-me à mão A Montanha Mágica.
Contemplei-o por alguns segundos, mas sequer cogitei ler um parágrafo naquele instante, em especial pela foto grave e austera de Thomaz Mann, que ilustra a capa – aparentemente mais cançado e mais solitário do que eu. Mudei de estante e, com uma certa dificudade, levantei as Fábulas de La Fontaine (de 1875, edição portuguesa, em grande formato, com ilustrações de Gustave Doré, um primor!), assoprei a poeira que hereticamente o encobria, e, de imediato, lembrei-me de havê-lo comprado em São Luis (MA), em um sebo no centro histórico, que funcionava em um grande casarão colonial.
Lembrei que foi um dia aprazível, compratilhado com um grande amigo, hoje distante, em que passeamos, sorrimos, falamos da vida, do futuro, tiramos fotos…
Mais a frente, deparei-me com Ulisses, de James Joyce (edição razoável, capa dura, comprado em sebo, com alguns rabiscos de uma criança que soube dar melhor utilidade à obra do que eu, a quem só serviu de enfeite até hoje), estava inconvenientemente entre os livros poesia, e me perguntei sobre a necessidade de ler uma obra tão copiosa e truncada para, sabendo que não haverá muito o que entender, poder dizer que li – e até, talvéz, poder blefar, dizendo que entendi. Senti um constrangimento morno, que assim passou.
Sequer abri a contracapa. Coloquei-o em seu devido lugar. Inusitadamente, em uma estante perto da janela, encontrei a Odisséia (publicado pela Ediouro, edição simplezinha, mas com texto integral e com tradução – duvidosa – em prosa), presente que minha mãe trouxera de Fortaleza (CE).
Foi o primeiro clássico que li, aos 14 anos (a data e a rubrica apostas na contracapa autorizam a precisão do ano mais que a minha memória), pelo qual me apaixonei, mesmo sem saber, naquele tempo, o que significava “deleite”, “jocosa”, “entrementes”… e por aí vão-se os grifos da mão juvenil que o tempo já empresa algumas rugas. Meio providencial que meu gosto pela leitura tenha se inciado formalmente, se assim posso dizer, com essa obra, que me levaria a tantas e tantas outras odisséias… “deleitosas”, “jocosas”…
Após mais uma tentativa de por ordem nos caos, fui me deitar, com a sensação de que os livros nos servem, também, nos domingos de ócio costumeiro e doméstica solidão, mesmo sem precisar ler uma página sequer, a relembrar amigos distantes, a revisitar lugares agradáveis, a nos questionar sobre nós mesmos e a viajar, a empreender todas as odisséias impossíveis a um quarto fechado, num dia de domingo.
Belém, 5 de abril de 2009.
Carlos Henrique Harper Cox é defensor público do Estado do Pará
Parabéns pelo texto…
Abraços
David Leite
david.leite@uol.com.br