Por Marcos Ferreira
Tudo está na mesa, tudo às claras, meu irmão. Só não vê quem não quer. Todas as cartas estão na mesa da desigualdade social. A vida está posta e a gente sabe que a vida não é moleza, não. Nesse jogo da existência, do sobreviver cotidianamente, o pão não é um artigo fácil. São muitas voltas no corpo, muito jogo de cintura. Pergunte aos desvalidos deste país se estou mentindo. Não estou.
Ah, como somos felizes! Ainda assim nem sempre somos gratos; há vezes em que esquecemos disso. É até corriqueiro. Somos avarentos, somíticos. Porque, como se diz, a medida do ter nunca enche, sempre queremos algo mais. Nunca (salvo exceções) estamos satisfeitos com o que já temos. No final das contas, meu irmão, para a maior parte das pessoas que constituem esta pátria por demais injusta, a vida é um osso. É muito sofrer, muito suor, lágrimas, choro, ranger de dentes.
Quantos não estão por aí tiritando de frio, desabrigados, acossados pela fome, perseguidos pelo desemprego, sem onde cair mortos? Já eu, graças a Deus, estou muito bem, obrigado. Como se os outros, os miseráveis, não fossem merecedores da mão protetora desse mesmo Deus que ora me propicia bem-estar e amparo. Não compreendo esse Deus, porém todos gritam que Deus sabe o que faz.
Penso agora nessa desinteligência, nesse desígnio que deixa uma gigantesca parcela da população ao deus-dará. No frigir dos ovos, pois, parece que Deus não vê isso. É tão triste, meu irmão. Olho à minha volta e aqui me encontro e me sinto privilegiado, agraciado com um teto, comida, meus remédios e um pouco de dinheiro para acudir as despesas, pagar consultas médicas. Minha geladeira, meu irmão, é velha, mas representa um luxo na minha também modesta opinião.
Além de comida, água, luz, uma rede de dormir e alguns poucos móveis, usufruo de segurança. Considerando a penúria, a invisibilidade escancarada nos semáforos, os cartazes com pedidos de socorro, os brasileiros desamparados que suplicam pela caridade de pessoas que podem ajudar e não ajudam, afirmo que atualmente minha vida é um paraíso. Conto até com um serviço de internet.
Desapareceu a casa de taipa, de pau a pique. A chuva pode vir com vontade, pois aquele teto estiolado agora é outro que não me causa transtornos. O fogão a lenha escafedeu-se. Sumiram a tisna das paredes da cozinha e o rendilhado de picumãs. O café da manhã já não é diáfano com o pão da véspera, que a gente comprava pela metade do preço em uma padaria da Avenida Alberto Maranhão.
A farinha com açúcar no almoço ou jantar deu lugar a coisas melhores. Após longos anos, Deus disse: “Vão embora da vida dessa criatura, senhora Fome e senhora Miséria!” Então elas obedeceram e picaram a mula.
Deus precisa repetir essas mesmas palavras em todos os lares onde a Miséria e a Fome continuam como inquilinas, meu irmão. Tenho certeza de que não sou o único merecedor da intercessão do Altíssimo. É inevitável, quando pego no prato de comida e na colher, esquecer desses que agora mendigam nos semáforos, lançando contra os abastados as flechas dos seus olhares famintos, carentes.
Sou um sobrevivente, meu irmão. E hoje, após aqueles tempos bicudos, estou certo de que o correto é a gente contar nossa história com veracidade. Deus me disse ainda que eu não fizesse muitos planos, que esse negócio de diploma de nível superior não era (até agora não) para mim. Em troca, para meu ressarcimento, o Todo-Poderoso me deu o consolo de escrever por homologação divina. Isto não dá camisa a ninguém, como se costuma dizer, mas me abriu algumas portas.
Josué de Castro, em seu clássico Geografia da Fome, diz: “Metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come”. Quem dera que fosse só a metade sem comida. O número é muito maior, infelizmente. Josué de Castro (o qual o deputado federal Guilherme Boulos parafraseou) também disse que a fome no Brasil não é um problema social, e um projeto político.
Entendo dessas coisas, meu irmão. Tenho conhecimento de causa nesses assuntos de vazio estomacal. No correr daqueles anos de 1970 e 1980, sobretudo, éramos uma prole de onze filhos para um sapateiro e uma dona de casa analfabeta colocar comida na barriga. Ah, meu irmão! Não diga que é coitadismo ou pobrismo que agora salta das pontas dos dedos deste tecelão de palavras. Não diga.
Imagine isso: um menininho cabeçudo e com cara de choro, extraído do útero da miséria, agora exposto num retrato em preto e branco carcomido pelo tempo. Quem diria que ele (um zero à esquerda no tocante aos algarismos) se tornaria um homem de letras. Não é muita coisa, eu sei, contudo não deixa de ser uma simbólica façanha. Porque você, meu irmão, ficou comigo até o final destas linhas.
Imagino que isso seja um indicativo de que este autorretrato, feito de reminiscências que não se apagam na minha cabeça, tocou o seu coração e enterneceu a sua alma. Dito isto, meu irmão, é sempre possível a gente tirar um tantinho do quanto nós temos e oferecer, ao menos, um pão da véspera àquelas pessoas que talvez só tenham em suas casas nada além de café ralo e farinha com açúcar.
Marcos Ferreira é escritor
Olá, Marcos!
Boa tarde!
Adorei a sua foto quando criança! Suas feições permanecem fiéis.
Então Marcos, não que eu seja uma conformista, aceitando tudo o que vem pela frente, mas, procuro tirar proveito de todas as minhas vivências. Sei que sou um catado das experiências vividas- boas ou ruins. Daí a minha eterna gratidão ao Deus do meu coração e compreensão. Já passei também por vários aperreios, e não foram poucos…
Sei também da tua gratidão ao altíssimo, por isso nos leva a reflexão. Na medida do nosso possível, vamos vivendo e aliviando o fardo daqueles que ainda pelejam mais do que nós. Abraços saudosos, meu amigo! Obrigada por existir no meu caminho.
Amiga Vanda,
Boa tarde.
Grato por seu comentário. Também me deixam feliz o seu carinho de sempre e sua opinião sobre meu retrratinho de menino assustado. Não tenho outros registros fotográficos de minha infância porque naquele tempo isso era uma coisa apenas para quem tinha dinheiro e o que comer todo dia. Não era o caso da minha família, sendo eu o mais velhos dos onze filhos. Uma ótima semana para você e Jacinto, saúde e paz. Renovo o convite de vocês virem aqui em casa quando puderem. Ao menos um cafezinho poderei lhes oferecer.
Abraços.
Grande texto, grande vida, parabéns. O economista Ladislau dowbor, figura ímpar, em trabalhos para o desenvolvimento social, indica os seguintes dados: a renda “per capta” mundial é de R$ 20.000,00 por mês, para famílias de 4 pessoas. No Brasil é de R$ 16:000,00. Produzimos 13 kilos de grãos por dia para cada pessoa. Assim vc está correto, a miséria é um projeto que deu certo. Frei Betto comenta a tradução da biblia, quando se diz que o paraíso está em cima, grande erro interpretativo, a tradução literal seria dizer, o paraíso está a frente, ou seja, se nos organizarmos com justiça e generosidade, todos viverão bem aqui e agora. Grande abraço.
Amigo Valdemar Siqueira,
Sou seu admirador desde sempre. Seu coração fraterno e sua consciência de sociedade igualitária me encantam. Desejo a você e a Bete uma ótima semana, saúde e paz.
Abraços.
Vivemos num mundo desigual; uns com muito, outros sobrevivendo e outros sem nada! Pessoas morrem de fome e de frio. Difícil acreditar que isso ocorra; mas ocorre! O problema tem dimensões incalculáveis! É sem solução? Acredito que haja solução! Mas precisaria de interesse e boa vontade das pessoas. Então, ainda precisa de muita evolução para que consigamos um mundo mais linear. Mas foquemos na crônica: você é uma pessoa que superou barreiras e alcançou um nível alto em comparação ao seu entorno. Precisa tocar a vida; ajudar no que puder, o necessitado e não carregar a culpa. Procurar ser feliz! A sua história de superação mostra o quanto lutou e continua lutando. Use o seu dom! Somos felizes por nos agraciar com a sua criatividade. Gratidão!
Querida Bernadete,
Boa tarde.
Mais uma vez, minha amiga, você me deixa feliz com sua leitura e opinião sobre estes meus escritos. Mesmo quando abordo questões tão pessoais. Desejo uma ótima semana para você, muita saúde e paz.
Beijos.
Eita que esse é o tipo de texto lido de carreira e relido. Meu caro escritor você descreve muito bem a sua, a minha e a história de muitos brasileiros. Como você, também sou grata e tenho muita sorte de viver bem. Porém o problema são nossos irmãos desvalidos…
Amiga escritora Fátima Feitosa,
Boa tarde.
Fico feliz queu tenha gostado da minha crônica. Sei que a maior parte dela retrata questões muito pessoais, porém não deixa de ser a realidade de inúmeros brasileiros. Desejo a você e família uma semana com muita saúde e paz.
Abraços.
Meu Caro Marcos Ferreira, comungo integralmente com sua inconformidade e irresignação, conquanto suas razões do
autorretrato, autorretrato esse que certa forma também tem muitas semelhanças com o meu passado , presente e futuro de um pais, de um povo e de uma nação que via de regra, infelizmente não tem memória alguma.
Aqui a indignidade da vida e a apologia da morte, infelizmente continua em pauta, tanto que a não menos de um ano e poucos meses nos livramos por pouco da reeleição de um marginal, genocida e delinquente que dizia aos brados aos quatro cantos do universo Tupiniquim que sua especialidade era matar.
Ainda assim, quase 60 milhões de estúpidos, alienados, escrotos, entreguistas e ignorantes, infelizmente, não obstante a criminosa administração da Pandemia da Covid – 19, a distribuição de armas a esmo, o deprimente espetáculo diário promovido pelo Genocida e sua gangue de delinquentes em todas as áreas da administração pública em nosso país, repise, ainda assim, , entenderam que votar no marginal fosse solução para todos os nosso problema passados, presentes e futuros.
Não a toa um Josué de Castro e tantos outros, foram perseguidos e silenciados ao longo da nossa triste, silenciosa e trágica história de abissal desigualdade social.
Aqui no país do futuro, vida e morte severina do genial João Cabral de melo Neto, continua não esquecido , bem como ignorado pela maioria ignara, tanto que, nem ao menos sabe da existência do autor e muito menos da sua obra.
Aqui no país do futuro, igualmente não se conhece e muito menos, de fato, lemos e sabemos da existência da obra de Graciliano Ramos e suas vidas secas e outros autores, inclusive negros, negados de forma velada e reiterada pelo Status Quo.
O grande escritor, antropólogo, indigenista e Senador da república Darcy Ribeiro, autor de O POVO BRASILEIRO, dentre suas muitas e emblemáticas frases, sempre repetia:
” O Brasil, ultimo país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso. ”
Por último, lhes afirmo de maneira convicta, toda essa gama de problema fazem parte da nossa história ao longo dos séculos. Todavia, à meu um divisor de águas em seu aprofundamento e demarcação abissal, passou ocorrer deveras após o golpe militar/civil de 1964.
Quando então, sob a fantasmagoria do combate ao comunismo e a corrupção, todas as coordenadas de aprofundamento das desigualdade sociais e do imobilismo social se fizeram e se prestaram , infelizmente sob o signo das torturas, prisões, exílios, mortes e banimentos políticos, efetivas à par do autoritarismo e do silenciamento de lideranças politicas, civis, calando inclusive, renomados cientistas, professores e intelectuais.
Prezado Fransueldo Vieira de Araújo,
Seu posicionamento diante das desigualdades sociais e seu senso humanitário têm tudo a ver com minha visão de sociedade e de mundo. Grato, mais uma vez, por sua leitura e participação neste espaço plural e democrático do Blog Carlos Santos. Desejo a você uma semana com muita saúde, paz e realizações.
Abraços.