domingo - 25/05/2025 - 06:30h

Brincadeira sem graça

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa em estilo impressionista obtida com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa em estilo impressionista obtida com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Sendo um tanto purista, imagino que a temática que abordarei a seguir (em razão de sua futilidade e puro modismo) não merece uma crônica. Considero que é uma matéria muito mais para a alçada e tratamento da imprensa. Tal sucesso, a meu ver, não faz jus ao arcabouço da literatura, ao texto pretensamente concebido com uma qualidade artística, literária. Besteira! De um modo geral, admito, a crônica se ocupa de histórias do cotidiano, por mais absurdas e ridículas que sejam. Dominarei meu estômago e escreverei acerca desse que é o grande bate-boca da vez.

Pouco antenado, alheio às discussões da hora e da moda, eu nem estava por dentro de nada. Não fazia a menor ideia do que temos em evidência na mídia. Hoje, entretanto, fui colocado a par dos últimos acontecimentos, do que existe de mais novo borbulhando nas redes sociais e noticiários. Estou de queixo caído. Tudo isso tem a ver, agora sem mais rodeios ou nariz de cera, com o avassalador despautério que toma conta desta nação.

Refiro-me, por fim, aos benfeitos, badaladíssimos e caros bonecos de silicone, réplicas hiper-realistas de crianças pequeninas. Eis a grande controvérsia que estão debatendo ultimamente e da qual eu não estava ciente. Só fiquei a par do quiproquó após um amigo me questionar a respeito dessa excentricidade.

Lógico que esses bonecos e bonecas tinham que ter um nome inglês, ou americanalhado. O brasileiro, salvo exceções, é um vira-lata quando está em jogo o próprio idioma. A americanalhação da nossa língua é do tamanho deste país. Basta darmos uma olhadinha nas denominações de centros comerciais, casas de pasto, condomínios, motéis e, entre diversos outros, até os prostíbulos são internacionalizados. Assim, pois, os brinquedos receberam o batismo de bebês reborn.

No meu ponto de vista, escolheram um péssimo nome. Em inglês, acaso alguém não saiba, reborn equivale, a depender do contexto, a “renascido” ou “renascimento”. Não vejo muita relação desse verbete com a questão da extrema semelhança, o ambicioso intuito de fabricar imitações de criancinhas tendo como principal componente o silicone. Se a coisa não pode ter um nome brasileiro, se a aplicação de uma palavra em inglês for inegociável, então suponho que, em vez da já consagrada denominação reborn, poderíamos empregar a termo inglês “humanoid” (humanoide). Esta representaria melhor os borrachudos. É o que me parece menos inadequado, menos desagradável no tocante ao nosso bom e massacrado português. Mas não quero me ater neste momento a questões de batismo. O buraco (profundo) é mais embaixo.

Pessoas já crescidinhas, sobretudo mulheres, agora andam para todo lugar com o seu ou a sua bebê reborn a tiracolo. Existem exemplares dessas coisas dos dois sexos. Tratados como criaturas vivas por seus proprietários, alguns indivíduos chegam ao cúmulo da caradura (talvez insanidade) de levar os siliconados para os hospitais, em especial a unidades de saúde do SUS, a fim de receberem consulta médica. Isso é de lascar, como diria o pesquisador Marcos Pinto. Claro que não estou aqui condenando os “papais” pelo simples fato de alguém, dentro das suas condições financeiras, ter um boneco ou boneca desse tipo. Minha crítica é quanto ao exagero.

Calculem só: durante seu expediente em um posto de saúde público, um profissional de medicina se deparar com uma dona (ou o dono) de um reborn querendo que o nenenzinho de borracha seja submetido a uma avaliação médica. Ocorrências dessa ordem têm se repetido, gerando muita confusão e dividindo opiniões. Analisando melhor, pode ser até um problema para a psiquiatria.

Longe de mim querer aqui apedrejar essas mulheres, algumas em comunhão com seus maridos ou esposas, que investem uma grana considerável nesse delírio de maternidade e paternidade. A depender da semelhança, realismo do produto, da grife e do fabricante, um Chucky desses pode custar uns treze ou quinze mil reais. Aí eu penso naquelas criancinhas de colo (as de carne, osso e espírito, devo ressaltar) que existem em toda parte deste país injusto, no âmago de famílias pobres, muitas das quais desesperançadas, sem assistência, privadas do essencial, do básico.

Penso ainda nas que se encontram nos orfanatos ou vivendo nas ruas com seus genitores. Uma população que não sabe, que nunca pegou, sequer viu tanto dinheiro. Meu pensamento se detém sobre os desvalidos, os pequenos oriundos das entranhas da exclusão, do útero da fome, punidos por sua procedência periférica. Sei direitinho o que é isso. Não falo por conjectura, teoria ou senso de humanidade.

O desprezo e a punição dobram de tamanho quando se trata dos inocentes de pele negra. Sim. Os pretos, as crianças pretas são as mais desprezadas, rejeitadas, mais covardemente repelidas, como se porventura a sua cútis da cor da noite representasse algo ofensivo, um insulto à sociedade dos brancos bem-nascidos, economicamente privilegiados.

Em minha pesquisa, a propósito, vi poucos bebês sintéticos pretos. É claro que existem, mas é evidente que são fabricados em número bem menor. Algo como a canção “Pra não dizer que não falei das flores”. A sociedade do poder monetário, dona das melhores oportunidades, detentora de prestígio e consideração, embora signifique uma quantidade inferior nesta pátria dita de chuteiras, autoproclamada país da bola, do futebol, do carnaval, essa sociedade precisa progredir sensivelmente para entender que os marginalizados são seres humanos. Precisa evoluir um bocado para não excluir e julgar pessoas com base em sua cor, opção sexual e religiosa.

Se ora eu me debruço sobre essa questão polêmica, se critico essa brincadeira estúpida, vão se queixar junto ao senhor Lázaro Amaro dos Santos, advogado criminalista, músico e compositor. Foi ele quem trouxe ao meu conhecimento tal celeuma. Sugeriu que eu abordasse esse tema espinhoso. Da próxima vez, tenham fé, posso não colocar o dedo direto na ferida, esquecer por um instante o socialismo, trazer à tona um assunto ameno, uma croniqueta mais leve e bem-comportada.

O Brasil, assim como muitos neste planeta desajustado, é também conhecido por seu desequilíbrio na distribuição de renda. Quero citar o escritor, médico, cientista social, grande humanista e expoente no combate à fome, o saudoso professor e político Josué de Castro. Em uma de suas declarações mais difundidas, ele afirmou o seguinte: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come.” Está correto. Josué de Castro continua atualíssimo.

Enquanto isso, como sabemos, alguns investem uma grana alta em brinquedos reborn. São figuras abastadas, que estão de barriga cheia. Não querem saber da miséria dos seus semelhantes. Boa parte é de mulheres que decidiram voltar a brincar de boneca depois de adultas. Uma brincadeira sem graça.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Julio Rosado diz:

    Caro amigo Marcos Ferreira,
    Seu texto dessa semana o traz de volta à crônica sobre temas atuais de nossa sociedade, já que na semana passada você supriu a ausência dos instigantes contos em forma de Depoimentos captados pela fictícia escrivã de Tugúrio, escritos pelo Professor Ayala Gurgal. E botou ‘pra torar’ como se diz na rua. Ao invés de um ‘Depoimento’, fez de uma só vez, quatro B.O.s. Confesso que até me assustei com o conteúdo.
    Todavia, vamos à leitura de hoje. Acredito que o ser humano se supera cada vez mais. A questão é que isso ocorre tanto na genialidade, quanto na idiotia. Seu texto dessa semana o traz de volta á crônica de nossa realidade, com sua verve e criticidade peculiares. Quero pontuar que considero os, agora, famosos bonecos de silicone conhecidos como bebê reborrn como possouidores de funções que vão além do lúdico brinquedo infantil hiper realista. De fato, para algumas pessoas com necessidades de apoio emocional, estes bonecos podem ajudar a superar situações de estresse do dia a dia, suprir carências, ajudar a superar traumas, reavivar memórias, estimular a criar vínculos. O que, diante do bom senso, pode se igualar a quem precisa de um pet para relaxar durante viagens de avião, ou quem tem alguma fobia precisa de um amuleto para distrair a mente. O problema me parece ser um desvio de finalidade. Como você diz no texto parece estar havendo uma necessidade de chamar atenção e motivar, inclusive, monetização com base na exposição midiática.
    É tanto dinheiro envolvido… e tanta ‘criança de carne, osso e espírito’, como você bem nos lembra, se esvaindo em lágrimas pela fome, pelo abandono e pela falta de atenção.
    Creio, portanto, que a diferença do que poderia ser remédio para se tornar veneno, esta na dosagem.
    Eu, contudo, devo dizer que, por enquanto, como um velho solitário e que já não se comunica, nem interage, bem com as pessoas, vou ficar na espera. Quem sabe, quando lançarem uma com 1,65cm, peso de 72 kg, tez macia e aspecto adulto (preferencialmente, com feições balzaquianas), eu não me anime a adquirir uma boneca dessas para poder declamar-lhe meus versos, quase sussurrando em seus ouvidos, e ver sua expressão de admiração e espanto impactada pela minha prosa realista. E, depois, guardá-la em sua caixa de papelão em cima do guarda roupas.

  2. Marcos Pinto. diz:

    Obrigadooo pelo referencial estimadíssimo Xará, Soy leitor contumaz e empedernido das suas instigantes e contextuais crônicas. Chego ao ponto de me contextualizar com alguns protagonistas descritos por vosmincê. Sou um misto de poeta pesquusador e beberrão. As suas incursões na prosa e no verso desenham aspectos e modelam- tipos, que se combinam para o efeito romanesco entrecortado de um sopro novo. Seus brilhamtes textos reencarnam o intrépido e lendário Padre Lopes Gama, infalível em suas descriçoes personalísticas , que lhe rendeu o titulo de “Padre Carapuceiro”, cujos artigos foram compilados em célebre Obra intitulada ” O CARAPUCEIRO”, que lhe sugiro para acurada leitura. Forte abraço. Feliz e profícua semana. DEUS nos ilumine, proteja e guie.

  3. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Caro Marcos, não só uma brincadeira sem graça, mais ainda algo ridículo, grotesco e estupido, especialmente QUANDO olhamos a profunda miseria em que MILHÕES vivem, ENQUANTO um bando de desocupados, alienados e abastados ostentam através de um modismo tão fútil quanto inútil.

    Tens absoluta razão quando assevera da nossa profunda alienação de colonizados,. inclusive quanto aos termos anglo saxônicos que muitos reverberam tal e qual papagaios ensinados.

    Nesse CONTEXTO, as redes sociais, de onde proliferam milhões de analistas, especialistas e jornalistas, infelizmente da pior espécie, dão imenso e exponencial suporte a essa gente cínica e estúpida.

    Aliás, os americanos norte em sua arrogância, de Potência Militar e seu instinto predador e espoliador , perdem grandes oportunidades de explorarem maias ainda a grande massa de alienados Tupiniquins.

    Pois, exatamente na razão direta direta profunda alienação e dependência de ordem sócio – cultural,.poderiam perfeitamente, fazer das suas próprias fezes,.uma grande fonte de divisas.arraves da exportação de enlatados.

    Para tanto, não precisaria, por EXEMPLO , investir na indústria pesqueira, bastava enlatar sua próprias , colocar um bela embalagem e investir em massiva propaganda.

    Não tenhas dúvidas, milhões de brasileiros comprariam como a moda finess de novos e nutritivos alimentos.

    O sucesso das Herbalifes da vida, não me deixa mentir…!!!

  4. Bernadete Lino diz:

    Está uma moda assustadora: já teve caso de mulher ir pra fila preferencial por estar com o “filhinho”. Acho que é carência ou falta do que fazer. Falta de senso crítico. Tenho uma amiga que me ofereceu um bebê desses há muitos anos. Na época a procura era pequena e ela conseguia bonecos a partir de R$800,00. Hoje virou uma febre virulenta. Não tem graça nenhuma. Concordo com você. Ocupem-se com coisas úteis. Vão procurar um voluntariado! Acho ridículo e fora de propósito. É a minha opinião!

  5. François silvestre diz:

    Perfeito. Quando se achava que algumas companhias de animais supriam a solidão, agora vem essa “coisa”. Sei não…

  6. Rocha Neto diz:

    Texto perfeito, e esse negócio de usar bonecas pra suprir deficiências de presenças humanas, é coisa de gente que tem déficit de massa encefálica, acho até que o negócio estar ficando além da conta! Se eu fosse médico, se chegasse um desprovido (a) de juízo querendo consulta para bonecas, minha atitude como médico seria a de encaminhar para uma clínica psiquiátrica o cuidador(a) do objeto.

  7. FRANCISCO OITAVO PINHEIRO FERNANDES diz:

    A brincadeira pode até parecer sem graça, mas não é. O assunto é mais grave do que aparenta e revela sintomas de uma sociedade doente. Como costumo usar 2 gotas de um colírio alucinógeno que me protege do mundo real, vou precisar aumentar a dosagem. As que tenho usado são insuficientes para lidar com tamanha bobagem.
    .
    O ser humano que tem telencéfalo desenvolvido e polegar opositor, e que, além disso, detém informações como nunca se viu, de repente, não mais que de repente, mais bestas ficam.
    .
    Para não ficar demódé, vou comprar meu bebê reborn, em 12 suaves prestações mensais que é para não comprometer o meu orçamento.
    .
    Chico Oitavo.

  8. Airton Cilon diz:

    Não vejo problema em colecionar bonecas. O problema dessa modinha de boneca reborn é a alienação. Isso tá virando um caso psicológico. Estamos vivendo tempos estranhos. Abraço caro poeta Marcos Ferreira

Deixe uma resposta para François silvestre Cancelar resposta

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.