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domingo - 14/05/2023 - 07:22h

Cartas do reformatório

Por Marcos FerreiraCartas do reformatório

Peço desculpas aos interessados em amenidades, porém hoje quero discorrer sobre algo um tanto travoso, meio amargo. Mas um amargor diferente do amargor da amargura. Não. Isso não tem nada a ver com tristeza. O travo aqui é puramente abstrato, semântico. Nem tudo o quanto é amargo é desagradável.

Muito bem. Vivemos entre as paredes de um vasto e singular reformatório, invisível a outros que estão trancados em si mesmos. Cada um possui as chaves dos seus portões, contudo quase ninguém se atreve a sair, a encarar o mundo externo. Tal instituição metafórica (ou psicológica) é o nosso porto seguro, o que nos mantém centrados, nos trilhos. É isto que impede que descarrilhemos.

Esse lugar metafísico, fugindo à acepção comum, não acolhe apenas pessoas na menoridade. É outro tipo de espaço, também voltado para elementos adultos, de vários níveis e desníveis mentais. Nele somos amiúde reformados e registramos nossas lembranças desde sempre, sujeitos às suas normas e regras.

Consciente ou não, todo indivíduo vai emitindo suas correspondências nos mais recônditos porões de si próprios. Alguns, entretanto, por “razões que a própria razão desconhece”, como no dizer do filósofo Blaise Pascal, conseguem anular sua psique e aí findam não se tornando uma coisa nem outra, descambando para um abismo de esterilidade e solidão. Esses estão condenados ao nada.

Por meio de algumas cartas, exibo meu ponto de vista sobre o assunto proposto lá no início deste monólogo. Não creio que exista uma plateia interessada em saber o que busco com essa história de missivas. Também não estou bem certo do intuito desta narrativa sem objetividade. Todavia julgo correto sabermos o que somos ou desejamos ser. É mais ou menos o ser ou não ser de Shakespeare.

Então escrevam (embora desprovidos de talento) tudo aquilo que representa a essência de vocês. Até porque, segundo José Saramago: “Todos nós somos escritores, só que alguns escrevem e outros não”. Assim compartilho minhas impressões. Sem pressa nenhuma ou desejo de abandonar o reformatório.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Rocha Neto diz:

    Diante aos acontecimentos atuais e comportamentais do mundo em que vivemos, o considero um próprio reformatório, basta lembrarmos que estamos aqui cumprindo uma escala da viagem denominada de vida, basta recordar como chegamos sem armas e bagagens, nus por natureza e revestidos por planos idealizados por Deus, pois só Ele sabe como iremos partir deste reformatório denominado de mundo. É assim que vejo a vida, por isso continuo lutando pra viver.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado amigo Rocha Neto,
      É do jeito que você disse.
      A gente chega sem nada e volta sem nada.
      Sua visão de vida e de mundo é coerente.
      O mundo, como você disse, é um gigantesco reformatório.
      Ótimo domingo para você e um grande abraço.

  2. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Maravilhoso texto.
    Penso que as grades desta prisão estão no dinheiro como processo de representação para o sentido da vida, mas como dizia Oswald de Andrade: A alegria é a prova dos nove, ela também será seu aspecto pragmático de uma vida como autoria.
    Abraços.

    • Marcos Ferreira diz:

      Meu caro Valdemar,
      Que alegria saber que você gostou do texto.
      Você me honra com sua leitura.
      Especialmente por ser um leitor do seu nível.
      Abraço e um ótimo domingo para você.

  3. Francisco Nolasco diz:

    Mesmo que o melhor lugar do mundo não seja aqui e agora, é melhor ficar por aqui debulhando solilóquios verbais à sair por aí sem destino.

    • Marcos Ferreira diz:

      Sim, meu caro poeta Francisco Nolasco.
      É melhor mesmo a gente continuar por aqui, sujeitos aos humores desse vasto reformatório que é o mundo. Ainda que as chaves dos portões estejam conosco. Um ótimo domingo para você.
      Abraço.

  4. Raí Lopes diz:

    Vivemos numa sociedade onde há a inversão das ditas coisas…

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado escritor Raí Lopes,
      Você disse bem. A inversão das coisas, quase tudo, parece mesmo sem uma regra.
      Ou, pior ainda, estamos de ponta-cabeça.
      Abraço e até breve.

  5. Odemirton Filho diz:

    Marcos Ferreira, como sempre, nos leva a refletir. Mais uma excelente crônica do nosso artesão das palavras.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querido Odemirton Filho,
      Você é meio que um xodó deste Blog, talvez uma unanimidade. Então, meu caro, é sempre uma alegria saber que estas minhas páginas (por vezes polêmicas) ainda têm lhe agradado. Forte abraço deste seu amigo e admirador.

  6. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Sem dúvida meu Caro Marcos Ferreira, mesmo porque , escrever sobre tais ou quais assuntos ou sobre nós mesmos em nossos caminhos e descaminhos existenciais, também representa um sem número de símbolos, pegadas, rastros e indícios de como pensamos acerca da nossa própria existência, independente do nosso talento na órbita da escrita.

    Aliás, como tão bem asseverou o genial Saramago, um dos.poucos escritores de língua portuguesa que não se quedou aos impérios e imperialismos Lato Sensu, do Anglo saxonismo, INFELIZMENTE , ainda tão vigente quanto latente…!!!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Fransueldo Vieira de Araújo,
      Você, com sua gentileza e inteligência, sempre me honrando com a leitura destas minhas crônicas meio macarrônicas. Obrigado, portanto, pelo carinho e atenção.
      Forte abraço.

  7. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Concordo com você sobre as amarras invisíveis que seguram as pessoas no prumo; todos temos algumas gaiolas imperceptíveis, que nos prendem e, dentro das quais, mesmo possuidores da chave, não nos atrevemos a abrir e sair. O novo é fascinante e assustador! Estamos sempre criando diálogos. Escrever sobre o que nos afeta é libertador. Mas quem disse que temos coragem de conquistar a liberdade? Mas fácil é não mexer muito; evitar aprofundamentos. Há o risco de se descobrir num invólucro que não gostamos. Foi o que essa crônica me despertou!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Amiga Bernadete Lino,
      Às vezes fico em dúvida quanto ao que me dá mais prazer: se rabiscar estas minhas crônicas dominicais ou esperar para conferir seus comentários, sua avaliação sempre tão articulada e bem escrita. Você, permita-me dizer, é um show à parte. A cada domingo você vai se revelando uma cronista introvertida, porém talentosa. Forte abraço e até breve.

  8. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Olá, Marcos!

    Esse reformatório – como você denomina o seu entorno é o nosso reflexo. Para estar nesse espaço com sabedoria, é preciso visitar sempre que possível, o mundo interior. Ele, é o responsável pelo nosso equilíbrio nesse mundo descabido.As vezes o ignoramos, mas nunca nos desligamos dele. “Conhece a ti mesmo”, esse deve ser o nosso grande objetivo! Para tal, a introspecção é necessária.
    Abraços

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida Vanda Jacinto,
      Com sua finesse e inteligência, características estas que lhe são peculiares, você bem sintetizou esse por vezes intransponível reformatório psicológico no qual muitos de nós estamos inseridos. Sua reflexão, perdoe o tracadilho, também me pôs a refletir sobre minha própria reflexão. Isto é, você pensa e faz pensar. Um carinhoso abraço e até breve.

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