Quando do lançamento de Casa-Grande & Senzala, em 1933, Gilberto Freyre inaugura com pompas o discurso cínico de nossa elite sobre a “democracia racial” no Brasil, pregando com entusiasmo a essência do impossível.
Em seu clássico livro, Freyre catalisou os interesses dos donos do poder no que diz respeito à necessidade de uma manobra culta a fim de buscar evitar manifestações futuras de inconformismo.
Adoçando as marcas profundas das relações sociais que foram impostas quando da formação sócio-econômica brasileira, vigentes por longo período da história nacional, Gilberto Freyre levou avante louvada campanha embasada em mentiras afrontosas à dignidade humana.
Quando da elaboração de sua tese de doutorado, Florestan Fernandes, eminente sociólogo de visão larga e humanista, constatou com profundo pesar o gosto amargo do escravismo imposto pelos lusitanos no Brasil. A escravidão brasileira foi um dos mais marcantes momentos da perversidade humana, pois, ao contrário do que registrou Gilberto Freyre em seu clássico e louvado trabalho, o martírio negro foi desenhado com cores berrantes e dantescas em que as mais absurdas manifestações de insensibilidade à dor alheia foram levadas avante, como algo simples e natural.
A “democracia racial”, em verdade, nunca existiu, pois de fato o que houve foi um estupro abalizado pela forma como foram arquitetadas as estruturas de poder. Negras foram usadas como objetos sexuais, meros fantoches a serviço dos seus “donos”.
Sendo assim, o conceito disseminado por Freyre é mesquinho e ridículo, pois negar o sadismo contido nas relações enfatizadas pela sociedade patriarcal brasileira o coloca no panteão do cinismo da pretensa literatura científica elaborada no Brasil.
A “doçura” enfatizada pela idéia de “democracia racial” no Brasil leva-nos a refletir sobre os indicadores sócio-econômicos apresentados hoje, pois as condições de vida de negros e mestiços são inversamente proporcionais às desfrutadas pela descendência dos antigos mandatários, beneficiados com a escravidão no país.
Sofrimento, angústia, desprezo e desmoralização foram os fundamentos sobre os quais se ergueram o escravismo no Brasil em toda sua extensão, tanto geográfica como temporal, pois uma unanimidade no que diz respeito à pretérita relação social de produção associou-se ao racismo enquanto condição indispensável da expressão desumana da escravidão negra.
A forma como Domingos Jorge Velho levou avante a destruição do Quilombo dos Palmares, reduto de negros fugidos da “doçura” açucareira defendia por Gilberto Freyre, nos revela como o patriarcalismo autoritário e desconhecedor de limites enxergava a questão escrava no Brasil.
A tirania privada, personificada na forma como foi implementada a escravidão no Brasil, precisa ser vista com outros olhares, pois o drama negro não pode se circunscrever à mera ficção defendida pela literatura envolta em interesses baseados na necessidade de fomentar a continuidade da intransigente estrutura social que ainda prega a exclusão como algo natural e integrante da paisagem brasileira.
José Romero Araújo Cardoso é geógrafo, professor-adjunto do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.
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