Por Marcos Ferreira
Hoje quero falar com você de maneira bem reservada. Só entre nós, à boca-miúda. Não por necessidade, mas apenas a fim de lhe provocar de algum modo. Ou de me sentir menos solitário neste velho quebra-cabeça que é entremear palavras.
Então resolvi lhe escrever esta cartinha sem revelar o destinatário. Sei, evidentemente, que essa coisa de redigir cartas saiu de moda tanto quanto honestidade de políticos. Acredito em exceções, fiemos que sim, contudo há uma récua de parlamentares que rouba o Sol antes dele nascer. Isso ocorre toda hora com a direita e a esquerda.
Apesar dos pesares, torno a dizer, existem os bons políticos. E esses, naturalmente, estão fora de moda. Neste pacato município, como num conto fantástico, só há políticos bonzinhos, honestos, homens e mulheres comprometidos com a coletividade. Não podemos reclamar de nada dos nossos trabalhadores engravatados. Não! De forma alguma! Aqui não tem obra superfaturada ou rachadinhas.
Precisa ver as nossas ruas e avenidas. São um tapete. Nenhum buraco, nenhuma cratera. Tudo nos trinques, tratado de forma responsável. Confesso que lhe digo essas coisas principalmente para lhe fazer inveja. Sei que aí, na sua Pasárgada, a situação está na mais completa normalidade. Ou seja, igual à bandalheira do resto do País. Aqui, não! O povo vive em estado de graça, feliz com os seus representantes.
E a cultura?! Ah, meu amigo! A cultura é tratada a pão de ló. Até os escritores, excluído e menosprezados Brasil afora, têm absoluta atenção dos nossos gestores.
Mês passado o poeta Setembrino Cardoso foi agraciado com a mais importante comenda da Câmara. O presidente da Casa fez um discurso em que se mostrou tão íntimo da poesia quanto da quantidade de estrelas no universo, porém tremeu a voz, fungou e deitou lágrimas de júbilo por ter sido ele o proponente da homenagem. O bardo tirou foto cercado pelos edis. O único fato lamentável é que, ao fim da solenidade, Setembrino se deu conta de que sua carteira havia desaparecido.
Em constantes reuniões com a sua competente equipe da Secretaria de Urbanismo e Obras, o jovem e operoso prefeito Jorge Copperfield trabalha de forma incansável num ambicioso projeto com a finalidade de criar redomas setoriais e, assim, possibilitar a climatização de oitenta por cento desta nossa aldeia.
Não há, repito, o que maldizer. A saúde pública está esbanjando saúde. O funcionalismo municipal anda com um sorriso de orelha a orelha. Movimento grevista é algo que não existe por aqui. Os professores desta cidade, entenda-se os do município, carregam o prefeito nos braços e torcem pela reeleição do homem. A segurança está sempre atenta, no entanto a criminalidade é praticamente zero. Nem sei lhe dizer quanto tempo faz que não registramos um furto ou homicídio.
Representamos um modelo de civilidade. Nosso solo não sabe o que é sangue. O desemprego foi erradicado. Daí que não existem assaltos à mão armada. Muito menos pessoas nos semáforos com cartazes suplicando por comida. Não tem sem-teto, mendigos nem superpopulação de cães e gatos sem a assistência de um castramóvel. Somos um povo cordial, hospitaleiro, de uma pacatez bovina.
Nosso padrão de sociedade é primeiro-mundista. A expectativa de vida nesta província é proverbial, de provocar ciúmes num Matusalém. Venha passar uma temporada em nossa urbe. Você vai se encantar e comprovar como a nossa administração e o nosso povo vivem em perfeita harmonia.
É ver para crer.
Marcos Ferreira é escritor
Precisa ver para crer! A ironia inteligente, no texto, é de uma perfeição incontestável! Esse prefeito deve ser parente do ilusionista David Copperfield… Amei! A cidade ideal, que existe, pelo menos no imaginário do nobre escritor, é o sonho de todos! Parabéns, Marcos Ferreira! A crônica, como sempre, impecável! Abraço e gratidão por nos premiar todas as semanas!!!
Prezado Marcos Ferreira, ao ler sua crônica tive a impressão que as formas de desigualdade não são naturais, mas consequências de ações e hábitos humanos onde as distinções entre ricos e pobres são bastantes visíveis. Utilizando a linguagem mais simples possível, sua crônica está envolvida por um brilhante ornamento literário. Parabéns!!!
O melhor lugar do mundo. Mesmo que seja clichê dizê-lo.
Aqui o leopardo passei com a corça. Não há falta dágua nem enchente e o reloginho da CAERN não contabiliza o vento na rede , a fatura é que é atrevida e coloca o excesso pra gente pagar…
Kkkkkkk…
Valeu, poeta… é desse jeitinho!
Sua crônica, além de transmitir uma beleza emocionante e de lançar uma crítica muito necessária, desafia o sentido cultural da política brasileira. Uma república pressupõe um povo construindo seu próprio destino. Por que isso não corresponde ao Brasil? Encontre uma imensa fila em um passeio público e distribua picolés, chocolates e água em copinhos e garrafas de plástico entre todas as pessoas da fila que aceitarem. Depois, observe quantas delas jogarão as embalagens dos picolés e chocolates e das águas na própria calçada ou junto ao meio-fio. Vivemos a cultura do lixo! Na política, chamam-se clientelismo e populismo os dois principais resíduos de alta toxicidade. Mas, como diz o brocardo, só não há jeito para a morte. Aqui não se deve ver para crer.
Parabéns, poeta Marcos Ferreira!
Impressiona-me a maneira como você conduz as palavras e as aplica, meu caro e nobre Marcos. O zelo que você tem para com a linguagem é algo realmente fenomenal! Digo isso com muita propriedade, convicção e familiarização, porque conheço sua escrita há um bom tempo. Sinto-me honrada em ter a oportunidade de efetuar a leitura dos seus inúmeros textos, principalmente as crônicas que têm deixado um grande aprendizado. Vir aqui é um bálsamo para o espírito. Muitas vezes o leitor chega preocupado e triste com um parente ou amigo que está doente, mas consegue rir, refletir, dialogar com seus textos. E, sem dúvida, essas características fazem com que nós consigamos regressar de maneira mais suave, mesmo que sejam pouquíssimas horas. Porém, bastante proveitosas e válidas. Aqui por exemplo, você traz a ironia cristalina. Entretanto, o jogo com a metáfora faz com que nós leitores brinquemos com as PALAVRAS, outorgando-nos o direito às várias interpretações , e isso é maravilhoso.
Com inteligência, ironia e criatividade, Marcos cria este mundo idílico que até se tivéssemos dormindo, suspeitaríamos.
Mas sua escrita primorosa, mesmo que momentaneamente me levou a pensar que fosse possível. Entretanto, lembrei que a a espécie humana não gosta do humano, aliás, não gosta de nada que vive!
Um abraço meu amigo!
Lendo esse maravilhoso relato sobre essa esplendorosa administração, até pensei que Marcos se referia à minha querida cidade natal, onde se brinca os bois bumbás Garantido e Caprichoso.