• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 16/05/2021 - 07:10h

Coisas bonitas

Por Marcos Ferreira

Vez por outra, em virtude de algumas palavras um tanto ásperas ou indelicadas que ainda deixo escapar na minha escrita, sou carinhosamente admoestado. Pois Natália Maia, minha adorável noiva (que é a delicadeza em pessoa), teme que eu volte àquela época em que me comportava como um selvagem da literatura norte-rio-grandense, apontando e fustigando impostores das nossas letras. Não faço mais isso. Como declarei em recente entrevista ao portal Oeste em Pauta: “Todos são pessoas adultas e cada qual que responda pelas produções que assinam”.janelas fechadas, abajur,

— Escreva coisas bonitas! — falou Natália.

— Por exemplo? — questionei.

— Algo que não gere polêmica, bate-boca na internet, desgastes à toa. As pessoas gostam de ler histórias edificantes.

Emendei com uma ponta de ironia:

— Amenidades, você quer dizer.

— Sim! — admitiu. — Em tempos como estes, tão sombrios, precisamos ler mensagens positivas. Veja Odemirton Filho…

— E o que tem Odemirton?

— As crônicas dele são leves e bonitas.

— Estou de acordo. Enquanto cronista, Odemirton Filho não se mete em certas arengas, questiúnculas, provocações. É um reflexo da índole pacífica dele. Está muito mais para a natureza conciliadora do Rubem Alves do que para o temperamento ácido e iconoclasta do Agripino Grieco. Odemirton é um cronista admirável, paz e amor, dono de uma escrita saborosa e autêntica. Ocorre, no entanto, que a diversidade de vozes, têmperas e estilos enriquece a literatura.

— Sugiro que busque um meio-termo.

— É isso o que venho perseguindo.

— Cadê a produção? É sábado e até aqui você não me apresentou nada. Mandou a crônica para o blogue do Carlos Santos?

— Já. Só falta a da Revista Papangu.

— Muito bom! Mãos à obra, então.

— O texto está bem encaminhado.

— Escreva coisas bonitas! — insistiu.

Não vai dar, amigos leitores. Não no presente instante. Não me sinto inclinado a produzir ou falar sobre amenidades nas condições emocionais em que ora me encontro. Sequer no tocante à poesia. Deixei um soneto pela metade desde o último domingo, faltando os tercetos. Até agora não reúno ânimo inspirativo para concluir o poema. Hoje desejo apenas que minhas janelas e portas continuem fechadas.

Posso dizer que estou no meu momento vampiresco. Nada de sol, portanto. Não quero ver nem ouvir ninguém; celular no modo avião. Que nenhuma tranca ou ferrolho seja liberado. Que estas frias e negras cortinas continuem intocadas.

Penso em retirar da minha vista este impassível e burocrático relógio de parede. Como seria bom se pudéssemos imobilizar o tempo, de modo que as sete horas e quinze minutos desta manhã agradavelmente fria e penumbrosa perdurasse indefinidamente. Não me disponho a encarar o domingo lá fora, topar com vizinhos, dar-lhes um bom-dia meio que a contragosto e desonesto.

Repito, minhas senhoras e meus senhores, que este não é um bom ensejo para amenidades, palavras edificantes, mensagens positivas. Não da minha parte. Então me dou ao luxo de expressar fielmente o meu estado de espírito. Sem máscaras, sem disfarce algum.

Minha alma é este poço escuro, charco emocional que se estampa sobre minha face. Aqui usufruo da penumbra e do silêncio, do ócio e da quietude. Não escrevo para agradar nem desagradar ninguém.

Esta manhã encarcerou a minha veia bem-humorada, o meu sorriso fácil, continental. Reacende frustações e velhas mágoas, desaponta a musa e rompe as cordas da minha lira. Traz-me à memória recortes de sonhos mortos, projetos e planos frustrados. Contudo não enveredo para o campo da autopiedade, ainda menos descambo para a literatura de autoajuda. Mas admito que estou cheio, farto da concretude da vida. Que se danem o lítio, a quetiapina e o divalproato!

Embora o céu esteja carregado, detalhe este que me agrada sobremaneira, eu sei que os pássaros continuam cantando seus madrigais e as flores (perfumosas e concupiscentes) sorriem para os lindos colibris e borboletas que frequentam o meu quintal. Isso, no entanto, é poesia bucólica que não me seduz ou inspira. Deixo essas lindezas para os mágicos pincéis de Laércio Eugênio. Quero o frio monólogo da chuva, que chega devagarinho, e o pigarro inequívoco do trovão.

— Escreva coisas bonitas!

Desculpem. Hoje não será possível. Que o caro leitor e a distinta leitora se contentem com esta crônica melancólica, entretanto pacífica, livre de rusgas e mal-estares. Escrever é isto: um dia estamos para cima, noutro estamos plantando bananeira. “Sugiro que encontre um meio-termo”, aconselhara-me Natália. Quem sabe da próxima vez em que eu me coloque diante do teclado.

Meu mal e meu bem é este vício que me desfalece e me aviva, este sacerdócio que amaldiçoa e santifica, que me golpeia e me revigora: a literatura. Estou a dispor das suas vontades e caprichos. Torço que esta manhã seja duradoura quanto serena. Que o sol não se atreva além daquela réstia langorosa.

Quero não mais que o canto dos passarinhos, o ribombar dos trovões e este colóquio em que nossas almas, prezados leitores, comunicam-se telepática e silenciosamente como os olhos daquela tosca Mona Lisa ali suspensa na parede da minha sala.

Enfim a chuva desaba, ruidosa, diluviana. Teimo em não romper o véu da penumbra, em não abandonar o desalinho dos travesseiros e lençóis, enquanto meu hídrico e fértil pensamento fabrica esta visão cinematográfica: a água encharcando a terra, descendo pelas calhas, desembestando ao longo das sarjetas. Isso é música aos meus ouvidos, é carícia na minha alma agreste.

Adivinho a glória dos sapos e rãs pelos bueiros e regatos do subúrbio, enquanto aqui dentro tudo é remanso e bocejo. Suponho ouvir a boca numérica do relógio mastigando as horas, minutos e segundos.

Noite passada, a propósito, quando expunha suas fundamentadas e categóricas previsões para hoje, a moça do tempo anunciou para estas bandas um dia ensolarado e quente. Mas a chuva prossegue firme e abundante, levando as previsões meteorológicas no curso das sarjetas, pela enxurrada.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Meu caro Marcos Ferreira, minha querida Natália. Vocês, ao mesmo tempo que me deixaram feliz com as suas palavras, aumentaram a minha responsabilidade daqui para frente.
    Quem dera um dia produzir um texto como os de Marcos Ferreira, escritor de primeira linha. Reconhecido. Premiado.
    Vou por aqui, aprendendo, aprendendo.
    Realmente, Marcos, tem dias que a gente não quer muita conversa. O silêncio é a melhor companhia. Faz parte.
    Mas passa, tudo passa.
    Um forte abraço, Marcos e Natália. Muita saúde e paz. Luz na alma.
    Cuidem-se!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Odemirton,
      Boa tarde.
      Sem rasgação de seda, tenho você na conta de um dos melhores cronistas desta cidade. À sua maneira, com linguagem e impressão digital autênticas, você tem luz própria. Canta e encanta.
      Forte abraço deste seu fiel leitor,
      Marcos Ferreira.

  2. Aluísio Barros de Oliveira diz:

    Estamos no time da Natália: escreva. Não deixe o dia suspenso.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Obrigado, querido amigo, professor e grande poeta Aluísio Barros.
      Um grande abraço e um ótimo domingo para você.

  3. Magno diz:

    Nosso Machado de Assis mossoroense, bom dia!

    Colega, como disse, lhe acompanho desde que eu residi em Mossoró. Hoje, lendo sua crônica, continuo vendo que existe um poço de mágoas nos seus textos. Permita-me a ousadia de apontar isso nos seus trabalhos. Procure se cuidar, se tratar disso, procurar ajuda profissional ou seguir o conselho de sua noiva: procure amenizar essa dor, Marcos. Vá à praia, dê bom dia aos vizinhos, que homem se nega a isso?! Procure se curar interiormente. Você é um escritor bom, mas precisa virar o disco, virar a página de seus dias negros… Se é que você os teve realmente… e tocar a vida. Há muito incômodo ainda com quem você acha que é impostor ou não. Dá para sentir.

    Pegue o carro. Se o tiver. Vá para a praia. Tente esquecer. Tente se curar. Quem pode provar que você não provocou parte disso? Será que foram apenas as pessoas que você julgava menos ou ingratas ou sei lá…?

    Você é um bom autor. Mas tente rever isso. Quer dizer, é apenas uma humilde opinião de um leitor sem pretensão de ser, como você gosta de escrever, palmatória de ninguém.

    Você pode resgatar isso ainda e o prazer de viver. Siga os conselhos de sua noiva. Ela tem razão. E razão é um remédio que cura muitas coisas, com uma boa dose de tempo…

    Valeu, Marcos.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Magno,
      Boa tarde.
      Assim como Natália, você está certíssimo quando diz que preciso dar a volta por cima e virar algumas páginas da minha vida, seguir em frente, superar mágoas, infortúnios, decepções. Realmente você não faz ideia de certas adversidades por que passei, nem do quanto essas coisas me marcaram com profundidade, porém não é nada saudável continuar nutrindo esses dissabores. Guardar mágoas é como a gente tomar veneno e esperar que outra pessoa morra. Minha atividade literária (que retomei após uma década de estagnação), juntamente com o tratamento médico especializado que tenho seguido à risca, têm me feito um bem enorme. Como você disse no seu sempre bem-vindo comentário neste espaço, é preciso resgatar o prazer de viver e me sentir em paz comigo mesmo. Grato, mais uma vez, por sua leitura e atenção.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.
      P.S.: Se for do seu interesse, segue meu e-mail para correspondência:
      escritormarcosferreira@gmail.com

  4. Fabiano diz:

    Mas um texto impecável Parabéns e obtidos por nos oferecer a oportunidade de ler textos assim.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Fabiano,
      Muito obrigado pelo estímulo e por acompanhar minha participação dominical neste espaço.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  5. Simone Martins diz:

    A literatura de Marcos é tal qual uma deliciosa comida que, você degusta, aos poucos, sentindo o sabor e o aroma, deliciando-se com a mistura intrigante do agridoce, ou simplesmente do doce com o salgado e, como consequência, não consegue parar até que não sucumba ao abandono uma migalha sequer. É simplesmente delicioso ler as crônicas desse maravilhoso escritor!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida Simone Martins,
      É sempre uma honra e alegria contar com a sua atenção e sensível leitura de minhas crônicas neste ilustrado Blog Carlos Santos.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  6. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Boa tarde, Marcos!

    Quer mais doçura e poesia do que o ruído da chuva e o coaxar dos sapos e ras?
    Você é um poeta nato!

    Parabéns 👏👏👏

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida poetisa e cronista Vanda Jacinto,
      Boa tarde…
      Fico muito feliz em saber que você tem acompanhado as minhas crônicas neste prestigioso espaço.
      Forte abraço e um ótimo domingo para você.

  7. Fabio diz:

    Toda atitude é política. Ficar em cima do muro ou meio termo é ficar do lado do opressor. Parabéns amigo.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Fábio,
      Grato pela leitura e pelo seu importante e bem-vindo comentário.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  8. ROZILENE FERREIRA DA COSTA diz:

    Que texto lindo! É impossível tê-lo em mãos e não nos emocionarmos. O Marcos tem uma escrita ” crua ” e simplesmente divina, suas palavras sempre exercem um papel na nossa vida: elas ensinam e mudam nosso modo de encará-la e analisá-la, simultaneamente. Parabéns, Marcos.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida amiga Rozilene Ferreira da Costa,
      Boa tarde…
      É muito bom saber que você vem acompanhando a publicação de minhas crônicas neste espaço, e que esses textos lhe têm proporcionado uma experiência agradável enquanto leitora. Sua amizade foi uma das melhores coisas que me vieram nestes últimos anos. Um ótimo domingo para você e Edu.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  9. Cristiane dos Reis Braga diz:

    Seja uma crônica nada amena, um conto amoroso ou uma poesia provocativa, as palavras nas mãos de Marcos Ferreira ganham alma.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Amiga Cristiane dos Reis,
      Boa tarde…
      Sei da sua reserva e discrição no tocante aos nossos meios literários e intelectuais, sempre nos bastidores. Então, minha querida, suas palavras aqui publicadas têm grande importância para mim. Um ótimo domingo e um forte abraço para você e Israel.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  10. Francisco Nolasco diz:

    Bem mais do que necessária a crônica do Marcos Ferreira é enlevo para alma e colírio para os olhos. Onde quer que se encontre emocionalmente ( Casmurro ou alegre ) sempre nos presenteia com suas pérolas inesgotáveis.
    Na singeleza dos dizeres nunca o vi escrever senão COISAS BONITAS! Lembrando o fantástico cantor, compositor e também poeta, Maciel Melo, que em ” Tareco e mariola” diz tirar leite de pedras, nos chega à tona o equilíbrio mental do nosso poeta Marcos, que em suas mágicas sensoriais, tira de onde não tem pra colocar onde não cabe, fazendo dos seus solilóquios verbais a engrenagem da sua imaginação.
    Parabéns, Ferreirinha! Mais uma vez e sempre gigante em pensamentos e palavras.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Estimado Poeta Francisco Nolasco,
      Não tenho como negar o quanto envaidecido (no bom sentido) eu fico diante de suas palavras acerca destes meus escritos publicados ultimamente no Blog Carlos Santos e na Revista Papangu. Muitíssimo grato pelo incentivo. Até domingo e um forte abraço, saúde e paz para você e sua família.
      Marcos Ferreira.

  11. Fernando diz:

    São escritos dessa maneira que nos faz leitor do blog ‘’ Carlos Santos “ A melhor leitura dominical.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Fernando,
      Boa tarde…
      Grato por sua leitura e comentário. São leitores como você que fazem o nosso exercício de “lutar com palavras” valer a pena.
      Forte abraço e até o próximo domingo.
      Marcos Ferreira.

  12. Rocha Neto diz:

    Oi Natália, vamos fazer o seguinte: deixa Odemirton nos fazer ficar saudosistas com suas crônicas que nos remete ao passado saudável de nossa amada Mossoró, enquanto Marcos nos transporta ao academismo cultural oriundo de uma inteligência gigantesca de conhecimentos gerais, teimar com Marcos, não adianta! Lembro que nem quando ocorrer a escrituração cartorária do amor ora vivido pelos vocês. Brincadeira ! Admiro Marcos pelo muito que ele nos oferece através desta leitura semanal aqui no blog do nosso amigo Carlos Santos. Sou tiete da dupla.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Rocha Neto,
      Boa tarde…
      Que bacana é esse seu feedback! Comentário não apenas bem-vindo e enriquecedor, como sempre, mas também espirituoso, bem-humorado, descontraído, inteligente e leve como as cativantes crônicas do Odemirton Filho. Na minha escrita, ultimamente, exceto por raras ocasiões, Natália manda e eu obedeço. Ao menos tento, evitando resvalar para certos dissabores de que o tempo deve se ocupar e dar conta. Fico muito feliz, repito, em contar com você entre os meus poucos porém especialíssimos leitores. Sou grato ao Carlos Santos, de quem também sou tiete, por me ter oferecido este ilustrado espaço de opinião, arte e literatura. Um grande abraço e até o próximo domingo.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  13. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Parabéns Marcos Ferreira, lindo texto, Natália tem razão, as mulheres irritantemente usam de bom senso. Por outro lado, a vida que produzimos, masculina em sua forma de ser, não merece muitos elogios. Sei também que tudo é uma questão de ponto de vista e o certo e o errado vivem como par, um não existem sem o outro. No texto, lembrei sobre o Narrador, de Walter Benjamin, ao abordar questões que seu diálogo com Natália apresentam poeticamente. Obrigado, valeu o dia. Abraços.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querido professor Valdemar Siqueira Filho,
      Boa noite…
      As mulheres sempre têm razão, estando certas ou não. No meu caro, lógico, Natália está mais que certa. O que não significa que uma vezinha ou outra eu não possa ser um tiquinho só desobediente nestas minhas traquinagens literárias.
      Forte abraço para você minha querida amiga Bete,
      Marcos Ferreira.

  14. Marcos diz:

    Meu amigo Marcão, pois é assim que o chamamos apos décadas de amizade,, que tal quebrar toda essa penumbra em delicioso café da tarde lá na loja….. soa presença estar fazendo falta !
    Parabéns pelas letras, como sempre 100%.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu estimado amigo Marcos Rebouças,
      É claro que eu também estou precisando tomar aquele nosso delicioso cafezinho da tarde, em meio ao nosso sempre agradável bate-papo. Você, Nilsinho e toda a turma da loja podem me aguardar que marcarei presença no inicio da semana. Mandarei um sinal de fumaça com alguma antecedência. Agradeço por seus comentários e acompanhamento do blogue.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

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