• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 31/10/2021 - 07:46h

Começos arrebatadores

Por Marcos Ferreira

Como você decide qual a primeira palavra a ser escrita? Ouvi esta pergunta recentemente e não me lembro quem me fez tal indagação. Talvez eu a tenha lido em algum lugar. Ou foi por telefone, em conversa com algum amigo ou amiga cujo nome, infelizmente, não me recordo para lhe dar o merecido crédito. Minha memória, repito, é firme quanto um Sonrisal num copo d’água.

O fato é que a primeira palavra, às vezes uma simples letra, um artigo masculino ou feminino, é responsável por todo o texto que está por vir. Sem essa largada, continuamos no zero, a página inteira em branco. Portanto, trata-se do gatilho, da espoleta, da fagulha que vai libertar todo o pensamento represado. No mesmo grau de importância considero o primeiro parágrafo de um texto. Poucos são os leitores que seguem adiante após um início de história ruim ou medíocre.literatura, livro, livraria, poesia, conto, crônica, prosa, versoComo um anzol, digamos, você precisa fisgar o leitor já na largada, no comecinho da sua página. Esta que vemos em curso, por exemplo, também se submete aos ditames em questão: tem que atrair o interesse do leitor logo na saída. Dificilmente, numa livraria qualquer deste país e do planeta, o sujeito levará para casa uma obra que não conheça, a menos que se agrade do princípio.

Claro que isso de fisgar o leitor nas primeiras linhas é muito relativo. Em vários casos, ou na maioria deles, depende do gosto de cada pessoa por determinado estilo ou gênero literário. Mas vamos supor que você acabou de entrar numa livraria e, com grana para comprar apenas um livro, está a fim de adquirir algo novo, um autor e obra desconhecidos. É aí, pois, que o efeito azougue da escrita vai fazer a diferença, seja num romance, livro de contos, crônicas ou poemas.

Tem que ter aquela mensagem imantada, engenhosa, ou no estilo arrasa quarteirão. Seja por meio de uma frase poética, metafórica, ou através do velho recurso de tentar arrebatar o leitor à custa de um introito chocante, por vezes na forma de violência, como num disparo de arma de fogo, alguém que se lança do alto de um arranha-céu ou se enforca. Enfim, um cadáver já no abre-alas.

— Meu Deus! — podem se persignar.

A literatura nos oferece mil e uma possibilidades de narração de uma história utilizando o recurso de impactar o leitor. Sobretudo quando se trata de prosa fictícia, em particular nos romances e contos. Há autores, nacionais quanto estrangeiros, que praticamente escrevem com sangue as suas narrativas carniceiras, como Rubem Fonseca e Stephen King, para citarmos apenas dois. Outros nos atordoam pela surpresa e conteúdo insólito, feito o escritor tcheco Franz Kafka.

Para mim, que tenho verdadeiro horror a baratas, essa largada de A Metamorfose é um dos começos de novelas mais assustadores e inescapáveis da literatura: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Embora sem especificar o tipo de inseto, a descrição da barata é imagética e repugnante.

Um dos começos de livros mais aplaudidos, e merecidamente, é o do clássico Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. Diz ele: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. E quem pode resistir e não seguir em frente na leitura após se deparar com as primeiras linhas de romances como Insônia e São Bernardo, do mestre Graciliano Ramos?

Não terem dado um Nobel a Graciliano foi uma grande injustiça, posto que tantos autores discutíveis levaram tal prêmio da academia sueca. Temos aqui, em solo tupiniquim, inclusive entre meus contemporâneos, literatura de alto nível. Outro gênio da prosa de ficção, o nosso insuperável Machado de Assis, abre o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas com um parágrafo arrebatador:

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo”. Simplesmente genial!

Assim como o romancista, o contista e até o poeta, o cronista precisa fazer valer o seu reflexo de pescador. O peixe a ser fisgado, claro, é o leitor. A crônica deve ser atraente desde o título, que é o coadjuvante da isca, ou seja, as primeiras linhas. Ao contrário do que se dá com os livros nas livrarias, as crônicas expostas nos periódicos não contam com o chamariz de uma capa bonita.

— Mas ilustramos — dirá meu editor.

Sim. Porém o prezado leitor e a gentil leitora, que nem sempre concordam que uma imagem vale por mil palavras, esperam um texto que lhes salve o domingo (eis o nosso compromisso) da banalidade das páginas meramente jornalísticas, tão difundidas ao longo da semana. Deseja-se, então, que o cronista tenha algo de invulgar a oferecer, uma mensagem ou história (nem precisa ser real) que caia suave com os primeiros goles daquele café escoteiro tomado bem cedinho.

Daí a importância, num espaço tão eclético e ilustrado quanto o Canal BCS (Blog Carlos Santos) de nós cronistas botarmos a cara aqui todo domingo com uma narrativa capaz de atrair e manter o leitor interessado no que temos a contar. Tal conquista, volto a recordar, parte desde o título, mas, principalmente, ganha impulso a partir de um primeiro parágrafo de fato sedutor, cativante.

Isto significa que o final nem carece ser tão apoteótico ou estrondoso como um toque de gongo, contudo o leitor não costuma abrir mão de um começo arrebatador, envolvente. É aí, no mais das vezes, que está o sucesso ou fracasso do seu texto, seja ele um romance, um conto, uma crônica e até um poema mais longo. Você, por uma razão ou por outra, permaneceu comigo até este momento, e há de concordar com o meu raciocínio. Acredito, portanto, que iniciamos bem.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Marcos Ferreira, para variar, consegue “fisgar” o leitor do início ao fim do texto.
    O homem é bom!
    Abraços, amigo.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido Odemirton,
      Bote mais essa aí na minha dívida de gratidão para com o ótimo cronista que é você.
      Forte abraço, meu amigo.
      Marcos Ferreira.

  2. Aluísio Barros de Oliveira diz:

    Bons dias, MF! Saudemos Carlos Drumond em seu dia D. Viva a Poesia!

    Não há como não lembrar, pelo cheiro do café q me acende essencialmente a manhã, a genialidade já lembrada do Gabriel Garcia Marques (1928-2014), em “Ninguem Escreve ao Coronel” (1968):
    ” O Coronel destampou a lata de café e notou que apenas restara uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem. […] Eis uma manhã difícil de vencer”.
    Despido de todo o poder, o Coronel espera, faz 56 anos, uma carta q virá anunciar o fim da sua miséria. Ele também vive “dias de miséria, solidão profunda, perspectivas vagas”.
    É um inicio magnifico. Tirada de mestre. Aquele instante que vc agora alcança muito bem, para iniciar essa conversa de domingo, enquanto o poeta estadual caça suas cacas no nariz e o federal sorri pq as notícias lhe são sempre alvissareiras.
    Tua crônica de hoje deveria ser lida por esses meninos e meninas ainda não perdidos [a juventude, ah a juventude e suas perdições! Invejo-os o viço não o q fazem] e que se prendem aos bancos escolares preparando-se para o Enem q se avizinha (O Colégio Diocesano não para um dia, meu Deus. Que bom!).

    Café pronto. Vamos abraçar esse Sol q nos afasta da bílis negra q nos assome. “Vitamina D é tudo”, me avisa Tertinha, enquanto estende a toalha na grama. O Sol hoje tá q tá.
    Lembranças a encantadora Natália.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido poeta Aluísio Barros,
      Dessa vez você não fez tão só um mero comentário, mas uma pequena, bela e poética crônica. Muitíssimo obrigado por suas gentis e inteligentes palavras, meu amigo. Como diz você, ganhei o dia!
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  3. Cristiane dos Reis Braga diz:

    Me lembrou a música de João Bosco “o começo é sempre, sempre inesquecível, e, no entanto, meu amor, que coisa incrível, esqueci nosso começo inesquecível”. Nessas situações vale a trajetória, seja em qualquer situação. Bom domingo a todos.

    • Marcos Ferreira diz:

      Minha querida amiga Cristiane,
      Adorei a citação da música do João Bosco, dos meus artistas preferidos. Muito obrigado, mais uma vez, por suas inteligentes e oportunas palavras. Forte abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

  4. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Parabéns a vida precisa de histórias. Não discordando de sua teoria, penso que a ideia, que surge primeiramente em nosso cérebro pela imagem, segunda a teoria da cognição, é também um elemento criativo importante, pois é agradável encontrar boas ideias que afetam e contaminam, no sentido produtivo, nossa vida. Abração.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido Valdemar,
      Bom dia!
      Obrigado por seu pertinente comentário. Forte abraço e uma ótima semana para você e Bete.
      Marcos Ferreira.

  5. Fabiano diz:

    Como sempre, não apenas começou bem,mas desenvolveu bem e finalizou ainda melhor. Nos deixando o convite ao próximo. Parabéns meu amigo!

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Fabiano Souza,
      Sua opinião, em curtas e objetivas palavras, é a comprovação de que logrei êxito nesta crônica. Isso é muito gratificante, meu caro. Grato por sua leitura e seu depoimento. Forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  6. Airton Cilon diz:

    É como foi dito: Tudo tem começo e fim, e o tormento ou bloqueio de um escritor, parte do início. Precisamos de um mote, uma frase, que anotamos num bloco de notas. Precisamos desse gatilho inspirador! Cito aqui o Renato Russo que a partir de uma frase de um filme, construiu a bela e triste canção, “Pais e filhos” a frase que o engatilhou foi: ” É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Um abraço, poeta e ecritor Marcos Ferreira.

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro poeta Airton Cilon,
      Você, que é do ramo, compreende bem esse processo criativo. Não bastasse a literatura, você também atua nas artes plásticas e na música. Tanto que acaba de me trazer essa informação valiosa sobre a composição “Pais e Filhos”. Eu desconhecia a origem do “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Eu achava que era coisa do próprio Renato. Obrigado pela leitura e interessante comentário.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  7. Rizeuda Silva diz:

    Boa tarde, Marcos Ferreira!

    “Quem dera ser um peixe…”, mergulho nas profundezas da sua crônica, independente do título ou do desenrolar da sua narrativa. Sou atraída pela magia das palavras, que vão se desenhando do princípio ao fim. Você nasceu com o dom da escrita e possui o poder de “fisgar” o leitor. Parabéns, nobre escritor! Meu carinho aqui das bandas do Norte!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida poetisa Rizeuda Silva,
      Boa tarde!
      Sempre que escrevo, sempre que inicio uma crônica, para ser mais exato, desde o início eu já conto com um grande estímulo por saber que na outra ponta, nessas manhãs de domingo, possuo o privilégio e honra de contar com leitores do seu nível de inteligência e sensibilidade. Isso não tem preço, não há como mensurar, mas é, sim, um estímulo valiosíssimo. Muito obrigado, mais uma vez, por sua leitura e depoimento. Forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  8. Rocha Neto diz:

    Caro Marcos Ferreira, você não é só mestre em jogar o anzol para fisgar, mais sim, a tarrafa também; aquela rede que cobre e prende não só um peixe, mais sim um cardume enorme que sabe apreciar o que é bom, ou seja, uma boa leitura. Foi isto que você fez mais uma vez através da inebriadora crônica de hoje, a qual arrebatou e aguçou as mentes de quem deseja culturalmente crescer e desenvolver o intelecto.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido amigo Rocha Neto,
      Entre outras coisas, gostei especialmente do seu comentário pela analogia que você faz com o ofício do pescador. Agrada-me, portanto, a metáfora autor-pescador de leitores. Mais uma vez, meu caro, muito obrigado por suas gentis e gratificantes palavras. Forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  9. João Bezerra de Castro diz:

    Acordei hoje com uma vontade incrível de ouvir a música MONTE CASTELO (Legião Urbana).
    “Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem.”
    Pensei que fosse o suficiente para um domingo tranquilo.
    Faltava algo: COMEÇOS ARREBATADORES, crônica do escritor Marcos Ferreira, publicada no Blog Carlos Santos no último domingo de outubro/21.
    “Simplesmente genial!”, como o início de Memórias Póstumas de Brás Cubas, para mim, um romance digno de aplausos, assim como a crônica estupenda que li duas vezes, ATÉ O FIM!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro João Bezerra de Castro,
      Boa tarde.
      A canção “Monte Castelo” também é uma das minhas preferidas da extraordinária banda Legião Urbana. Tanto que agora estou lhe escrevendo ao som de “Monte Castelo”. Fico feliz, então, que minha crônica “Começos arrebatadores” tenha lhe proporcionado esse complemento cultural para o seu domingo. Ainda mais por saber que o amigo leu o texto duas vezes. Isso é muito gratificante, uma recompensa inestimável para qualquer cronista de qualquer esfera. Muitíssimo obrigado, meu querido. Uma ótima semana para você e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  10. Mário Gaudêncio diz:

    A Crônica de hoje nos torna pessoas melhores no amanhã. Abraços.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Mário Gaudêncio,
      Boa tarde.
      Obrigado por sua leitura e comentário. Espero que em breve você nos apresente seu livro de crônicas. Sei que está, entre outras coisas, trabalhando nesse projeto. Avante!
      Marcos Ferreira.

  11. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Simplesmente genial, caro amigo!
    Você, como ninguém, sabe o segredo de chamar e prender a atenção do leitor do começo ao final.
    Grande abraço!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida Simone Martins,
      Boa tarde.
      É sempre uma honra contar com a sua leitura e seus gratificantes comentários. Fico feliz por lhe ter oferecido um texto atraente. Forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  12. Alcimar jales diz:

    Bom dia, meu amigo Marcos Ferreira.
    Caro amigo, como sempre vc tem o dom e a sabiencia dos grandes poetas. Pois, cair como um peixinho no ansol que vc lançasseste sobre o meu domingo nublado.
    Me desculpa por só ter comentado hj.
    Vc sabe como é a minha correria. Mas, é sempre um prazer e uma gratificação lê você as domingo.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido Alcimar Jales,
      Boa tarde.
      Fico feliz que o amigo tenha lido e gostado da crônica. Grande abraço e uma ótima semana para você. Até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  13. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    É verdade, Marcos. A fisgada vem, quase sempre, na primeira frase, nos primeiros parágrafos. Exemplo disso foi uma tentativa de escrever uma crônica sobre o pôr do sol – sem conseguir “um mote” para iniciar – quando uma aluna minha chegou e disse que tinha levado a sua sobrinha, de cinco anos, para ver o mar pela primeira vez. Já no final da tarde, quando o fusco-lusco se aproximava, ela olhou para a tia e disse: o pôr do sol é tão lindo chega o mar fica doce… Quando eu ouvi essa frase sabia que tinha encontrado o fio da meada para fazer a minha crônica. E fiz. E como a sua crônica: ela nos leva a vários outros textos, diria, a sua crônica nos induz a “rever” clássicos (como os colocados aqui). Parabéns!

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado escritor Raimundo Antônio,
      Boa tarde.
      Obrigado, mais uma vez, por sua leitura e presença neste espaço do leitor com seus pertinentes e gratificantes depoimentos. Quanto à sua crônica sobre o pôr do sol, amigo, tive a grata oportunidade de lê-la e, em momento oportuno, sugiro a sua publicação aqui no Canal BCS (Blog Carlos Santos), para deleite dos nossos amigos e leitores. Forte abraço e uma ótima semana para você, saúde e paz.
      Marcos Ferreira.

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