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domingo - 03/09/2023 - 05:38h

Conversas de calçada

Por Marcos FerreiraConversas de calçada - CRÔNICA - Marcos Ferreira

Subúrbio. Conjunto Walfredo Gurgel. Rua Euclides Deocleciano. Chega a tarde-noite (juntamente com os enxames de muriçocas) e os moradores desta periferia começam a surgir com as suas cadeiras de plástico e de balanço. Há grupos de indivíduos de vários tipos e em quantidades diversas. O círculo de que faço parte se reúne bem perto de minha casa. Ao fim do dia, portanto, quando não estou com outro compromisso ou escrevendo, saio para interagir com meus vizinhos. São conversas de calçada, onde se fala de tudo. Inclusive da vida alheia, que ninguém é de ferro.

A senhora Raimunda é peça valiosa nessas reuniões crepusculares. Bem-informada, está por dentro de quase tudo que se passa neste logradouro. Maldiz (e com razão) os motoristas e motociclistas que passam na carreira. Apesar da vista curta, ela dá conta de quem vem e de quem vai. É a minha personagem favorita desse elenco de palestrantes bem-humorados e tão criativos quanto sinceros.

Sayonara, filha da senhora Raimunda, sai com uma cadeira e o seu bem-amado cãozinho Pim-Pim, cheio de fofura e nada amigável. Jéssica Taline, social mídia e designer, integra-se à turma. Daí a pouco, também com uma cadeira de balanço e sua cadelinha Pretinha, comparece Maria dos Navegantes. Pretinha é o meu xodó. Aqui e acolá, quando vou pedir um pouco de café a Navegantes, Pretinha faz uma festa ao me avistar no portão. Um encanto de criatura. Mais afetuosa, mais sensível até do que certas classes de elementos incapazes de um gesto de amor ao próximo.

Rucilene e Erinaldo, casal espirituoso, brincalhão, sempre disponibiliza a sua calçada e algumas cadeiras para esse bate-papo tradicional, isento do rigor e das amarras da língua portuguesa. Em tal meio, de forma cristalina, fala-se o idioma do povo, não o linguajar rebuscado, calculado, de supostos intelectuais. Em companhia dessa gente me sinto à vontade, benquisto. Eles me transmitem isso.

Os diálogos avançam pela noite. Não raro há comida degustada ali mesmo, à calçada. Navegantes, Rucilente e Erinaldo são os principais adeptos de refeições do lado de fora, ao ar livre. Não falta, claro, uma pequena mesa e uma garrafa de café. Além disso, circulando de mão em mão, ouve-se o pipocar de uma dessas raquetes elétricas para combater o ataque dos mosquitos. Após determinado horário, porém, quando circula um ventinho generoso, os pernilongos dão um sossego. Os fatos e os boatos correm soltos. Zecão, o dono da lanchonete, larga um berro de entusiasmo. Gol do Flamengo! Assim se comporta Magno, outro torcedor do rubro-negro e esposo de Navegantes. A clientela de Zecão entra e sai. A senhora Raimunda filma tudo.

Figura especialíssima é a vizinha do meu lado direito, a simpática Cilene Freitas, eventual frequentadora de nossa confraria. Não conheço mulher tão alegre, tão de bem com a vida e cheia de coragem para enfrentar os obstáculos do mundo. A sua positividade transborda e nos contagia. Além de exímia cozinheira, é responsável, em grande parte, pelo vocabulário proibido para menores de dezoito anos que se escapa da boca dos adultos. Um tirinete de palavras e frases picantes.

Não só de amenidades e risos se constitui o colóquio desses cidadãos vulneráveis, desprotegidos. Discute-se, entre outras questões, os assaltos frequentes, o abandono do bairro, o problema do carro do lixo que deixou de passar na rua, serviço agora a cargo de um único gari que realiza toda a coleta quase de madrugada e vai distribuindo as poucas sacolas encontradas em esquinas estratégicas.

Este é o mais antigo conjunto de Mossoró e jamais um prefeito ou prefeita quis asfaltá-lo. Contrariando tudo isso, sobretudo o risco de sermos premiados com a visita indesejada de assaltantes, a gente reúne coragem e bom humor para se encontrar ao pôr do sol nesta esburacada Euclides Deocleciano.

Agora vejo que me alonguei neste relato. Os meus vizinhos devem estar lá fora. Acredito que algum deles já perguntou por mim.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Ayala Gurgel diz:

    Muito bom. Fiquei esperando a hora que aparece uma moto com dois caras e todo mundo esconde o celular. Meus parabéns por suas tintas

  2. Professor Tales diz:

    Aqui na Lagoa do Mato ainda costumamos ir dialogar nas calçadas sobre os mais variados assuntos, dentre eles, rs… A vida alheia!

    Um abraço meu amigo! Ah, temos que ir logo também, para não correr o risco de sermos o motivo da conversa!

  3. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Conheço esse cenário de cadeiras em calçadas ao final da tarde. A casa onde mamãe reside fica numa rua assim, cheia de pessoas solidárias; alguém faz um bolo ou um mungunzá e vai lá levar pra ela; e vice-versa! Mamãe está sempre pronta a compartilhar! Quando papai faleceu, há dois anos, alguém me perguntou com quem mamãe ia morar e eu respondi: ela vai continuar morando na casa dela! A gente que se desdobre pra atender às necessidades dela; e assim tem sido! Entendo que seria terrível, depois de perder um companheiro de longa data, ficar na casa de um e de outro. Perderia a identidade! Nessa rua onde as pessoas cuidam de si e dos outros, mamãe já foi socorrida várias vezes enquanto alguém me avisa pra levá-la na emergência. Nessas conversas de calçada, todo mundo sabe da vida de todo mundo e dá opinião! E eu que sempre gostei de incomodar o mínimo, sou obrigada a concordar que esses laços são quase familiares. Nesse espaço de calçada, cada um faz sua terapia! E que bom! Ainda tenho que aprender muito com a simplicidade dessas pessoas! A vida pulsa nesse convívio! Quem mora num lugar assim, não quer sair. Sofreria muito! Minha residência não permite esse tipo de convívio; nem vizinhos tenho! Que pena!

  4. Marcos Antonio Campos diz:

    Muito bom amigo, a vida como ela é. Sem floreios, sem personagens perfeitas e por incrível que pareça, mesmo morando em apartamento eu sei quando é gol do Flamengo mesmo ser ter a televisão ligada.

  5. Carlos Silva diz:

    Como sempre, Marcos Ferreira descreve com uma riqueza de detalhes as cenas do cotidiano. Me senti sentado na ponta da calçada de Dona Raimunda. Parabéns Marcos, sou seu fã.

    Abraço

  6. Dulce Cavalcante diz:

    Essas sua conversa me levou a Iguatu , Praça da Matriz e a roda de calçada da minha casa .que era a maior . Também a minha família era muito grande e todos se encontravam à noitinha até a chegada do vento aracati. Quando ele chegava era uma alegria e animava os assuntos e os sorrisos. Quanta saudade!!

  7. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    A forma brilhante como descreve seu e o cotidiano dos queridos vizinhos, nos traz avivamentos e reminiscências, alegria, alento e nos brinda com películas ainda não filmadas.

    Não só do país de Mossoró, sobretudo de outrora, bem como da existencialidade, ainda vivida nas pequenas, existenciais e exuberantes cidades interioranas desse Brasilzao.. !!!

  8. Airton Cilon diz:

    Os bairros periféricos ainda resistem de certa forma nessa rede social, onde as coisas passam devagar…
    Me lembrou um poema de Drummond: “Cidadezinha”
    “Um homem vai devagar.
    Um cachorro vai devagar.
    Um burro vai devagar.
    Devagar… as janelas olham.
    Eta vida besta meu Deus.”

  9. Raí Lopes diz:

    Excelente, Marcos. Essa, sim, uma famosa crônica do cotidiano. E com todos os ingredientes inerentes a ela. Parabéns!

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