Por Ayala Gurgel
B.O: N° 01-7871/2019
NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO
DATA DA COMUNICAÇÃO: 15 DE NOVEMBRO DE 2019
COMUNICANTE: PAULO FERREIRA DE SOUZA
O senhor Paulo Ferreira de Souza, trinta e cinco anos, comerciante, técnico em contabilidade, viúvo e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia, em data e hora previamente agendadas, em companhia do seu advogado, tendo sido ambos identificados na forma da lei, e narrou perante mim, escrivã de polícia, que se encontra profundamente abalado com o ocorrido e sob efeito medicamentoso, de modo a apresentar pedido prévio de desculpas por explosões emocionais. O advogado do depoente pediu a palavra e destacou que, não fosse de extrema urgência o depoimento do seu cliente no presente momento, preferia voltar outro dia, quando este se encontrasse menos abalado, o que não foi aconselhado pelo delegado encarregado, para o próprio sucesso da investigação. Sobre o fato ocorrido, o depoente declarou ter conhecimento do medo que a vítima, sua esposa há cinco anos, tinha de cobra, afirmando não conhecer outra pessoa com tanto medo, razão pela qual sempre evitou brincadeiras envolvendo essa espécie peçonhenta. Que no dia do ocorrido havia três pessoas dentro do carro, de propriedade do casal e sob seu comando – o depoente, a esposa e uma prima dela, de nome Rosanir Ferreira Alencar – e que se encontravam na estrada carroçável que dá acesso à granja da família da esposa quando a senhora Rosanir passou o seu celular à vítima, com o vídeo de um gato mexendo num cesto de vime, algo que o depoente descreveu como “fofo” e passou cópia a esta delegacia. O vídeo, de acordo com o depoente, deve ter sido feito por alguém que ele não sabe afirmar quem, e se encontra disponível em vários sites, sendo amplamente compartilhado nas redes sociais, de onde provavelmente a senhora Rosanir o recebeu. Que o referido vídeo é feito de tal forma a prender a atenção do espectador, que se empolga com a brincadeira do gato com o cesto, ao som de música infantil, mas termina com uma cobra saindo do cesto e dando o bote em direção à câmera, ao som de um grito de filme de terror. Que o vídeo é uma pegadinha de mau gosto e até mesmo as pessoas que não têm medo de cobra costumam se assustar. Que não sabia do que se tratava quando a senhora Rosanir passou o celular à esposa, sua atenção estava focada na estrada, visto que havia chovido na noite anterior e o terreno se encontrava escorregadio. Que, se soubesse, nunca teria permitido. Que, no momento em que a esposa tomou o susto, jogou fora o celular, que caiu em algum lugar dentro do carro, e se agarrou a ele, puxando o volante e fazendo-o perder o controle, de modo que o carro veio a sair da estrada e capotar. Que tudo foi muito rápido, não teve como reagir e não viu nada. Que não sabe em que momento a vítima foi arremessada do carro ou quanto tempo durou a capotagem, apenas que foi muito rápido e quando se deu conta, estava de cabeça para baixo, preso pelo cinto, e viu ao longe o corpo da esposa, jogado no chão, próximo a uma moita de capim. [O depoimento, a pedido do advogado do depoente, precisou ser interrompido por alguns minutos para que o seu cliente pudesse ser assistido, uma vez que começou a apresentar dificuldades para respirar e crise de choro. Recomposto, o depoente continuou, perante mim, a narrativa da sua versão dos fatos]. Disse que a cena que viu e se encontra registrada na sua memória o apavora todos os dias. Que não consegue tirar da cabeça a imagem da esposa jogada no chão, suja de lama, com a cabeça inclinada em sua direção, a boca aberta e os olhos esbugalhados, como se gritasse por socorro ou de dor. Que, ao deitar todas as noites, costuma vê-la, ao seu lado, com a mesma expressão facial daquele dia. Que se não fosse a medicação que vem tomando regularmente, não conseguiria dormir ou ter algum momento de paz. Que pede a Deus todos os dias que apague tudo isso, que seja só um pesadelo e que se acorde, para descobrir que nada daquilo aconteceu. Disse que esse tipo de vídeo não deveria existir, que deveria ser proibido por lei fazer esse tipo de coisa, que o vídeo foi o responsável por tudo isso. Mesmo sem ser perguntado, confessou guardar rancor da senhora Rosanir, bem como de quem faz e compartilha esse tipo de vídeo. Não soube informar se, no momento do acidente, a vítima estava ou não com o cinto de segurança. Por fim, o depoente disse que não sabia e se mostrou bastante surpreso ao tomar conhecimento de que a causa da morte da vítima tinha sido não em virtude do acidente, com o pescoço quebrado, como ele supunha, mas de uma picada de cobra. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar).
Faça um Comentário