Por Ayala Gurgel
B.O: N° 04-7871/2019
NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO
DATA DA COMUNICAÇÃO: 17 DE DEZEMBRO DE 2019
COMUNICANTE: MARCELO DE LUNA MATOS
O senhor Marcelo de Luna Matos, mais conhecido pela alcunha cabo Matoso, trinta e dois anos, casado, técnico de segurança, prestador de serviço na Escola Superior de Tugúrio e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia, na qualidade de testemunha, e narrou perante mim, escrivã de polícia, que, apesar de já ter visto muita coisa ruim na vida, ainda se encontra apavorado com a cena que presenciou na manhã de hoje. Disse que, como de costume, foi a primeira pessoa a comparecer no setor onde trabalha, quando o sol mal havia quebrado a barra; que foi ele quem acionou a polícia e guardou o local para que ninguém contaminasse a cena do crime. Sobre a ordem dos acontecimentos, declarou que ao chegar ao trabalho percebeu gatos no local, o que não é incomum na área, mas não é normal naquele setor em específico, uma vez que ali não costuma haver comida para eles. Quando viu os gatos, pensou que fosse bicho morto ou resto de comida que alguém havia esquecido; e que, ao se aproximar do local viu, pela parede de vidro, a cena que fez seu estômago revirar e ter ânsia de vômito; mas fechou a boca e saiu às pressas. Que voltou pouco depois, desta vez mais bem preparado, para verificar o que havia ocorrido, acionar a polícia e avisar aos outros setores. Que, ao retornar ao local, confirmou o que temia, se tratava de uma cena de crime, e concluiu isso porque havia muito sangue e os corpos estavam dilacerados. Disse que conhecia cada funcionário daquele setor e os tinha em consideração, que sempre se falavam e se davam muito bem, e acrescentou que não entende como Deus pode deixar que uma maldade como essa aconteça no mundo. [O depoente me pediu um tempo para se recompor e diante de flagrante necessidade, o depoimento foi interrompido por trinta minutos. Findo esse lapso temporal, o depoente apresentou condições psicológicas ainda abaladas para continuar e solicitou outra pausa, dessa vez com tempo necessário para fazer uma oração e pedir que Deus nos protegesse de coisa parecida. O delegado insistiu na urgência da coleta de informações e o depoente voltou a fornecer detalhes sobre os fatos]. Retomando, disse que os corpos estavam todos com fraturas e vísceras expostas, havia muito sangue no recinto e o cheiro de morte misturado ao de café era forte. Que a sala estava fechada por dentro e a assassina se encontrava ali, à vista, parada, no centro da sala, impiedosa e fria. Que não havia outra coisa a ser feita a não ser se benzer, chamar a polícia e torcer para que a assassina ficasse onde estava, quieta, até a polícia chegar. Ao ser questionado sobre como conseguiu identificar a assassina na cena do crime, o depoente se levantou da cadeira e disse que repetiria a mesma história que contou aos policiais quando chegaram à cena e que, por mais absurdo que possa parecer, é a mais pura verdade. Convidado e se sentar, aceitou e passou a narrar o que viu. Disse que conhece os funcionários daquele setor há muitos anos e os três gostam muito de café, mas tinham ficado sem cafeteira. A anterior queimou e estavam providenciando uma vaquinha para outra. Destacou que sabe disso porque conversou com eles mais de uma vez sobre o assunto, tendo inclusive visto alguns preços com eles na internet. Que a compra só não foi em frente porque o novo chefe do setor, que assumiu há alguns meses, chegou com uma cafeteira nova e a deu de presente ao grupo. Acrescentou que a alegria da equipe foi muita, mas durou pouco, uma vez que ninguém esperava o pior, que a cafeteira estivesse endemoniada. Neste momento, o delegado interrompeu e solicitou ao depoente para repetir a palavra usada e, se possível, explicar de forma clara o seu significado, ao que o depoente atendeu e disse se tratar de pessoa ou objeto que está sob atuação de um demônio, o mesmo que endemoniado. Perguntado sobre o uso de fármacos controlados ou drogas, o depoente negou fazer uso e enfatizou que, por mais que o delegado não acreditasse na sua história, a verdade é que a cafeteira estava possuída por um demônio. Que tem certeza porque viu acontecer. Que, de início, ouviu histórias de vozes estranhas saindo da cafeteira quando a água começava a ferver e pensou se tratar de brincadeira, mas foi chamado para ouvi-las e pôde confirmar com seus próprios ouvidos, pelo menos uma vez. Que recomendou a equipe se desfazer do objeto amaldiçoado, pois não era de Deus, mas nenhum teve coragem, visto que não queriam ficar sem café. Que soube de outra ocasião, quando um deles foi olhar o café e a água espirrou, chegando a queimá-lo. Que, mais de uma vez, quando a cafeteira era ligada, a energia do setor começava a oscilar, e isso acontecia só naquela sala. Soube de uma vez que todos os computadores do setor ficaram loucos, tocando músicas esquisitas, dessas que o demônio canta, quando a cafeteira foi ligada, mas os funcionários atribuíram a um vírus ou coisa parecida e o resto tinha sido mera coincidência. Que, para ele, a gota d’água foi quando um dos funcionários foi passar um café e o computador ligou sozinho e na tela apareceu a cara do demônio, rindo, mas eles atribuíram novamente a um vírus. Que estava convicto que não se tratava de vírus, mas do demônio, pois nenhum vírus de computador faz aquilo. Por fim, disse que quando viu a cena, os três mortos e a cafeteira no centro da sala, não teve dúvidas. Tem certeza que foi ela que os matou. O depoente recusou ser ouvido por médico especialista e fez questão de que seu depoimento fosse mantido do jeito que foi colhido. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
Leia também: Depoimento (02/02/2025)
Leia também: Depoimento II (09/02/2025)
Leia também: Depoimento III (16/02/2025)
Mais um excelente conto do Professor Ayala.
Parabéns, muito bom!