Por Ayala Gurgel
B.O: N° 18-1402/2022
NATUREZA: NOTÍCIA SOBRE SUPOSTA AÇÃO DELITUOSA
DATA DA COMUNICAÇÃO: 11 DE ABRIL DE 2022
COMUNICANTE: RAIMUNDO NONATO DE SOUZA
O senhor Raimundo Nonato de Sousa, cinquenta anos, casado, operador de empilhadeira, residente nesta freguesia, em pleno gozo da faculdade dos seus juízos, compareceu a esta delegacia para denunciar, perante mim, escrivã de polícia, fatos ocorridos com sua pessoa que constituem agravo contra a honra de sua pessoa. O depoente disse que tem o hábito de sair todos os sábados à tarde para se encontrar com a amante, que mora no outro lado do Rio do Mangue e faz isso há mais de cinco anos. Indagado pelo delegado sobre a informação prestada há pouco, confirmou se tratar disso mesmo, de uma amante, e que a esposa e filhos sabem do seu relacionamento extraconjugal e o aceitam. A amante também sabe da esposa, da qual foi manicure, e não há problemas entre elas. Que os únicos a se meterem em sua vida amorosa são dois vizinhos, com os quais não se dá bem, mesmo antes de ter arranjado a amante. O depoente atribuiu à inveja a causa da desavença entre ele e seus vizinhos, por ter trabalho fixo, ao passo que ninguém daquela família consegue passar mais de um ano no mesmo posto de trabalho. Que a existência da amante só aumentou a inveja, pois ela tem metade de sua idade e já desfilou como madrinha de bateria na escola de samba do bairro onde moram. Que as fofocas inventadas por seus vizinhos aumentaram, mas ele não se importou, nem mesmo as que o colocaram como corno da amante, sob a falsa alegação de que ela só quer ficar com ele por conta do dinheiro. Que sabe da fofoca e não acredita nela. Que já perguntou à amante e ela jurou pela alma da própria mãe que nada disso é verdade. Que ninguém jura pela alma da mãe se estiver mentindo. Que não são essas histórias que o preocupam, bem como não é sobre elas que veio relatar, e sim sobre o ocorrido neste último sábado, dia 09, quando atravessava a ponte do trem para chegar ao outro lado do Rio. O depoente narrou que nos dias que vai se encontrar com a amante é de praxe tomar banho com óleos essenciais, fazer a barba, colocar roupa limpa, passar perfume e sair de casa depois das três horas da tarde, para não bater com o horário do trem. Disse que o risco de se encontrar com o trem no meio da ponte é a coisa que mais tem medo. Que não sabe nadar, caso precise um dia se jogar no rio. Que tem sonhos recorrentes com sua própria morte, sendo atropelado por um trem. Que só de pensar nisso, chega a lhe faltar o fôlego. Que, em virtude desse medo, toma todo o cuidado do mundo para atravessar a ponte e sempre tem ido no mesmo horário, quando tem certeza que não passa trem ou outro transporte ferroviário. A pedido, o depoente explicou que atravessar o rio pela ponte ferroviária é o caminho mais perigoso, mas os outros não são viáveis. Ou é a estrada, que fica longe da casa dele, transformando uma viagem de minutos em mais de hora, ou pagar para atravessar de canoa, o que acha caro. Que não tem tanto dinheiro para pagar duas corridas na canoa todos os sábados e que só faz isso se precisa levar a feira ou outra coisa para a amante. Que no dia em tela se arrumou como de costume, esperou a hora propícia, deu um beijo na esposa e saiu de casa. Como tem que passar na frente da casa dos seus desafetos, se preparou para ouvir as piadas de sempre e ouviu da velha cega a praga que naquele dia o trem iria pegá-lo. Ele não respondeu nada, mas se benzeu com o sinal da Santa Cruz e pediu proteção a São Cristóvão, protetor dos viajantes, pois não gosta de vacilar contra praga de cego. Em seguida, foi até a cabeceira da ponte, olhou para os lados, além de perguntar a algumas pessoas que costumam beber num bar que tem na beira do rio e pôde confirmar que o trem havia passado, no horário de sempre, e o próximo era o da volta, às sete da noite. Confirmada a informação que desejava, criou a coragem de sempre e saiu empurrando a bicicleta sobre a ponte. Que é preciso cautela para andar na ponte ferroviária, para não acontecer nenhum acidente. Que haviam outras pessoas passando por ele, nos dois sentidos, o que o deixou mais seguro para seguir em frente, sem pensar em mais nada, até que a desgraça começou. Que, ao passar da metade da ponte, ouviu ao longe um apito, como o de trem. Não pensou duas vezes, olhou para a frente e para as costas e não viu nada de trem, mas não ficou em paz, tranquilo, ao contrário, ficou com medo, àquela altura era o único ser vivo sobre a ponte. Decidiu que era bom apressar o passo e saiu empurrando a bicicleta, até que ouviu novamente o apito, dessa vez mais alto. Que não teve coragem de olhar para trás e confirmar o que era, seu coração estava para sair pela boca. Que apertou mais ainda o passo, não havia condições para voltar nem podia se jogar no rio. Além de não saber nadar, a maré estava baixa e havia muita lama. Só pensou que teria uma morte triste, esmagado pelo trem ou afundado na lama. Que, apesar das palpitações e do medo, arranjou forças e conseguiu empurrar a bicicleta, se aproximando cada vez mais da margem, quando poderia sair da ponte em segurança, e vivo. Pensou que pudesse ser um cargueiro atrasado ou fora de hora, pois não é incomum, embora o povo do bar saberia informar. Que não tinha o que fazer e todas as forças estavam voltadas para tentar escapar daquela situação com vida. Uma terceira vez ouviu o apito, mais alto, bastante perto, e o coração quase infartou. Nesse momento, ganhou coragem e decidiu se jogar no rio. Pelo trem não seria esmagado. De fato, declarou o depoente, com o apito mais perto, sentiu como se a locomotiva estivesse nas costas. Sentia os trilhos tremerem e o calor da morte fuçando sua nuca. Que não queria se virar para confirmar a morte em forma de ferro fundido, como acontecia nos seus pesadelos. Decidiu e se jogou no mangue com bicicleta e tudo. Que ao cair, não se afundou muito, estava próximo à margem e foi socorrido por dois catadores de caranguejo que estavam no local. Agradecido e todo enlameado olhou para cima para ver o trem que poderia ter lhe ceifado a vida, quando ficou sem condições de falar. Bem ali, em cima da ponte, sobre os trilhos que ele cruza todos os sábados para se encontrar com sua amante, estavam os dois netos da velha cega que lhe rogou as pragas com uma buzina de ar comprimido imitando o apito do trem. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
Leia também: Depoimento (02/02/2025)
Leia também: Depoimento II (09/02/2025)
Leia também: Depoimento III (16/02/2025)
Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)
Leia também: Depoimento V (02/03/2025)
Leia também: Depoimento VI (09/03/2025)
Leia também: Depoimento VII (16/03/2025)
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Kkk. Coitado. A amante ficou sem amor. Eu jogava pedra nesses moleques.
Parabéns ao grande Articulista. Com certeza deverá estimar os artigos para publicação em tão denso e prolífico livro. TMJ