domingo - 02/03/2025 - 06:42h

Depoimento – V

Por Ayala Gurgel

Imagem gerada com recurso de Inteligência Artificial para o BCS

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B.O: N° 05-6492/2020

NATUREZA: AVERIGUAÇÃO DE FATO ATÍPICO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 03 DE MARÇO DE 2020

COMUNICANTE: VALENTINA CUNHA E AZEVEDO

A menor de nome Valentina Cunha e Azevedo, treze anos, solteira, estudante, residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia na companhia de sua progenitora e mãe, a senhora Margarida de Almeida Cunha, e da senhora Ruth de Sá, na qualidade de representante do Conselho Municipal da Infância e Adolescência, para fornecer sua versão sobre a investigação em aberto, a pedido do sargento Edson Nogueira, do Primeiro Batalhão do Corpo de Bombeiros desta cidade. A menor, perante mim, escrivã de polícia, e devidos responsáveis legais, disse que tudo começou na fila da comunhão quando conversava com uma amiga, outra menor, que não será aqui identificada, sobre a hóstia ser o corpo de Cristo ou se tratar apenas de uma lenda católica. Que, em virtude dessa conversa, sem qualquer intenção planejada anteriormente ou em combinado com a amiga, ela decidiu fingir que havia colocado a hóstia na boca, mas, na verdade, manteve-a escondida na mão e levou-a para casa, onde colocou-a dentro de uma caixa de acrílico, após retirar suas bijuterias, e manteve-a fechada, desde então. Que não sabia o que fazer depois que fez isso, pois não havia pensado em nada, mas decidiu deixar a hóstia guardada para ver o que acontecia. Que não lembra quantos, mas em poucos dias começou a falar para a hóstia sobre alguns dos seus sentimentos, desejos e problemas que tinha em casa ou com suas amigas. Que não ficou apenas nisso e começou a tratar a hóstia como prisioneira e passou também a exigir que lhe fizesse favores, em troca de liberdade. Que fazia ameaças como “se não me atender, vou te dar ao gato” ou “vou te vender na internet para os satanistas”, e pedia favores como “que meus pais me deixem sair com as minhas amigas e permitam que eu possa voltar tarde da noite” ou “que meus pais aumentem minha mesada”. A menor disse que não faz ideia do porquê estava fazendo essas coisas, mas se sentia bem ao fazê-las, além disso, coincidência ou não, seus desejos começaram a ser realizados. Interpelada por sua mãe, neste momento, a menor concordou em acrescentar à sua narrativa que, paralelo a isso, mudou de comportamento e adotou a moda gótica, o que desagradou a seus pais, mas não se importou. Que apenas procurou continuar com sua vida, pois estava feliz e conseguindo tudo que queria, graças à sua prisioneira. Que um mês depois, com a crítica dos pais, especialmente do seu pai, contra seu gosto e novos hábitos, a depoente começou a ficar chateada com a hóstia e exigiu dela que fizesse com que os pais se separassem, do contrário, a jogaria na privada e daria descarga. Que não sabe explicar, mas na semana seguinte, seus pais começaram a falar em divórcio. [mãe tomou a fala, interrompendo a menor, e disse que isso era verdade; que ela e o marido nunca haviam tido uma crise, até então, e naquela semana, começaram a falar em divórcio. A mãe foi instruída a não interromper a fala da menor e que poderia ser ouvida, posteriormente, caso tivesse algo a acrescentar]. A menor foi convidada a continuar e disse que começou a se sentir poderosa e feliz com tudo que estava conseguindo e, por isso, decidiu falar com a melhor amiga sobre seu segredo. Indagada, respondeu afirmativo à pergunta se a amiga à qual se refere era a mesma pessoa com a qual conversou na fila da comunhão. Disse que não havia revelado a ninguém sobre ter guardado a hóstia e as exigências que vinha fazendo, e já haviam passado dois meses e dez dias desde o início dos eventos. Que foi mais motivada por orgulho e vaidade que decidiu contar tudo à amiga. Disse que a amiga ficou em choque com a novidade e quis ver a hóstia, quem ela chamava de “minha prisioneira”. As duas concordaram em vê-la e isso seria feito no mesmo dia, após as aulas, quando deveriam se dirigir à residência da menor, o que veio a ocorrer. Ao chegarem ao local, a mãe era a única pessoa que se encontrava em casa, de modo que, além da outra menor, é a única que pode dar testemunho do acontecido. Disse que, ao abrir a porta do seu quarto, não conseguiu entrar, nem ela nem ninguém, pois exalou um odor horrível de podridão que tomou conta da casa, provocando ânsia de vômito nas três. Que até o gato da família, que se encontrava no sofá, fugiu ao sentir o fedor. Que a mãe correu em direção às duas para tomar ciência do que estava acontecendo, mas nenhuma delas teve estômago para continuar dentro de casa e enfrentar a podridão que exalava do quarto. Que acionaram o corpo de bombeiros, narraram o odor e pediram ajuda para saber do que se tratava, no que foram atendidas. A menor disse que os bombeiros entraram no quarto e encontraram um pedaço de carne em putrefação dentro de uma caixa e suspeitaram se tratar de tecido humano, razão pela qual solicitaram explicações e as envolvidas foram encaminhadas à delegacia para que prestassem esclarecimentos. A menor relatou que a caixa na qual foram encontrados os restos de tecido humano é a mesma na qual ela mantinha a hóstia prisioneira e nunca a abriu desde que a colocou lá dentro. Que não sabe explicar o que aconteceu. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:

Leia tambémDepoimento (02/02/2025)

Leia tambémDepoimento II (09/02/2025)

Leia tambémDepoimento III (16/02/2025)

Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Ubernilda diz:

    Sou católica e esse depoimento é forte para minha crença, pois acredito que não devemos brincar com o sagrado da religião. Bem feito para essa moleca. Se fosse verdade

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